Trigo e Loba Japonesa

Tradução: Virtual Core


Volume 1

Capítulo 4

Toda a Companhia Milone passou de chocada a vigilante ao serem visitados por Lawrence. Sem surpresa — enquanto Lawrence propunha que juntos eles lidassem com o plano por trás da fraude de Zheren. Se Lawrence tinha achado a proposta inicial de Zheren difícil de acreditar, a Companhia Milone achava o esquema de Lawrence muito mais difícil de engolir.

E, claro, havia a questão das peles. Eles não estavam tão irritados a ponto de estragar as transações futuras, mas o supervisor sorriu ironicamente ao ver Lawrence.

Mesmo assim, o que estimulou a Companhia Milone foi ver o contrato que Lawrence tinha assinado com Zheren diante do testemunho público, provando que eles podiam investigar o negócio o quanto eles desejassem antes de prosseguir.

Lawrence também lhes pediu para verificar quem estaria apoiando Zheren, reforçando que isso não era uma simples fraude.

Se fizessem isso, a Companhia Milone naturalmente se perguntaria por que um plano tão complicado para uma mera fraude. Eles queriam investigar simplesmente para referência futura, Lawrence havia antecipado isso — e ele estava certo.

Afinal, se tudo que Lawrence disse era verdade, a Companhia Milone poderia conseguir um enorme lucro.

A Companhia Milone, assim como qualquer empresa, estava sempre vigilante por uma chance de ficar à frente de seus concorrentes. A expectativa de Lawrence de que eles aceitariam uma proposta se ela prometesse ganho suficiente estava correta.

Tendo conseguido um interesse inicial no plano, a próxima tarefa de Lawrence era provar a existência de Zheren. Ele e Holo se apressaram para a taverna Yorend naquela noite e informaram à garçonete que desejavam falar com Zheren. Como esperado, Zheren não frequentava o local todas as noites, e a garçonete disse para Lawrence que ele ainda não havia chegado naquele dia em específico. Mas quando o sol se pôs, Zheren chegou.

Lawrence iniciou uma conversa ociosa de mercador sobre vários assuntos, e ao mesmo tempo um empregado da Companhia Milone sentou em uma mesa próxima, escutando. Nos dias seguintes, a Companhia Milone investigaria Zheren e determinaria se a proposta de Lawrence era verdade ou não.

Lawrence acreditava que Zheren tinha que ter o apoio de um poderoso comerciante. Se isso fosse verdade, seria fácil para a Companhia Milone rastrear.

Havia, no entanto, um problema.

“Conseguiremos a tempo?” Holo perguntou ao retornar à pousada naquela noite.

Assim como Holo sugeriu, o problema era o tempo. Mesmo que as expectativas de Lawrence estivessem corretas, dependendo das circunstâncias eles poderiam perder a chance de conseguir qualquer lucro. Não — ele conseguiria lucro de qualquer forma, mas talvez não o suficiente para induzir a Companhia Milone de agir. Sem eles, seria difícil para Lawrence conseguir um lucro por conta própria. Por outro lado, se a Companhia Milone se mover rapidamente, o ganho potencial seria colossal.

Tanto o seu próprio plano quanto o plano que ele suspeitava que Zheren fazia parte dependiam do tempo.

Devemos ter tempo suficiente. É por isso que fui para a Companhia Milone em primeiro lugar.”

À luz de velas, Lawrence colocou um pouco do vinho que tinha comprado na taverna em uma taça. Ele olhou para a taça brevemente antes de beber metade de uma vez. Holo estava sentada de pernas cruzadas sobre a cama; ela bebeu sua taça de uma vez e olhou para Lawrence.

“Essa companhia é realmente tão capaz?” ela perguntou.

“Fazer negócios em países estrangeiros requer ouvidos muito aguçados — ouvir mercadores conversando em um bar ou clientes no mercado. Se eles não fossem muito melhores em coletar informações do que seus concorrentes, nunca seriam capazes de abrir filiais em países estrangeiros, muito menos fazer com que essas filiais prosperassem. A Companhia Milone é muito boa nesse tipo de coisa. Investigar alguém como Zheren é brincadeira de criança para eles.”

