Volume 1
Capítulo 5
Marheit era tudo que se esperaria de um comerciante que abriu uma filial em uma terra estrangeira.
Apesar de inicialmente chocado com a revelação de Lawrence, ele logo se acalmou e começou a pensar na situação como um todo. Ele não proferiu nem uma única palavra de culpa por Holo, que tinha sido capturada, ou Lawrence, que tinha conseguido fugir. Ele estava totalmente focado em proteger os interesses da Companhia Milone e extrair qualquer lucro disponível a partir da situação.
“Não há dúvida da ameaça implícita nesta carta. Eles querem que você saiba Sr. Lawrence, que se você não quer que sua companheira seja entregue à Igreja, você deve permanecer confinado e não interferir.”
“Eles devem querer que a gente se mantenha fora do caminho até que o plano deles com as moedas trenni seja concluído, mas isso não significa que eles não vão entregar Holo quando terminarem.”
“Exato. Além disso, nós já investimos bastante na moeda. Se nos retirarmos agora significa que nossas perdas serão enormes, porque a desvalorização da moeda trenni é garantida.”
Em tal situação, não havia essencialmente qualquer escolha.
Eles poderiam sentar e aguardar a ruína, ou eles poderiam atacar.
A primeira não era uma opção.
“Suponho que isso significa que não temos escolha a não ser atacar primeiro,” disse Lawrence.
Marheit respirou fundo e concordou. “No entanto, apenas resgatar sua companheira, não será suficiente. Mesmo que nós a escondamos aqui, uma vez que a Igreja se envolver, não teremos escolha a não ser ajoelharmos e os deixarem fazer como bem entenderem. Ela não pode se esconder enquanto estiver nesta cidade.”
“E se nós fugirmos da cidade?”
“É uma grande planície até onde o olhar alcança, mesmo se alcançar outra cidade, há uma chance de você ser extraditado. E então não haveria mais esperança nenhuma.”
Eles estavam encurralados. Mesmo cumprindo as demandas da Companhia Medio, provavelmente ainda resultaria em Holo sendo entregue à Igreja. Não havia nenhuma razão para evitarem arruinar uma empresa estrangeira — de fato quanto menos concorrentes, melhor.
Contudo atacar primeiro trazia consigo uma série de dificuldades. Não — “dificuldades” era a palavra errada. Cada possibilidade disponível para eles era basicamente imprudência.
“Não há nada que possamos fazer?” Ponderou Marheit como se estivesse falando consigo mesmo. “Neste ritmo, não seremos capazes de evitar acusações infundadas, sem mencionar o que acontecerá com nosso lucro.”
Lawrence sentiu como se ele estivesse sentado sobre um tapete de agulhas enquanto ouvia Marheit falar, mas abaixou a cabeça e ouviu — ele faria o que fosse preciso para trazer um resultado favorável. Mercadores não tinham o orgulho de cavaleiros ou da nobreza. Eles estavam preparados para lamber as botas de um estranho se isso significasse sair na frente.
Então, Lawrence não ouviu sarcasmo ou desprezo nas palavras de Marheit, simplesmente uma análise. Ele tinha claramente resumido a situação que agora enfrentavam.
“Você está dizendo que precisamos de algum tipo de carta na manga que possamos usar contra eles.”
“Pode por dessa maneira. Mas mesmo se investirmos mais capital, é pouco, comparado com o que eles têm a ganhar com as moedas trenni. Portanto, o problema não pode ser resolvido com dinheiro. Poderíamos relatar o rapto de sua companheira para a Igreja, mas isso poderia causar problemas para você, e você pode até oferecer um testemunho desfavorável contra nossa companhia.”
“Isso... é bem possível.”
Não havia nenhum ponto em mentir, por isso, Lawrence disse a verdade. Ele simplesmente não queria perder Holo, mas se o fizesse, isso inquestionavelmente resolveria o problema.
Marheit estava, sem dúvida, ciente desse fato. Se tivessem apenas isso, ele certamente tentaria persuadir Lawrence a tomar essa opção, porém sem sucesso. Lawrence sabia que escolheria a morrer com Holo primeiro.
Embora, naturalmente, ele esperava que não precisasse fazer isso.
Isso o deixou sem alternativa senão criar algum tipo de plano para alterar esta posição indefensável.
“Tudo o que consigo pensar,” Lawrence interrompeu “é terminar a negociação do acordo das moedas trenni e usar o lucro resultante como um trunfo.”
Os olhos de Marheit se arregalaram com a proposta de Lawrence. Ele não queria perder lucro da Companhia Milone — aquele retorno quase mágico que surgiu da exploração de uma moeda depreciada — tanto quanto Lawrence não queria perder Holo.
Tais oportunidades apareciam apenas uma vez em muito tempo.
Foi isso que fez a proposta de Lawrence um trunfo tão potente. Se fizessem isso, a Companhia Medio ficaria feliz em entregar Holo, em vez de perder o lucro.
Ainda assim — ou talvez por causa disso — Marheit cobriu os olhos em preocupação. Perder essa oportunidade seria como perder um filho.
Este mágico parceiro comercial poderia trazer ganhos absurdos.
Esse parceiro não era outro se não o Rei do Reino de Trenni.
“O maior ganho que pode ser extraído dos trenni de prata é garantir privilégios especiais do rei. De acordo com nossa pesquisa, as finanças da família real estão em declínio. Em outras palavras, se este negócio for bem-sucedido, teremos um favor substancial com da família real. Abandonar isso...”
“Abandoná-lo pela minha companheira não faz sentido,” disse Lawrence.
“Você está sugerindo que eles comprem os privilégios de nós?”
Lawrence concordou. Ele tinha ouvido falar de negócios nesta escala antes, mas nunca tinha se envolvido em um. Ele não tinha garantias de que isso poderia realmente ser feito, mas a sua longa experiência como comerciante sugeria que poderia dar certo.
“Se eles tiverem que escolher entre destruir a Companhia Milone ou a obtenção dos privilégios especiais do rei, talvez pudéssemos simplesmente fazê-los pagar um valor equivalente.”
