Volume 2
Epílogo
Depois disso, as coisas foram agitadas.
Primeiro, Lawrence e Holo tiveram que pedir uma roupa emprestadas da Companhia Remelio enquanto a sujeira e o sangue eram lavados de suas próprias roupas. Enquanto estas secavam, Lawrence levou a dívida de obrigação para a Guilda Rowen de Comércio, deixando Holo (que disse estar com fome) em uma taverna que não fechava durante a noite. Aparentemente, era o trabalho de Lawrence cuidar dos detalhes.
Lawrence foi recebido calorosamente pelos membros da guilda de comércio, que se reuniram para beber depois do dia de trabalho. Ele aturou muitas perguntas vulgares sobre o machucado em seu rosto antes de finalmente chegar em Jakob.
Não teria sido de todo estranho se as pessoas da Companhia Remelio viessem bater na porta exigindo o pagamento, mas nem eles nem Lawrence tinham aparecido. Jakob provavelmente estava morto de preocupação desde que a dívida de Lawrence venceu.
Sem surpresa, a primeira reação de Jakob ao ver o rosto de Lawrence foi raivosamente acertar o crânio dele com um soco.
Mas então seu rosto se abriu em um sorriso emocionado e abriu os braços, aliviado que Lawrence estava bem.
Lawrence entregou a dívida de obrigação para Jakob, que provavelmente conseguiu imaginar, de uma maneira geral, o que tinha acontecido. Ele trouxe uma bolsa cheia das raramente vistas moedas de ouro lumione do interior da guilda e comprou a dívida de obrigação na hora.
É claro, agora ele era um mercador que veio para fazer negócios. Era inteiramente possível que o contrabando de ouro não teria sucesso, nesse caso os ativos físicos e contas que a Companhia Remelio tinha para receber seriam vendidos para pagar suas dívidas. Normalmente, quando uma companhia falia, seus ativos eram liquidados e divididos proporcionalmente entre os credores, então uma nota de quinhentos lumiones da Companhia Remelio não era absolutamente sem valor, mesmo que o contrabando fosse um fracasso. Em suma, Jakob comprou a dívida em um montante correspondente à aposta do contrabando.
Levando todas essas possibilidades em consideração, Jakob avaliou a dívida em aproximadamente trinta lumiones.
Se o contrabando fosse bem-sucedido, havia a promessa adicional de cem lumiones. Isso era um valor significativamente menor que o valor da dívida, mas havia uma grande probabilidade de que a Companhia Remelio ainda iria à falência em dez anos. Era um preço razoável.
Lawrence deu vinte lumiones para Jakob, como forma de compensar o dano causado ao bom nome da Guilda Rowen de Comércio. Ele pretendia usar o resto que Jakob pagou como um suborno para manter os açougueiros quietos depois de abater as ovelhas.
Com mais cem lumiones que poderia conseguir com o sucesso do contrabando, Lawrence tinha que pagar a Norah os vinte lumiones por sua participação, e ele planejava usar um pouco mais como meio de desculpas para as diversas empresas comerciais às quais havia implorado por empréstimos. Se isso chegasse a trinta lumiones, ainda sobrava cinquenta lumiones para si.
De alguma forma, voltaria para a quantia que possuía depois de vender sua pimenta em Poroson.
Levando em conta que ele chegou a se conformar em morrer como escravo a bordo de um navio, isso poderia ser chamado de um milagre.
Em seguida, Lawrence usou suas conexões da guilda para ser introduzido a um açougueiro cuja discrição poderia ser confiável. Ele garantiu um acordo com o açougueiro de receber as ovelhas de Norah e as abater, sem perguntas, por dez lumiones. Ele estava pagando o açougueiro muito bem e tinha toda a certeza de que as coisas prosseguiriam sem problemas.
Depois de fazer as várias preparações, Lawrence voltou à Companhia Remelio para recuperar suas roupas e, em seguida, deixou Remelio a se preparar para recontratar seus antigos empregados, que provavelmente estavam todos os amontoados, tremendo com o clima frio. Lawrence também ordenou Remelio a devolver sua carroça e cavalo, dos quais tinha se esquecido completamente. Ele foi um pouco duro ao falar, pois esperava que suas ordens fossem realizadas rapidamente.
Pela hora que Lawrence terminou todos os preparativos, o céu noturno começava a empalidecer com o amanhecer.
Ele caminhou ao longo da rua silenciosamente no início da manhã, ainda havia uma brisa congelante no ar da chuva do dia anterior.
Seu destino era uma taverna que não fechava durante a noite, cortesia de propinas pagas às autoridades apropriadas.