Lawrence serviu mais vinho para Holo — por insistência dela — enquanto ele falava. No momento em que ele terminou, Holo já havia esgotado seu copo novamente. Era assombroso.

“Huh.”

“O quê?” Holo perguntou, olhando preguiçosamente para longe. Primeiro Lawrence pensou que ela deveria estar pensando em algo, mas logo ficou claro que ela estava apenas bêbada.

“Você bebeu um bocado,” ele falou.

“Os encantos do vinho são muitos.”

“Suponho que este seja uma boa colheita. Normalmente nunca bebo algo tão refinado.”

“É mesmo?”

“Quando o dinheiro está pouco, eu bebo vinho grosso com pingos de uva, um vinho tão amargo que não pode ser bebido sem adicionar açúcar, mel, ou gengibre nele. Vinho transparente o suficiente para ver o fundo do copo é um verdadeiro luxo.”

Ouvindo isso, Holo olhou vagamente para sua taça. “Hum. E eu achava que isso era normal.”

“Ha! Bem, você é mais importante e poderosa do que eu.”

A expressão de Holo endureceu. Ela colocou o copo no chão, logo em seguida se enrolou em uma bola sobre a cama.

Sua reação foi tão repentina que Lawrence ficou olhando em choque. Ele assumiu que isso não foi simplesmente porque ela estava com sono.

“O que há de errado?” Ele perguntou, não tendo a menor ideia de qual era o problema dela, mas as orelhas de Holo nem se mexeram.

Ele não disse mais nada enquanto procurava em seu cérebro tentando descobrir o problema dela, e finalmente descobriu — a conversa que tiveram quando eles se encontraram pela primeira vez.

“Você está com raiva porque eu disse que você tem mais status do que eu?”

Quando Lawrence exigiu ver forma de lobo do Holo, ela disse que odiava ser temida.

Ela também desprezava ser celebrada como uma espécie de divindade.

Lawrence se lembrou de uma canção que ouvira de um bardo viajante. Ela alegava que o motivo de um deus precisar de um festival todo ano era porque ele se sentia solitário.

“Me desculpe. Não quis dizer nada com isso.”

Holo não se mexeu.

“Você é... como posso dizer? Você não é nada especial — espere, não, isso está errado. Você não é uma plebeia. Ordinária? Não, não é isso...”

Lawrence ficava cada vez mais agitado enquanto falhava em encontrar as palavras certas.

Tudo o que ele queria dizer era que Holo não era especial, mas ele simplesmente não conseguia articular isso.

Enquanto ele continuava a pensar sobre alguma coisa para dizer, as orelhas do Holo finalmente se mexeram, e ele ouviu levemente seu riso.

Holo virou e sorriu com indulgência para Lawrence. “Tão confuso. Você nunca vai atrair uma fêmea desse jeito.”

“Urgh.”

Lawrence lembrou imediatamente de uma época em que ele teve que ficar mais tempo em uma determinada pousada, esperando uma tempestade de neve passar, e acabou se apaixonando por uma menina de lá. Ela o rejeitou categoricamente, por nenhuma outra razão além do que Holo acabou de mencionar: ele desesperadamente não sabia se expressar.

A aguçada loba logo percebeu isso. “Estou certa, não é?” ela riu. “Mesmo assim, isso foi... imaturo da minha parte.”

Lawrence se acalmou com a desculpa de Holo, e ofereceu a sua novamente. “Sinto muito.”

“...Entretanto, eu realmente detesto isso. Os lobos mais jovens eram amigáveis o suficiente, mas havia sempre uma linha. Cansada disso, eu deixei a floresta. Suponho” — Holo olhou para longe, em seguida, olhou novamente para as mãos — “que eu estava à procura de um amigo.”

Holo deu um sorriso autodepreciativo.

“Um amigo, eh?”

“Mm.”

Lawrence teria pensado que este assunto seria desagradável para ela, mas a respostas de Holo foi estranhamente otimista, por isso ele fez a pergunta que estava em sua mente.