Lawrence estava falando o que vinha a sua cabeça, mas parecia plausível.
A ideia de ganhar dinheiro a partir de uma moeda depreciada, coletando tanto delas quanto possível, era baseada no pressuposto de que o mesmo Reino de Trenni que cunharia as moedas, estariam dispostos a comprar as mesmas.
Eles fazem isso porque depois de recolher as moedas, podem derretê-las. Então, criariam mais moedas com um teor de prata menor, resultando em mais moedas físicas. Se dez moedas se tornavam treze moedas, significava um ganho de três moedas.
Esta era a melhor maneira de aumentar fundos imediatamente disponíveis, mas isso machucaria a credibilidade do país, o que resultaria em uma perda a longo prazo. Para a família real estar disposta a fazer isso, implicava estar em dificuldades financeiras. O que era pior, se eles não tinham moedas diluídas o suficiente, não criaria os recursos extras, necessários para a nação respirar.
A Companhia Medio estava tentando conseguir uma grande quantidade de trenni de prata para explorar essa oportunidade. Dependendo das circunstâncias, eles poderiam tentar recolher todas as moedas trenni de prata em circulação no mercado.
Em seguida, eles iriam para o rei, dizendo algo como "Se você concordar com o preço que definimos e nos der algumas considerações, nós te venderemos a moeda.”
Com algumas exceções, um rei só era um rei porque sua fortuna ou suas terras eram maiores do que as de outros nobres — e porque ele havia conseguido o apoio da população de não questionar sua legitimidade. Mas simplesmente ser o monarca, não garante perfeito controle sobre as terras do reino. A família real não poderia simplesmente controlar os bens administrados por outra nobreza.
Assim, os bens da realeza não eram significativamente mais valiosos do que os dos outros nobres. O que faziam eles especiais eram os deveres variados que caíam sob privilégio real: autoridade sobre minas, tarifas, administração do mercado, e assim por diante. Enquanto tal autoridade não trouxesse com ele os ganhos automáticos, se alguém soubesse como manipular a autoridade, era como fazer cair dinheiro de uma árvore.
Provavelmente, a Companhia Medio queria o controle sobre um desses domínios. Precisamente qual, não estava claro, mas se o que quer que eles estivessem planejando fosse bem-sucedido, eles ganhariam uma grande vantagem para os seus negócios.
O que Lawrence trouxe para a Companhia Milone era uma proposta de arrebatar esta oportunidade. Eles visavam recolher mais moedas trenni de prata que a Companhia Medio e negociar com o rei primeiro.
Da perspectiva do rei, lidar com duas companhias concorrentes pelos mesmos privilégios seria problemático. Assim, se fosse para lidar com alguém, seria com uma única companhia.
Se a Companhia Milone pudesse concluir as negociações primeiro, seria impossível para a Companhia Medio garantir quaisquer privilégios.
Esses privilégios eram inteiramente únicos.
Para a Companhia Medio, se tais privilégios pudessem simplesmente serem comprados, eles pagariam qualquer preço. A Companhia Milone não era diferente, mas amarrados como estavam agora, eles teriam que se contentar com uma compensação moderada.
“Ainda assim... se eles jogarem sua carta, isto não destruiria apenas esta filial — também seríamos queimados na fogueira. Será que eles vão negociar com a gente?”
Agora era a parte difícil. Lawrence se inclinou e murmurou: “Certamente o rei ficaria incomodado ao saber que a companhia com a qual ele estava fazendo negócios seria queimada como herege.”
Marheit engasgou com a realização. A autoridade da Igreja ultrapassava até mesmo as fronteiras nacionais. Seu poder era significativo mesmo dentro de impérios poderosos, para não falar de pequenos reinos, como Trenni.
E em todo caso, o rei de Trenni estava tendo dificuldades financeiras. A última coisa que iria querer era um problema com a Igreja.
“Se pudermos assinar um contrato com o rei, a Companhia Medio não será capaz de nos tocar. Mesmo que tentem nos entregar para a Igreja, o rei não vai ficar satisfeito com a companhia que trouxe tantos problemas para ele.”
“Entendo. Ainda assim, eles não vão simplesmente ficar em silêncio. Podem tentar nos derrubar com eles.”
“Verdade.”
“Assim, além do preço para os privilégios que vamos entregar, estaremos exigindo sua companheira.”
“Sim.”
Marheit coçou o queixo, com o rosto expressando admiração. Ele olhou para a mesa. Lawrence sabia o que Marheit ia dizer em seguida. Ele respirou fundo e reuniu sua inteligência na expectativa de sua resposta. Este plano único poderia romper o impasse e trazer tanto para Lawrence como para a Companhia Milone um grande lucro.
Mas tinha as suas dificuldades.
Se Lawrence não conseguisse superar essas dificuldades, ele perderia Holo ou seria queimado ao lado dela pela Igreja.
O último não iria acontecer — nunca.
Marheit olhou para cima.
“Hipoteticamente, é uma ótima estratégia. Mas tenho certeza que você percebe que vai ser quase impossível de executar.”
“Você está falando sobre como vamos superar a Companhia Medio, certo?”
Marheit colocou a mão no queixo e assentiu.
Lawrence estava preparado para isso. “Até onde posso ver, a Companhia Medio ainda não coletou uma quantidade significativa de prata.”
“E a sua base para dizer isso é...?”
“Minha base é que eles não entregaram Holo imediatamente para a Igreja quando a capturaram. Se já tivessem moedas de prata suficiente, teriam ido diretamente para a Igreja a fim de nos destruir. Em vez disso, estão tentando evitar nossa movimentação, provavelmente porque estão preocupados que durante o tempo que levaria para a Igreja concluir nosso julgamento e nos condenar, nós alcançaríamos um acordo com o rei. Colocando de outra forma, eles acham que você já recolheu prata o suficiente para dar início às negociações. Isso mostra que eles não têm confiança em sua própria posição.”
Marheit escutou com os olhos fechados. Lawrence respirou fundo e continuou.