O distinto céu azul pálido da madrugada pairava sobre a cidade. Um lampião inadequado, ainda em chamas, marcava a taverna.
“Bem-vindo.”
A voz que o cumprimentou estava desinteressada — não necessariamente por causa da ilegalidade, mas sim da exaustão de ficar acordado a noite toda.
A taverna estava meio cheia, embora surpreendentemente tranquila; os fregueses bebiam seu vinho em silêncio, talvez lamentando o amanhecer inevitável.
“Hey aqui.”
Lawrence se virou para encarar a voz e encontrou Holo, que apareceu ao seu lado segurando um pequeno barril e um pouco de pão. Se um padre visse Holo (que estava novamente vestida como uma garota da cidade) na taverna noturna, poderia haver alguns problemas complicados — mas ninguém parecia se importar com a presença dela.
Holo chamou a atenção do mestre da taverna atrás do balcão e este acenou para ela de forma sonolenta. Holo provavelmente conseguiu os bens que ela carregava conquistando o mestre com alguma conversa mole.
“Venha, vamos embora.”
Na verdade Lawrence queria se sentar e descansar por um momento, mas Holo pegou sua mão e não ia tolerar discussão.
“Volte sempre,” disse o mestre enquanto saiam da taverna.
Os dois não tinham nenhum destino em particular e, por enquanto, se contentavam em andar.
Estava frio lá fora. Graças à umidade, a respiração deles pairava no ar.
“Aqui, coma esse pão,” Holo falou e o estômago de Lawrence gemeu quando percebeu que não tinha comido nada desde o meio-dia do dia anterior. Lawrence pegou o pão — na verdade era um sanduíche de bacon e legumes — da mão de uma feliz e sorridente Holo, e o mordeu sem hesitação.
“E isso.” Holo estendeu o pequeno barril.
Uma vez que ele tirou a rolha e colocou o barril nos lábios, ele continha uma mistura morna de hidromel e leite.
“É bom para quando algo te incomoda.”
O licor doce e morno era perfeito.
“Agora,” disse Holo. Ela provavelmente não tinha a intenção de deixar ele comer e beber em paz, mas quando terminou de comer ela começou a falar.
“Tenho duas perguntas para você.”
Lawrence se preparou para o pior.
Holo parou por um momento.
“Até que ponto você confia naquela garota?” ela perguntou sem olhar para ele.
Era uma pergunta que ele tinha tanto esperado como não. O fato de que Holo tinha deixado o tempo, lugar e circunstâncias pouco claras significava que provavelmente havia alguma vaga dúvida em sua própria mente.
Lawrence tomou outro gole do barril. “Não sei até onde confio nela,” ele disse sem olhar para Holo. “No entanto, sei que se Norah pegar o ouro e desaparecer para algum lugar, ela seria facilmente seguida. Eu não confio nela o suficiente para pensar que isso iria acontecer e ainda entregar o ouro.”
Holo ficou em silêncio.
“A menos que ela percorra uma distância significativa, ninguém vai comprar o ouro a um preço razoável, e rumores de uma pastora vendendo ouro são raros o suficiente para se espalharem até lugares longínquos. Seria fácil de segui-la.”
Era verdade que não confiava em Norah absolutamente. Como um mercador, Lawrence estava sempre pensando em alternativas.
“Entendo. Eu supus que fosse assim.”
“E a outra questão?” Lawrence perguntou.
Holo o encarou com uma expressão impossível de discernir.
Não era raiva. Era, talvez, hesitação.
Mas a hesitação sobre o quê? Lawrence se perguntou.
Ele achou difícil imaginar que ela estava hesitando sobre se deveria ou não fazer a pergunta.
“Seja o que for, eu vou responder. Te devo um enorme favor, afinal de contas.”
Ele deu uma mordida no sanduíche agora frio, engolindo com o licor.
A luz dourada do amanhecer começou a refletir nas pedras do calçamento das ruas.
“Você não vai perguntar?” indagou Lawrence.
Holo respirou fundo. Ela agarrou sua manga. Sua mão tremia — por causa do frio ou por alguma outra coisa.
“Hm?”
“Você — você se lembra...” Holo olhou para ele com os olhos incertos. “Quando eu estava de enfrentando o cão e a garota..., qual nome você chamou?”
Ela não parecia estar brincando.
Seus olhos eram a própria seriedade.
“O sangue corria em minha cabeça, e eu não pude ouvir. Mas esteve me incomodando. Tenho certeza que você chamou o nome de alguém. Você se lembra?”
Lawrence hesitou enquanto caminhava lentamente pelas ruas da cidade, o sol começando a subir.
Como ele deveria responder? A verdade era que não se lembrava.