“E você encontrou?”

Holo sorriu timidamente e não respondeu imediatamente.

Dada a sua expressão, sua resposta era óbvia. Ela sorriu enquanto pensava no amigo que tinha feito.

“Sim.”

Mas Lawrence não achou sua expressão feliz nem um pouco engraçada.

“Ele é um companheiro da vila de Pasloe,” ela continuou.

“Oh, aquele do trigo?”

“Mm. Ele é um pouco tolo, mas muito alegre. Ele não se surpreendeu nem um pouco quando viu a minha forma de lobo. Acho que ele é um pouco estranho, mas um bom companheiro no fim das contas.”

Ao ouvi-la falar dessa forma de alguém querido, Lawrence torceu o nariz, mas o escondeu atrás de seu copo de vinho — ele não queria que ela visse.

“No entanto ele é mesmo um tolo. Às vezes fico até sem saber o que fazer.”

Holo falou alegremente, parecendo um pouco tímida por discutir o passado. Ela já não olhava para Lawrence, mas abraçava sua cauda, brincando distraidamente com seu pelo.

De repente, ela soltou uma risadinha infantil e caiu de costas na cama, parecendo completamente uma criança contando um segredo para um amigo.

Ela provavelmente estava apenas cansada, mas aos olhos de Lawrence parecia que ela o tinha deixado para trás e estava deixando que suas memórias a envolvessem.

Isso não era motivo para despertá-la, assim, com um pequeno suspiro, ele esvaziou a taça de vinho.

“Amigos, eh?” ele murmurou, em seguida, colocou o copo sobre a mesa e se levantou. Ele caminhou até a cama e colocou o cobertor por cima de Holo.

As bochechas dela estavam levemente coradas enquanto dormia inocentemente, mas quanto mais ele olhava para ela mais isso nublava seus pensamentos, então ele deu as costas para ela e se dirigiu para sua própria cama.

Mas, quando ele soprou a vela e se deitou, ele sentiu certo arrependimento.

Ele desejou alegar falta de dinheiro e pegar um quarto com uma única cama.

Lawrence suspirou mais profundamente desta vez enquanto desviava seu olhar.

Se seu cavalo estivesse ali, provavelmente teria suspirado por ele também, pensou.

 

“Nós aceitamos sua proposta,” disse o chefe da filial da Companhia Milone em Pazzio, Richten Marheit, em um tom uniforme. Fazia apenas dois dias desde que Lawrence tinha chegado a Companhia Milone com a sua proposta. A companhia era realmente muito eficiente.

“Estou muito grato. Posso supor que você descobriu quem está apoiando Zheren?”

“Ele tem o apoio da Companhia Medio. Nem preciso mencionar que eles são a segunda maior companhia da cidade.”

“A Companhia Medio, eh?”

Sediada em Pazzio, a Companhia Medio tinha muitas filiais. Eles eram a maior corretora agrícola em Pazzio, principalmente para trigo, e eram ainda mais impressionantes por terem seus próprios navios com os quais moviam seus produtos.

Mesmo assim, algo ainda se debatia na mente de Lawrence. A Companhia Medio era grande, mas ele esperava que o apoiador de Zheren fosse ainda maior — talvez um nobre.

“Acreditamos que há uma figura ainda maior por trás da Companhia Medio. Com seus recursos por si só, provavelmente seria impossível de executar o plano que você descreveu. Provavelmente há um nobre operando por trás da Companhia Medio, mas há muitos nobres que lidam com eles e fomos incapazes de reduzi-los a uma única pessoa. Mas, como você mesmo disse, não importa quem seja, contanto que nós sejamos os primeiros a agir.”

Marheit sorriu maliciosamente, mostrando uma confiança nascida dos imensos recursos da Companhia Milone a disposição, algo que Lawrence mal podia imaginar. Sua filial principal era amparada por ninguém menos do que a realeza e sumo sacerdotes.  Eles não tinham nada a temer de um negócio como este.

Era importante para Lawrence não demonstrar qualquer fraqueza. Na negociação, mostrando fraqueza ou submissão era equivalente a perder. Ele tinha que ser ousado.