“Além disso, não acho que a Companhia Medio quer que saibam que eles estão coletando trenni de prata — isso os ajuda a tirar vantagem da posição fraca do rei. Do ponto de vista de um nobre lidando com o rei, demonstra consideração com a posição do rei e com sua relação no futuro dizer apenas que tinham uma grande quantidade de prata na mão, não importa o quão transparente seja mentira. Mas para ter pessoas como Zheren em busca de mercadores viajantes e nos trazer para esse negócio, eu acho que seu objetivo é começar por ter comerciantes reunindo as moedas de prata para eles e então comprá-las no momento oportuno. Mesmo se suspeitassem dos motivos de Zheren, se alguém está disposto a comprar a moeda, eles estariam felizes em vender. Isso é tudo especulação da minha parte, mas não acho que estou errado. Se a Companhia Medio começasse a comprar trenni de prata aos montes, cada companhia na área iria notar a estranha tendência na moeda, e estaríamos longe de ser seu único problema.”
Marheit acenou lentamente. “Diante de tudo isso, isso pode ser possível,” murmurou com relutância, com os olhos ainda fechados.
A especulação era plausível, mas ainda era mera especulação. Talvez eles não tivessem entregado Holo porque não queriam provocar a principal filial da Companhia Milone.
Por alguma razão, a Companhia Medio estava hesitando.
Dada a hesitação, Lawrence e seus parceiros não tinham escolha, a não ser tirar proveito.
“Tudo bem, vamos supor que a Companhia Medio não está preparada para se mover. Com base nesse pressuposto, que curso você sugere que tomemos Sr. Lawrence?”
Lawrence tomou essas palavras pelo seu valor nominal. Não podia se dar ao luxo de mostrar qualquer fraqueza.
Ele respirou fundo e falou. “Eu vou encontrar Holo, resgatá-la, e nós vamos fugir até que as negociações estejam acabadas.”
Marheit ficou surpreso “Você não pode estar falando sério.”
“Escapar pode ser impossível, mas vamos te dar algum tempo. Use-o para conseguir quantas moedas de prata for possível e conclua as negociações.”
“Não é possível.”
“Então você vai entregar Holo? Então serei obrigado a denunciar publicamente a Companhia Milone.”
Era uma ameaça inconfundível.
Marheit ficou boquiaberto com a quase traição de Lawrence, atordoado.
O fato permanecia, mesmo que escolhessem sacrificar Holo, a Companhia Milone tinha um contrato com ela e Lawrence. Se tratasse de um julgamento da Igreja, a Companhia tinha talvez quatro chances em dez de ser julgada inocente, e mesmo assim, pesadas multas seriam cobradas. Não era preciso dizer que Lawrence denunciaria a Companhia Milone.
Marheit agonizou.
Lawrence aproveitou a oportunidade para pressionar.
“Com a ajuda da Companhia Milone, nós podemos ser capazes de escapar por um dia ou dois. Ela é um espírito de lobo. Se usar sua força para escapar, ninguém será capaz de alcançá-la.”
Lawrence não tinha ideia se isso era verdade, é claro, mas soou convincente.
“Mm... hm...”
“Holo foi pega porque agiu como isca. Se não tivéssemos um destino para ir, e ela procurasse apenas escapar isso teria sido fácil. Posso perguntar quanto tempo a sua companhia vai precisar para coletar moedas o suficiente para conseguir a atenção do rei?”
“...Quanto tempo, você quer saber?”
Embora Marheit parecesse oprimido pela bravura de Lawrence, sua mente estava calculando as possibilidades. Seu olhar que saltava ao redor da sala deixava claro que ele estava imerso em pensamentos.
Lawrence pensou que se pudesse resgatar Holo e a Companhia Milone estivesse disposta a ajudar, ele seria capaz de permanecer escondido por um período de até dois dias.
Pazzio era uma cidade antiga. Havia muitos edifícios, e as estradas e becos eram complexas. Se alguém quisesse se esconder, havia inúmeros lugares para isso.
Supondo que ele estava fugindo apenas da Companhia Medio, Lawrence acreditava que poderia ficar escondido.
Marheit abriu os olhos. “Se enviar um cavaleiro a Trenni agora, ele vai chegar lá no pôr do sol, se tudo correr bem. Assumindo que possamos começar a negociação imediatamente, ele vai voltar aqui amanhã de madrugada. A longa negociação prolongará a sua permanência.”
“Você pode enviar um cavaleiro imediatamente? Você ainda não confirmou a quantidade de moedas de prata que você tem.”
“Há um limite de quantas moedas podemos abrigar, então podemos fazer uma estimativa aproximada de quanto seremos capazes de recolher. Desde que tenhamos as moedas até o dia da transação real, nós ficaremos bem.”
Mesmo se negociassem de forma otimista, não haveria nenhum problema desde que a moeda fosse recolhida no dia acordado.
A ideia era boa o suficiente na teoria, mas precisava de um grande comerciante que pudesse realizar tal negociação imprudente. Adicionalmente, eles tinham que ser capazes de oferecer capital suficiente para que o rei pensasse que não podia se dar ao luxo de depender apenas de seus próprios recursos. Usar uma mera aproximação das verbas disponíveis para realizar tal negociação era o cúmulo da imprudência, mas o próprio fato de que Marheit estava propondo a ideia trazia credibilidade, pensou Lawrence.
“Queríamos negociar somente depois de descobrirmos quem estava apoiando a Companhia Medio, o que revelaria seus fundos. Então nós seriamos capazes de antecipar seu negócio e estimar o nosso. Mas não temos tempo para pensar nem para procurar por mais informações.”
Embora soubesse que era impossível, Lawrence pensou a respeito do problema em sua cabeça e não resolveu nada. Ele suspirou como que para dar voz a sua impotência.
Ele tinha que continuar olhando para frente. Se endireitou e fitou Marheit.
“Você pode chegar a um acordo rápido com o rei?”
Lawrence teria que correr fossem as negociações rápidas ou não. Ele não tinha poder para mudar a situação, mas se sentiria melhor sabendo.
“Se a Companhia Milone quiser, as negociações serão breves.”
Lawrence não pôde deixar de rir amargamente, mas Marheit certamente pareceu confiável.