Mas e se Holo realmente se lembrava e ela só estava tentando confirmar?
Se tivesse chamado o nome de Holo, estaria tudo bem. O problema seria se tivesse chamado por Norah.
Nesse caso, dizer que não sabia significava que deixou escapar o nome de Norah sem realmente saber ou lembrar o que estava dizendo.
E nesse caso, Holo certamente ficaria com raiva. Seria melhor que admitir honestamente que tinha chamado o nome de Norah e chegar a algum motivo vago quanto ao porquê.
Havia outra possibilidade, é claro — que Holo realmente não tinha ouvido nada.
Nesse caso, seria melhor dizer que tinha chamado o seu nome.
Tendo pensado sobre isso tão profundamente, Lawrence percebeu a extensão de sua própria estupidez.
A garota ao lado dele era a Sábia Loba Holo. Ela veria através de qualquer mentira.
Em qual caso, a resposta correta era —
“Eu chamei seu nome.”
Depois de olhar por um momento com os olhos de um cachorrinho abandonado, os olhos de Holo brilharam de ódio.
“Isso é uma mentira.”
Ela apertou a manga dele e Lawrence respondeu imediatamente.
“Sim. A verdade é que não me lembro. No entanto —”
As orelhas de Holo se mexeram debaixo do lenço mais rápido que sua expressão facial poderia mudar.
Ela deveria saber que o que acabou de dizer que não era uma mentira.
“— Nestas circunstâncias, certamente acho que eu teria chamado o seu nome,” ele disse olhando firmemente para ela.
Tão rápido quanto seus olhos brilharam com ódio, Holo agora o olhava com uma pitada de dúvida.
Não havia como dizer se isso era ou não verdade; ela teria que decidir.
Da sua parte, Lawrence usou o argumento mais persuasivo que pôde pensar.
“Em uma hora como aquela, tenho certeza de que teria inconscientemente escolhido chamar seu nome. Afinal —”
O aperto de Holo se estreitou.
“Afinal de contas, seu nome é uma letra mais curto.”
Ele quase podia sentir a expressão no rosto dela mudar.
“Além disso, se eu tivesse gritado 'Norah', mesmo às pressas, você seria capaz de dizer. Mas Holo leva apenas um instante para dizer — seria fácil deixar passar com o sangue fervendo em sua cabeça. O que você acha? Um argumento bastante persuasivo —”
Ele não terminou a frase porque Holo acertou sua boca.
“Cale a boca.”
Mesmo a mão pequena e macia machucou um pouco o lábio de Lawrence, ela acertou onde a Companhia Remelio o havia ferido.
“Então você chamou meu nome porque era mais curto? Burro! Tolo!” ela disse, o puxando pela manga. “É o cúmulo da idiotice você sequer ter pensado nisso!” Ela olhou para o lado oposto a ele como que o mandando embora.
Lawrence se perguntou se teria sido melhor apenas dizer uma mentira óbvia, mas sentiu que Holo teria ficado com raiva de qualquer maneira.
Enquanto caminhavam, se aproximaram do portão leste; agora havia mais pessoas ao redor ocupadas se preparando para o dia.
Holo andou um pouco a frente, sozinha.
Logo que se perguntou o que ela ia fazer, ela parou.
“Apenas —” ela estava parada —
“— diga um nome,” Holo falou de costas para Lawrence.
Além dela, Lawrence viu um sino na ponta de um longo cajado.
Ele ouviu o balir das ovelhas atrás de uma silhueta.
O que ele viu além de Holo era uma pastora conduzindo um cão pastor preto.
No mesmo instante, ele soube que o contrabando foi um sucesso. Ele não podia deixar de estar feliz. Ele poderia facilmente ter chamado o nome de Norah.
Lawrence sorriu para ação sagaz e descarada de Holo.
No momento em que abriu a boca para chamar o nome, ele espirrou.
“Achoo!”
Agora, a verdade sobre o nome ele chamou permaneceria eternamente um mistério.
Holo olhou por cima do ombro, envergonhada. Ele tinha ganhado dela.
Lawrence a ignorou e acenou avidamente três vezes, assim como quando encontrou Norah na estrada.
Norah notou e devolveu o aceno.
Holo olhou para Norah por cima do ombro.
Esse era o momento que Lawrence estava esperando.
“Holo.”
Suas orelhas de lobo mexeram.
“Holo realmente é mais fácil de chamar.”
Uma nuvem de vapor saiu da boca do Holo enquanto ela exalava, admitindo a derrota.
“Seu bobo.”
Lawrence amava mais o sorriso contrariado dela do que o calor do sol no final do outono.