Ele respondeu em um tom equivalente.

“Bem, então, vamos discutir a divisão dos lucros?”

Não era necessário dizer que estas negociações dariam força aos seus sonhos.

Visto por todos os funcionários da Companhia Milone, exceto o chefe, Lawrence deixou a filial cantarolando uma melodia, incapaz de suprimir a sua felicidade.

Ele propôs que a companhia lhe desse cinco por cento dos seus lucros em moedas. Isto era mero um vigésimo do total, mas Lawrence não conseguia parar de sorrir.

Afinal, se a Companhia Milone se movesse como ele sugeriu, a quantidade de trennis de prata que poderiam ser compradas não era um ou dois mil, mas sim duzentos ou trezentos mil. Se — as estimativas aproximadas sugeriam — eles obtivessem um retorno de dez por cento do negócio, a participação de Lawrence poderia exceder mil moedas de puro lucro. Se ele superasse duas mil moedas, e não fosse muito extravagante, ele seria capaz de abrir uma loja em uma cidade em algum lugar.

No entanto, quando comparado com o ganho que a Companhia Milone estava antecipando, o lucro obtido a partir das moedas de prata eram um mero bônus. Eles se moviam como uma companhia, então esses lucros eram insignificantes.

Lawrence nunca poderia de fato conseguir esse tipo de ganho. Era simplesmente muito grande e nunca caberia em seu bolso — mas se a Companhia Milone pudesse realizar o lucro, eles teriam uma dívida significante com Lawrence e, uma vez que ele abrisse sua loja, poderia fazer um grande lucro cima disso.

Assim, não era surpresa ele estar cantarolando tão alegremente.

“Você parece satisfeito,” disse Holo, finalmente ao fim de sua paciência enquanto caminhava ao lado dele.

“Eu gostaria de ver que homem não ficaria satisfeito em um momento como este. Este é o melhor dia da minha vida.” Lawrence gesticulou expansivamente. O gesto combinava com seu humor, como se estivesse pronto para pegar qualquer coisa com seus braços abertos.

A loja que ele tanto sonhou em abrir estava diante dele.

“Bem, eu estou feliz que tudo está indo muito bem,” disse Holo indiferente, seu humor em contraste com Lawrence. Ela cobriu a boca com a mão.

Não era nada — ela estava apenas de ressaca.

“Eu te disse para dormir na pousada se não se sentisse bem.”

“Eu estava preocupada que você acabasse sendo arrastado para algo desagradável, a menos que eu fosse com você.”

“O que quer dizer?”

“Quê? Precisamente o que eu disse... urp.”

“Honestamente — aguente só mais um pouco. Há uma loja em frente. Vamos descansar lá.”

“...Tudo bem.” Holo assentiu com uma vulnerabilidade que parecia deliberada e agarrou seu braço estendido. Sábia Loba ou não, dificilmente se poderia acusá-la de ter qualquer autocontrole.

Lawrence, desconcertado, murmurou “honestamente,” de novo. Holo não respondia.

A loja na qual entraram era uma taverna anexa a uma pequena pousada. Apesar de visivelmente ser um estabelecimento de bebidas, ela era especializada em refeições leves e da manhã até a noite havia um fluxo constante de mercadores e viajantes que a usavam como um ponto de descanso. Estava um terço cheio quando entraram.

“Suco para um — qualquer tipo serve — e pão para dois,” disse Lawrence.

“Já estamos indo!” disse o atendente atrás do balcão com alegria, em seguida, repetiu a ordem para a cozinha.

Lawrence ouviu o atendente enquanto conduzia Holo para uma mesa vazia no interior da taverna.

O comportamento de Holo era mais felino que lupino enquanto se esparramava sobre a mesa. A caminhada da Companhia Milone aumentou a fadiga do álcool trabalhando através de seu corpo.

“Sua tolerância está longe de ser fraca — você bebeu demais ontem.” Disse Lawrence.

As orelhas de Holo se levantaram sob o capuz com a afirmação de Lawrence, mas ela parecia não ter a energia para olhar para ele.