Ele estendeu a mão direita. “Imagino que você saiba onde Holo está, certo?” Ele perguntou, como se perguntasse sobre o clima.
“Nós somos a Companhia Milone.”
Lawrence apertou a mão de Marheit, feliz por ter escolhido a companhia certa para negociar.
“Assassinato de nossos funcionários e incêndio de nossas instalações são fatos da vida diária para nós. É por isso que fazemos questão de conhecer a cidade melhor do que ninguém. Temos contingências para qualquer emergência. Mesmo se uma legião de cavaleiros fosse invadir a cidade, sobreviveríamos. Mas temos um rival.”
“A Igreja?”
“De fato. A Igreja, como nós, tem uma forte presença. Seus missionários da linha de frente são especialistas como nós nesta questão, superando até mesmo as nossas habilidades. Você está ciente disso, sem dúvida.”
“Sim, eles são onipresentes e ardilosos.”
“Se a Igreja iniciar uma busca a sério, você não deve correr antes de pensar — fique escondido em um lugar. É claro que esperamos ter o acordo concluído até lá. Oh... quase que me esqueço, as senhas são ‘Pireon, numai’.”
“Duas grandes moedas de ouro?”
“Pareceu propício. Vou rezar para o seu sucesso.”
“Entendo. Suas esperanças serão cumpridas.”
Lawrence apertou a mão de Marheit novamente, depois subiu na carroça. A carroça era completamente normal, do tipo que você veria em qualquer lugar, mas tinha um toldo que tornava impossível ver quem estava dentro. Isto em si, no entanto, não ajudaria Holo fugir, mas sim levar Lawrence até ela. Na verdade, era menos sobre levar Lawrence até ela e mais sobre ocultar seu paradeiro.
Os agentes da Companhia Milone se envolveram no tumulto do dia anterior e seguiram os criminosos sem saber o que estava acontecendo. Assim como eles descobriram onde Holo estava, eles assumiram que a Companhia Medio tinha pessoas observando também. Não existia tal coisa como cautela demais.
Mercadores tentariam enganar um ao outro assim que se entreolhassem — e mais ainda quando não estivessem se olhando.
Juntamente com outro funcionário da Companhia Milone quem estava cavalgando, Lawrence desarmou o assoalho da carroça e olhou para o calçamento que passavam lentamente.
“Uma vez que eu descer, devo tatear a parede à direita e ir em frente, certo?”
“Seu objetivo está no final. Se tudo correr bem, uma escotilha se abrirá acima de você. Caso escute a palavra 'racche', aguarde a escolta chegar. No entanto se você ouvir 'peroso', fuja com Holo pela rota prevista imediatamente.”
“O bom e o mal resultado, eh?” disse Lawrence.
“Fácil de entender, não é?”
Lawrence deu um sorriso irônico e acenou em compreensão.
“Chegaremos lá em breve.”
Imediatamente após o funcionário da Milone falar, o carroceiro bateu na madeira. Era o sinal de parada.
A carroça freou ao som de cavalos relinchando enquanto o carroceiro gritava raivosamente com alguém. Lawrence desceu pelo buraco deixado pelas tábuas removidas e empurrou para o lado uma grande pedra aos seus pés. Sob a pedra havia um buraco escuro. Lawrence pulou imediatamente e caiu em pé com respingos. Tendo confirmado que a descida do seu passageiro ocorreu bem, seus companheiros acima deslizaram a pedra de volta ao lugar, deixando a passagem em escuridão total.
Alguns momentos depois, a carroça voltou a andar como se nada tivesse acontecido.
“Estou surpreso que sejam tão preparados,” disse Lawrence, meio chocado enquanto colocava a mão na parede à sua direita e caminhava lentamente em frente.
O túnel já tinha sido utilizado para transportar água, mas desde que as tubulações de água agora conectavam o mercado, eles não eram mais usados. Isso era praticamente tudo que Lawrence sabia, mas o conhecimento da Companhia Milone sobre o sistema era completo, e eles cavaram extensões não autorizadas para os túneis se conectarem a várias construções.
A Igreja também se destacava em tais subterfúgios. Era dito que usavam a escavação de túmulos como desculpa para a construção de passagens subterrâneas secretas para espionar os hereges e para evasão fiscal. A Igreja era poderosa, o que significava que tinha muitos inimigos. Rotas de fuga eram sempre úteis.
Grandes cidades que abrigavam as principais filiais da Igreja ou companhias como Milone eram emaranhadas de passagens que dificilmente eram diferentes de catacumbas onde os demônios viviam. Era como viver em uma teia de aranha, um mercador falou para Lawrence uma vez.
Lawrence compreendia agora a terrível verdade dessa declaração.
O túnel era escuro e úmido, mas ainda melhor do que alguns dos becos que ele andou, o que significava que estava bem conservado.
Isso tranquilizou Lawrence. A Companhia Milone era poderosa.
“Ah, aqui está.”
Lawrence ouviu os ecos de seus passos e percebeu que tinha chegado ao fim. Ele estendeu a mão e logo sentiu a parede.
Um mercador viajante estava acostumado a ser atacado por cães selvagens em estradas sem lua. Lawrence estava confiante de que, se o pior acontecesse e tivesse que correr por este túnel, ele seria capaz de encontrar a parede.
Acima e à direita, havia supostamente o armazém de uma loja de variedades com conexões com a Companhia Medio. Este era o lugar onde Holo era mantida. Diretamente acima Lawrence era a base temporária deles, e aparentemente eles construíram secretamente um caminho entre os dois. O grau de preparação era arrepiante, mas também poderia ter sido construído para facilitar a expansão da companhia em outros países, Lawrence lembrou a si mesmo.
Um sino soou distante de algum lugar. Era o sinal de abertura do mercado. Também era o sinal para o início do plano, então, sem dúvida, o inferno estava acontecendo acima dele. Se eles não conseguissem libertar Holo até o momento em que o sino que marcava o início do trabalho tocasse, eles realmente estariam com dificuldades — o comerciante de mercadorias voltaria para o seu armazém.
Ele poderia ser um protégé¹ da Medio, mas as contas chamavam independente dele estar alojando um refém. O comércio nunca parava, afinal.
O problema era o número de pessoas que vigiavam Holo. Se os seus adversários usassem muitas pessoas, tornaria o local óbvio para a Companhia Milone, mas se usassem poucas, não seria uma guarda eficaz. Lawrence esperava que eles alocassem guardas na intenção de manter em total segredo a localização de Holo.
Quanto mais pessoas lá, pior a luta seria. Os atacantes não estariam segurando cordas e vendas nos olhos, mas armas afiadas e tacos.
Isso complicaria ainda mais uma situação já difícil, e Lawrence queria desesperadamente evitar isso.
Lawrence se perguntou quanto tempo tinha passado enquanto pensava. Ele estava calmo no início, mas suas pernas agora tremiam o suficiente para espirrar água ao seu redor. Ele estava profundamente preocupado. Tentou acalmar as pernas trêmulas, sem sucesso.
Ele tentou se alongar, mas apenas aumentou sua preocupação e fez seu coração bater mais forte.
Olhou para cima, esperando que o alçapão acima se abrisse em breve.
De repente, ele congelou, acometido pelo medo.
Ele chegou ao lugar errado?
“C-certamente não,” ele respondeu a si mesmo, certificando-se de que era o beco sem saída correto.
Só então, ele ouviu uma voz acima dele.
“Racche,” disse imediatamente seguido pelo som de tábuas se soltando de uma fundação.
“Racche,” disse a voz de novo, para o qual Lawrence disse, “Numai!” “Pireon,” veio a resposta, junto com um raio de luz, enquanto o assoalho deslizava para o lado.
“Holo,” exclamou Lawrence quando viu seu rosto.
Impassível, Holo disse algo para a pessoa que estava ao seu lado. Ela olhou de volta para Lawrence.
“Como eu vou descer se você não sai do caminho?”
Não seria errado dizer que Holo estava falando no seu tom habitual, mas quando ele a ouviu falar, Lawrence percebeu que queria ver seu rosto feliz e ouvir sua voz animada.
Ele fez o que Holo sugeriu e deu um passo para o lado, esperando ela descer — ainda assim, o que encheu seu coração não era a satisfação de ver seu rosto, mas a decepção por não ter ouvido sua voz alegre.
Claro, ele sabia que não era nada mais do que um desejo e não disse nada, mas quando Holo desceu e olhou para cima para receber um pacote, não dando a mínima atenção pra ele, o descontentamento em seu coração ficou mais forte.
“O que você está sonhando? Aqui, isto é para você. Pegue e vamos.”
“Qu — oh.”
Lawrence segurou o pacote que foi jogado para ele e desceu pelo túnel como que empurrado. Algo retiniu no pacote — devem ter roubado alguns objetos de valor para dar a ideia de roubo. Logo outra pessoa desceu do alçapão, que foi fechado. O túnel ficou completamente escuro novamente. Esse era o sinal para se mover. Lawrence não disse nada para Holo e começou a caminhar.
Eles virariam à direita no final da passagem, tateando ao longo da parede à esquerda até chegar a seu fim. Eles, então sairiam do túnel e entrariam na carroça que os esperava para serem levados para outra passagem subterrânea.
Andando no túnel em silêncio, eles finalmente chegaram ao seu destino.
Lawrence subiu a escada que havia sido preparada e bateu três vezes contra o teto.
Se a escolta falhasse em chegar no ponto de encontro, eles teriam que tomar um caminho diferente — mas assim que a possibilidade passou pela mente de Lawrence, um buraco foi aberto no teto, e imediatamente acima estava a carroça.
Depois de confirmar as identidades de cada um com uma troca de “Pireon,” “Numai,” Lawrence subiu na carroça.
“Parece que conseguiram chegar com segurança,” disse o funcionário da Milone enquanto ele puxava Holo para cima. Ele estava compreensivelmente surpreso ao ver as orelhas de lobo. “Negócios são cheio de surpresas,” disse ele com um sorriso, deslizando a grande pedra da calçada de volta para sua posição original.
“Havia outro com a gente,” disse Lawrence.
“Ele vai recolher a escada e sair em outro lugar,” disse o funcionário. “Uma vez que ele entregar as informações sobre esses patifes da Medio para os nossos amigos, ele vai deixar a cidade.”
A eficiência quase assustadora era devido à sua execução diária e refinamento de planos e contra planos. Uma vez que o empregado colocou o assoalho da carroça, ele disse um rápido “boa sorte para vocês,” e pegou os pacotes de Lawrence e Holo antes de sair da carroça. Ao sinal do empregado, o carroceiro pôs a carroça em movimento. Até agora, tudo estava indo conforme o planejado.
Tudo, exceto a reação de Holo, claro.
“Estou tão feliz que esteja bem,” foi tudo que Lawrence conseguiu falar. Ele não podia dizer mais nada para Holo, que estava sentada em frente a ele, desamarrando uma tira de pano que estava em torno de seu pescoço e tentando cobrir suas orelhas.
Ela só respondeu depois de terminar alguns ajustes em seu capuz improvisado. “Você está feliz que eu estou bem, é isso?”
Lawrence queria dizer que sim, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Holo olhava para ele como se estivesse prestes a arrancar sua cabeça.
Talvez ela não estivesse bem.
“Diga meu nome, então!”
Se ela podia gritar daquele jeito, ela não estava na condição que Lawrence temia. Ainda assim, sua veemência a fez parecer ter o dobro de seu tamanho normal, e ele se encolheu com isso.
“Uh... Holo?”
“Holo a Sábia Loba!”
Soou quase como um rosnado ameaçador, mas Lawrence não tinha ideia do motivo para ela estar com raiva. Se ela queria um pedido de desculpas, ele estava pronto para se desculpar cem vezes. Ela tinha sido a isca para ele no fim das contas.
Ou algo aconteceu com ela que ela não poderia dizer?
“Posso me lembrar de todas as pessoas que já me envergonharam em toda minha vida. E agora devo adicionar outro nome a essa lista. O seu!”