“Uugh,” ela gemeu.

“Aqui está, suco de maçã e duas porções de pão.”

“A conta?”

"Você vai pagar agora? São trinta e dois lutes.”

“Um momento, por favor,” disse Lawrence, abrindo a bolsa de moedas que estava junto a cintura e vasculhando seu interior. Enquanto ele recolhia as moedas pretas que poderiam ser facilmente confundidas com o bronze, o atendente notou a condição de Holo e sorriu com tristeza.

“Ressaca, eh?”

“Vinho demais,” disse Lawrence.

“Esses são os erros da juventude! É a mesma coisa com a bebida assim como todo o resto — há um preço. Vários jovens mercadores saem cambaleando daqui com os rostos pálidos.”

Qualquer mercador viajante de fato já teve essa experiência algumas vezes. O próprio Lawrence já foi vítima disso em várias ocasiões.

“Aqui está, trinta e dois lutes.”

“Exato. Você deveria descansar aqui por um tempo. Aposto que não pôde fazer todo o caminho de volta para sua própria pousada, certo?” disse o atendente.

Lawrence assentiu, então o atendente riu cordialmente e se retirou para trás do balcão.

“Beba um pouco de suco,” disse Lawrence. “Ele foi feito na hora.” Holo levantou a cabeça letargicamente. Suas feições eram tão belas que até mesmo sua expressão dolorosa tinha certo charme. Sem dúvida Weiz ficaria feliz de tirar o dia de folga para cuidar dela. Mesmo o menor sorriso dela teria sido uma recompensa suficiente. Lawrence riu do pensamento, enquanto Holo bebia o suco e olhava para ele de forma estranha.

“Whew... eu não tinha ressaca faz séculos,” suspirou Holo depois de beber metade do suco e recuperar um pouco de vigor.

“Um lobo de ressaca é uma triste visão. Acho que posso imaginar um urso de ressaca, mas um lobo...”

Ursos muitas vezes levavam sacos cheios de uvas fermentadas pendurados nos beirais das casas. Elas tinham que ser fermentadas para fazer vinho, e quanto isso, exalavam um aroma doce.

Havia até histórias de ursos fugindo com tais sacos apenas para encontrar eles mais tarde, caindo de bêbados na floresta.

“Provavelmente eram os ursos com quem eu mais bebia na floresta,” disse Holo. “Havia também o tributo dos humanos.”

A ideia de ursos e lobos bebendo vinho juntos soava como algo saído de um conto de fadas. O que a Igreja faria se ouvisse isso?

“Não importa quantas vezes eu tenha ressaca, parece que nunca aprendo.”

“Humanos são da mesma forma,” disse Lawrence para Holo com um sorriso triste.

“Agora que você mencionou... o que era eu ia dizer? Eu tinha algo a dizer, mas agora não me lembro. Sinto como se fosse algo bastante importante, muito...” disse Holo.

“Bem, se é algo tão importante, vai se lembrar, eventualmente.”

“Mmm... suponho. Ugh. Nada bom. Não me lembro,” ela disse, desabando de volta na mesa e fechando os olhos.

Ela provavelmente se sentiu assim o dia todo. O atendente não falou, mas era uma coisa boa eles não estarem prestes a partir. Uma carroça trêmula não a faria se sentir melhor.

“De qualquer forma, tudo o que temos a fazer é deixar o resto para a Companhia Milone. Coisas boas vêm para aqueles que esperam. Apenas descanse até se sentir melhor.”

“Ugh... é tão indigno,” disse Holo, soando ainda mais patética do que antes — ela provavelmente se sentiria mal por mais algum tempo.

“Suponho que seu cérebro não vai funcionar hoje.”

“Mm... é patético, mas você está certo,” ela respondeu, ainda deitada em cima da mesa, abrindo um olho para espiar Lawrence. “Você ainda tem planos ou algo do tipo?”

“Hm? Bem, eu estava pensando em fazer algumas compras após checar a Companhia.”