Alguma coisa havia acontecido com ela. Ainda assim, sua raiva parecia diferente do comportamento de garotas que viu em outras vilas e que foram levadas por bandidos ou ladrões. E se ele dissesse algo tolo, estaria apenas jogando óleo na fogueira da raiva.
Assim que o silêncio se prolongou; e talvez o próprio silêncio começou a irritá-la porque ela se levantou de seu assento e se aproximou de Lawrence.
Seus punhos brancos e cerrados tremiam.
Não havia nenhum lugar para Lawrence correr. Holo ficou diretamente na frente dele.
Suas cabeças estavam na mesma altura, o que deu ao olhar de Holo uma força incrivelmente penetrante. Ela abriu os pequenos punhos e agarrou o peito da camisa de Lawrence. Sua força combinava com sua aparência — Lawrence não tinha imaginado que seu aperto seria tão fraco.
Mais uma vez ele percebeu como seus cílios eram longos.
“Você me disse, não disse — você me disse que viria por mim.”
Lawrence assentiu.
“E eu... eu acreditava totalmente que você viria... grrh... só de pensar nisso é irritante!”
Só então, Lawrence percebeu de forma exata, como se despertasse de um sonho.
“Você é um homem, não é? Você deveria estar na linha de frente, lutando com unhas e dentes. Mas você estava naquele buraco no chão — você me deixou eu me fazer de tola —”
“Mas você está ilesa, certo?” Perguntou Lawrence, a interrompendo. Holo o ignorou, descontente.
Ela hesitou por algum tempo antes de finalmente assentir, como que forçada a beber algo muito desagradável.
Holo provavelmente teve seus olhos vendados. Ela pode ter confundido quem veio ajudá-la com Lawrence e disse algo que diria apenas para ele. Provavelmente era por isso que ela sentia — e o culpava por isso — uma vergonha desnecessária.
Perceber isso fez Lawrence feliz. Ele sabia que se tivesse sido quem a resgatou, ela teria mostrado a expressão que desejava ver.
Lentamente, ele colocou os braços em volta de Holo, que ainda estava segurando a camisa, ele a puxou mais para perto. Holo resistiu um pouco, irritada, mas logo cedeu. As orelhas que estavam de pé e eram claramente visíveis sob o capuz improvisado agora estavam caídas. A expressão levemente mal-humorada substituiu sua raiva inicial.
Embora ele pudesse viajar pelo mundo e acumular uma grande fortuna, a única coisa que Lawrence poderia nunca conseguir estava bem aqui.
“Estou contente que você esteja bem,” ele disse.
Os olhos onde a raiva brilhava apenas segundos atrás de ameaçavam se fechar. Holo assentiu, os lábios contrariados.
“Enquanto você carregar esse trigo, eu não morrerei.” Holo cutucou o bolso do peito, sem mover os braços dele para longe. “Para uma garota, existem coisas tão dolorosas quanto a morte.”
Lawrence tomou a mão do Holo, e Holo se aproximou dele, descansando o queixo em seu ombro. Ele sentiu o peso intenso, mais pesado do que um saco cheio de trigo.
“Heh. Sou tão adorável que até mesmo os machos humanos se apaixonam por mim. Não que um deles esteja apto para ser meu companheiro,” disse Holo dissimuladamente.
Quando finalmente soltou Lawrence, ela carregava seu sorriso habitual. “Se eles tentassem me tocar, eu teria que lembrá-los que poderiam perder um membro, ou pior — e eles ficavam pálidos com isso, oh sim! Hee-hee-hee!” ela riu, suas presas afiadas visíveis por trás de seus lábios rosados. Era verdade; todos vacilariam diante de tal visão.
“Mas houve uma exceção,” acrescentou ela, seu deleite desaparecendo. Esta era uma nova raiva, uma raiva calma, pensou Lawrence.
“Quem você acha que estava lá entre aqueles que me capturaram?”
Sua expressão era puro desgosto. Ela mostrou levemente as presas com raiva, e Lawrence inconscientemente soltou sua mão.
“Quem estava lá?” ele perguntou.
Quem poderia enfurecer Holo assim? Talvez alguém de seu passado. Holo franziu o nariz enquanto Lawrence olhava. Ela falou.
“Era Yarei. Você se lembra dele, sem dúvida.”
“Isso —”
Não pode ser, ele ia dizer — mas Lawrence não chegou a terminar sua frase porque algo de repente lhe ocorreu.
“É isso! A pessoa que está apoiando a Companhia Medio é o Conde Ehrendott!”
Holo estava pronta para desabafar para Lawrence, mas agora seus olhos se arregalaram de surpresa com sua reação.
“Alguém com enormes extensões de trigo pode solicitar o pagamento em qualquer moeda que quiser! E se eles conseguirem tirar os impostos de seu trigo, seria como um presente dos céus para a Companhia Medio, o Conde, e até mesmo para os moradores! Claro! E isso explica por que havia alguém lá que sabia que você era uma loba!”
Holo olhou para Lawrence sem expressão, mas ele pareceu não a notar enquanto se levantava e ia para a janela que dava para os carroceiros.
Ele abriu a janela pequena, e um deles se inclinou para ouvir.
“Você ouviu o que eu disse?”
“Ouvi, de fato.”
“A pessoa apoiando a Companhia Medio é o conde Ehrendott. O conde e os mercadores que lidam com o seu trigo são a razão das moedas de prata estarem sendo coletadas. Por favor, informe ao Sr. Marheit.”
“Será feito,” ele disse e em seguida saltou imediatamente da carroça e saiu correndo.
Lawrence imaginou que os cavalos que transportavam os negociadores com destino a Trenni já haviam saído, mas se as negociações fossem prolongadas, eles seriam capazes de propor condições adicionais. Conhecer a origem das moedas de prata da Companhia Medio significava ser possível para uma companhia com a reputação e os recursos como a Milone apanhar o negócio bem debaixo do nariz deles.
Se tivesse percebido isso antes, talvez a captura de Holo pudesse ter sido evitada e a transação inteira poderia ter sido muito mais calma.
Era frustrante para Lawrence pensar sobre isso, mas não havia nada a fazer agora. Foi bom descobrirem a verdade.
“... eu não consegui acompanhar.”
Lawrence voltou ao seu lugar, de braços cruzados, enquanto as possibilidades corriam na sua cabeça, então ele ouviu a reclamação de Holo. Foi quando ele percebeu que a cortou no meio da frase.
“Explicar tudo pode levar algum tempo. Vamos apenas dizer que sua informação foi a chave para descobrir tudo.”
“Huh.”
Lawrence sabia que não seria preciso muito esforço para Holo entender o que estava acontecendo, mas ela parecia não se importar.
Holo simplesmente concordou com a cabeça, desinteressada, e fechou os olhos.
Ela parecia irritada com a súbita mudança de assunto.
Lawrence repreendeu a si mesmo por achar o mau humor dela tão charmoso.
Poderia ser uma armadilha que ela tinha feito para ele, afinal, para demonstrar o quanto ela estava irritada com a interrupção.
“Me desculpe por te interromper,” disse Lawrence por meio de uma desculpa sincera.
Ela abriu um único olho rapidamente para observá-lo, em seguida, rebateu seu pedido de desculpas com um pequeno “Deixa para lá.”
Destemido, Lawrence continuou falando. Holo era ou infantil ou astuta — um extremo ou outro.
“Yarei ainda deveria estar trancado em um armazém até o final do festival da colheita. Se ele está na cidade, significa que está envolvido no negócio. Ele está familiarizado com os mercadores que compram trigo da vila, e o líder da aldeia confia nele para fazer a negociação. Além disso, a maior parte das vendas de trigo são realizadas imediatamente após o festival,” disse Lawrence.
Seus olhos se fecharam, Holo pareceu considerar isso, finalmente abrindo seus olhos longamente. Seu humor parecia ter melhorado.
“Ele deve ter ouvido o meu nome pelo garoto Zheren. Yarei estava usando roupas muito refinadas para qualquer aldeão e estava se achando demais.”
“Ele deve estar profundamente ligado a Companhia Medio. Você falou com ele?”
“Só um pouco,” disse Holo. Ela se livrou da sua raiva com um suspiro. Talvez fosse a lembrança de sua conversa com Yarei que a irritava.
Lawrence se perguntava o que ele poderia dizer para ela. Holo não tinha carinho pelos moradores do vilarejo, isso era verdade, mas ela decidiu ir embora. Ele não achava que seu rancor ia mais longe do que isso.
Enquanto Lawrence ponderava, Holo falou.
“Eu não sei quantos anos eu vivi por lá. Talvez tantos quanto os pelos da minha cauda.”
A cauda de Holo balançava sob o casaco.
“Eu sou Holo a Sábia Loba. A fim de proporcionar a maior colheita, havia anos que tinha que deixar a terra descansar, por isso haviam épocas de colheita escassa. Ainda assim, os campos que dei auxílio seriam mais produtivos que os outros ao longo do tempo.”
Esta era a segunda vez que explicava isso, mas Lawrence assentiu para que ela continuasse.
“Os moradores me tratavam como a deusa da colheita — mas não por respeito. Era semelhante a um desejo de me controlar. Eles não perseguem a pessoa que corta o último feixe de trigo? Eles não a prendem com uma corda?”
“Ouvi dizer que eles prendem a pessoa que corta o ultimo feixe em um armazém por uma semana com comida farta e todas as ferramentas que vão usar no ano seguinte.”
“A carne de porco e os patos eram saborosos, isso é verdade.”
Era uma reflexão divertida. Os contos eram aparentemente verdade — contos de pessoas presas apenas para serem soltas sem se lembrar de terem comido tudo. E a responsável estava sentada bem na sua frente.
O vago temor que acompanhava essas histórias agora possuía uma forma concreta: a imagem de Holo em sua forma de lobo, devorando pato e carne de porco.
“Ainda assim,” disse Holo séria enquanto se propunha a explicar o motivo de sua raiva. Lawrence se recompôs.
“O que você acha Yarei me disse?” Holo mordeu o lábio, momentaneamente como se estivesse se perdendo nas palavras. Ela esfregou o canto do olho com o dedo e continuou. “Ele disse que ouviu o meu nome pelo Zheren, e isso o fez pensar. Eu... é patético, mas eu estava tão feliz de ouvir aquilo...”
Holo baixou a cabeça, e lágrimas transbordaram de seus olhos.
“Então, ele me disse que os dias em que tinham que se preocupar em me agradar acabaram. Que eles não precisavam mais temer a minha natureza inconstante. Já que a Igreja estava atrás de mim, eles deveriam apenas me entregar e dizer adeus às velhas tradições para sempre!”
Lawrence sabia sobre as trocas do Conde Ehrendott com filósofos naturais e como ele introduziu novas técnicas agrícolas para aumentar a produtividade dos campos.
Mesmo que a oração da pessoa mais devota, eventualmente, mostrasse resultados, o espírito ou deus responsável seria descartado e as pessoas começariam a achar a ideia de depender de seus próprios esforços, muito mais atraente. Se os novos métodos de agricultura trouxessem prosperidade onde a oração falhou, não seria surpresa que o povo começasse a acreditar que o deus ou espírito a quem rezavam era caprichoso e pouco confiável.
O próprio Lawrence às vezes atribuía as mudanças da sorte a algum deus incompreensível.
Mas a garota diante dele não era o que lhe vinha à mente.
Ela disse que sua razão para ficar na aldeia, era que tinha se dado bem com os moradores, que seu amigo de muito tempo atrás havia pedido para ela cuidar da colheita. Ela sempre quis que os campos prosperassem. Mas enquanto ela supervisionava as terras durante séculos, as pessoas começaram a negar sua existência, e agora ouvir que eles queriam se livrar dela — o quanto isso deveria doer?
Lágrimas escorriam livremente dos olhos de Holo. Seu rosto mostrava uma mistura de frustração e tristeza.
Ela disse que odiava ficar sozinha. Quando um deus força as pessoas a adorá-lo, talvez seja porque se sinta sozinho.