“Compras, é? Você pode ir sozinho. Vou descansar aqui por um tempo e em seguida retornar para a pousada por conta própria,” disse Holo, levantando a cabeça e bebendo o suco de maçã novamente. “Ou o que — você quer que eu vá junto?”

Sua provocação era agora rotina, quase um cumprimento; então Lawrence simplesmente concordou.

“Oh, você não tem graça,” Holo se aborreceu com a tranquilidade de Lawrence. Bebendo superficialmente seu suco, ela deve ter esperado que ele ficasse frustrado, mas até mesmo Lawrence podia manter a compostura às vezes.

Lawrence não pôde deixar de sorrir para Holo de novo, enquanto ela mastigava um pedaço de pão.

“Pensei em te comprar um pente ou um chapéu”, falou. “Talvez uma outra hora.”

As orelhas de Holo se mexeram por debaixo do manto.

“...O que é que você está planejando?” Ela perguntou, com os olhos meio cerrados, mas observando Lawrence cuidadosamente.

Lawrence podia ouvir o farfalhar de sua cauda abanando inquietamente. Aparentemente, ela era pior do que ele esperava em esconder seus pensamentos.

“Que modo de falar.”

“Como dizem por aí, é preciso ter mais cuidado com a carne que está na boca do que com a carne que está prestes a ser tirada de você.”

Ouvindo as palavras amargas de Holo, Lawrence chegou perto de seu rosto e sussurrou em seu ouvido.

“Se você quiser agir como uma sábia loba prudente, pelo menos, faça algo sobre suas orelhas e cauda inquietas.”

Surpresa, Holo sentiu o sussurro nas suas orelhas. “Oh!” ela disse.

“Isso nos deixa quites,” disse Lawrence com uma pitada de arrogância. Holo o encarou, frustrada e com os lábios estreitos.

“Você tem um cabelo tão lindo, é uma pena você não ter um pente para ele,” continuou rapidamente.

Ele estava feliz de ter finalmente ganhado dela, mas se ele pressionasse, era bem possível que ela o colocasse em seu lugar.

No entanto, ao ouvir as palavras de Lawrence, a entediada Holo fungou e se esparramou sobre a mesa mais uma vez. “Oh, você está falando sobre o meu cabelo,” ela disse brevemente.

“Tudo que você faz é amarar ele em volta como uma corda de cânhamo. Você nem o penteia.”

“Meu cabelo não é importante. Embora um pente seja bom — para minha cauda.” O farfalhar da sua cauda abanando podia ser ouvido depois que ela falou.

“... Bem, se você diz isso.”

Lawrence achava que o cabelo de seda dela era bonito, e cabelos de qualquer tipo que fossem tão longos, eram muito raros. Era difícil para alguém que não fosse da nobreza ser capaz de lavar os cabelos em água quente diariamente, de modo que ter o cabelo tão longo e bonito era uma marca de alto nascimento.

Assim como qualquer outra pessoa, Lawrence tinha uma fraqueza por uma menina com longos e belos cabelos. O cabelo de Holo era tão adorável que poucas entre a nobreza poderiam igualá-la, mas ela parecia não entender o seu valor.

Se escondesse as orelhas com um véu ao invés de um manto pesado e usasse vestes finas, em vez das roupas ásperas de um mercador viajante, ela seria igual a qualquer donzela do poema de um menestrel — mas Lawrence não quis dizer isso.

Não se sabe como ela reagiria, afinal.

“E então.”

“Hm?”

“Quando você vai comprar esse pente?”

Holo olhou para Lawrence da sua postura de bruços sobre a mesa, os olhos brilhando com certa antecipação.

“Pensei que não precisasse de um,” disse Lawrence, sem rancor, com a cabeça ligeiramente inclinada.

“Nunca disse isso. Eu gostaria de ter um pente. Um de dentes fino, se possível.”

Lawrence não viu a necessidade de comprar um pente se não seria usado para pentear o cabelo. Em sua cabeça, uma boa escova, do tipo usado pelos tecelões, seria melhor para sua cauda.

“Eu vou te comprar uma escova. Devo te apresentar a um bom tecelão?”