Se a situação de Holo provocou tal noção em Lawrence, não era surpresa que ele quisesse enxugar as lágrimas do rosto dela.
“No fim das contas isso realmente não importa. Quero voltar para as terras do norte, então devo ir embora de um jeito ou de outro. Se eles não têm amor por mim, vou simplesmente sacudir a poeira das minhas patas e partir. Seria um bom jeito de se separar. No entanto... não posso simplesmente partir assim.”
Ela parecia ter parado de chorar, mas Lawrence ainda podia ouvi-la soluçando enquanto ele acariciava sua cabeça suavemente. Ele deu o maior sorriso que pôde e falou.
“Eu — não, nós — somos mercadores. Enquanto sairmos no lucro, triunfaremos. Nós rimos quando o dinheiro entra, e choramos apenas na falência. E nós vamos rir,” ele disse.
Holo olhou momentaneamente, em seguida para baixo de novo, lágrimas caindo de seus olhos mais uma vez. Ela balançou a cabeça, e então olhou para cima. Lawrence enxugou suas lágrimas uma segunda vez e Holo respirou fundo. Ela enxugou as lágrimas persistentes dos cantos de seus olhos quase violentamente.
Por vários segundos, seus longos cílios úmidos brilharam.
Holo suspirou. “... eu me sinto melhor.”
Ela limpou os restos das lágrimas com uma mão e, olhando envergonhada, deu levemente um soco no peito de Lawrence com seu pequeno punho.
“Já faz vários séculos desde que tive uma boa conversa. Minhas emoções estão muito frágeis. Já chorei duas vezes diante de você, mas eu teria feito isso, mesmo se não estivesse aqui. Entende o que estou dizendo?”
Lawrence ergueu as mãos e encolheu os ombros. “Você está me dizendo para não te entender errado.”
“Mm-hm.”
Holo alegremente esfregou o punho enrolado em volta do peito de Lawrence.
Ela estava sendo quase insuportavelmente querida, então, Lawrence não pôde deixar de provocá-la um pouco.
“De qualquer forma eu só te trouxe comigo para me ajudar a ganhar dinheiro. Até a Companhia Milone concluir as negociações, nosso trabalho é escapar. Ter alguém chorando e se deixando abalar no meio do caminho é apenas um fardo. Portanto, independentemente de quem estiver chorando na minha frente, eu —”
Lawrence não podia ir adiante com a sua brincadeira.
Holo olhou para ele como se tivesse sido atingida.
“... Isso não é justo,” ele resmungou.
“Mm-hm. Privilégio feminino.”
Lawrence bateu na cabeça dela levemente por ser tão descarada.
A janela do banco do carroceiro se abriu, como se este estivesse esperando o momento oportuno. Ele sorriu com relutância.
“Chegamos. Vocês já terminaram sua conversa?”
“Certamente terminamos,” disse Lawrence com o entusiasmo afetado enquanto removia o assoalho da carroça. Ao lado dele, Holo ria loucamente.
“É verdade o que dizem, que as pessoas que conversam sobre lucro são muito estranhas,” disse o carroceiro.
“Oh... quer dizer as minhas orelhas?” Holo disse maliciosamente.
O carroceiro riu — ela conseguiu ganhar dele. “Isso me faz querer voltar aos meus dias de mercador viajante, olhando vocês dois.”
“Eu não faria isso se fosse você,” disse Lawrence, empurrando a pedra e confirmando que era o túnel certo. Ele, então, voltou à carroça para deixar Holo descer primeiro. “Você pode acabar encontrando alguém como ela.”
“Ah, um banco de uma carroça é muito grande para apenas uma pessoa. Eu gostaria de ter essa sorte!”
Lawrence riu; quase qualquer comerciante se sentia da mesma forma.
Sem mais palavras, ele desceu para o túnel. Se tivesse continuado, tinha certeza que envergonharia a si mesmo. E de qualquer forma, Holo o aguardava.
“Certamente eu também não tenho sorte... por ser pega por gente como você!” disse Holo ali na escuridão, uma vez que o carroceiro colocou a pedra novamente e foi embora com um ruído suave.
Lawrence pensou em como virar a mesa enquanto o som de relincho de um cavalo ecoava fracamente acima deles, mas finalmente decidiu que não importava o que dissesse, Holo ganharia no final. Ele desistiu.
“Você é ardilosa demais.”
“É o que me faz tão encantadora, não?” disse Holo, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. O que ele poderia dizer sobre isso?
Não, é porque eu estar sempre em busca de uma réplica que acabo caindo na armadilha dela, pensou consigo mesmo.
Ele decidiu tomar o caminho mais inesperado.
Lawrence tossiu baixinho.
Então ele olhou para longe. “Bem... sim, você é muito charmosa,” ele disse no tom mais tímido que conseguiu.
Não havia maneira dela antecipar tal resposta, ele estava certo.
Ele se esforçou para não rir na escuridão. Como esperava, ela ficou em silêncio.
Agora, para o golpe final, pensou.
Quando se virou para encará-la, uma sensação macia preencheu sua mão.
Sua mente ficou em branco ao perceber que era a pequena mão de Holo, incrivelmente macia.
“... estou tão feliz.”
O coração de Lawrence não pôde deixar de se agitar com estas doces palavrar femininas. Como que para reforçar, a mão dela apertou a sua levemente, como se estivesse envergonhada em admitir sua felicidade.
Então foi Holo quem deu o golpe final.
“Você realmente é um garoto adorável,” disse ela, se divertindo com sua própria piada — o que era ainda mais irritante. Lawrence não estava zangado com ela por dizer isso, mas com si mesmo por ter dado uma chance a ela.
E ainda assim, ele não pensou em soltar a mão dela, o que pareceu de certa forma patético — e Holo segurando sua mão o fez se sentir excessivamente satisfeito.
“Muito ardilosa,” ele murmurou para si mesmo.
O túnel estava quieto.
E então foi preenchido com os ecos da risada de Holo.
Nota:
1 – Pessoa, geralmente mais jovem, que é ajudada e treinada por algo ou alguém mais famoso.