Era melhor deixar peles com especialistas com ferramentas apropriadas, afinal. Lawrence estava apenas meio sério, mas quando ele terminou de falar e olhou para Holo, sua voz travou.

Ela estava com raiva — tanta raiva que estava rangendo os dentes.

“Você... você trataria minha preciosa cauda como um simples pedaço de pele?” ela disse, sua entonação rasa — certamente não por ter medo de que a fala sobre sua cauda pudesse ser ouvida pelos outros clientes.

Lawrence estremeceu com sua veemência, mas Holo parecia fraca quanto esteve o dia todo. Havia um limite para o quanto ela poderia contra-atacar.

“Eu não aguento mais,” ela disse.

Lawrence suspeitava que as ameaças dela eram vazias.

Ele imaginou que ela pudesse tentar chorar, então ele calmamente bebeu um pouco de suco de maçã. “O que... vai fazer birra agora?” ele perguntou, com um tom de acusação em sua voz.

Naturalmente sua determinação desapareceria se ela começasse a chorar, mas ele não disse isso.

Talvez castigada por suas palavras ou, eventualmente, por alguma outra razão, ela abriu os olhos um pouco e olhou para Lawrence, em seguida, desviou o olhar.

Seu comportamento infantil era bastante encantador. Com um pequeno sorriso, Lawrence pensou que seria bom se ela fosse sempre assim.

Holo ficou em silêncio por um momento. Depois, em voz baixa, disse, “Não aguento mais. Tenho que vomitar.”

Lawrence quase derrubou o copo de suco de maçã quando ele ficou de pé e gritou para o atendente trazer um balde.

 

Bem depois do sol se pôr no oeste e o tumulto além da sua janela ter diminuído, Lawrence olhou para cima da mesa. Pena na mão, ele levantou os braços e esticou amplamente. Suas costas estalaram satisfatoriamente, ele virou a cabeça para a esquerda e para a direita para movimentar as torções no pescoço, que também estalaram.

Ele olhou de volta para a mesa. Nela havia uma folha de papel com planos simples para uma loja — a cidade que estaria situada, os produtos que iria vender e os planos para a sua expansão. Escrito separadamente estavam os custos de construção, os planos para garantir a cidadania, e uma variedade de outras despesas antecipadas.

Era um plano para a realização de seu sonho — possuir uma loja.

Mesmo uma semana atrás, isto permanecia apenas em seus sonhos, mas uma vez que Lawrence fez feito o seu negócio com a Companhia Milone, ele sentiu que seu sonho estava muito mais próximo. Se ele pudesse conseguir duas mil moedas trenni, após a venda de alguns ornamentos e as joias que somam suas economias, ele seria capaz de abrir sua loja. Lawrence já não seria mais um mercador viajante, mas um comerciante da cidade.

“Mmph... que som é esse?”

Enquanto Lawrence estava focado na a imagem da loja que ele tinha desenhado, Holo tinha acordado. Seus olhos ainda estavam borrados com o sono, mas ela pareceu em grande parte recuperada. Ela olhou para Lawrence, piscou algumas vezes e se arrastou para fora da cama. Seus olhos estavam um pouco inchados, mas ela parecia bem melhor.

“Como se sente?”

“Melhor. Estou com um pouco de fome.”

“Se seu apetite voltou, deve estar bem,” disse Lawrence, sorrindo e indicando o pão na mesa. Era pão de centeio escuro — o pior e mais barato pão que você pode conseguir, mas Lawrence gostava de seu sabor amargo e comprava com frequência.

Sem surpresa, Holo expressou seu descontentamento para com o pão após uma única mordida, mas desistiu já que não havia mais nada para comer.

“Tem alguma coisa para beber?”

“O jarro de água está bem ali.”

Holo verificou para ver se o jarro continha água e depois de tomar um pouco, foi para o lado de Lawrence enquanto mastigava o pão.

“... o desenho de uma loja?”

Minha loja.”

“Oh ho, nada mal,” disse Holo, olhando fixamente para o papel enquanto comia.

Quando se viajava para um país cuja língua não se sabia, Lawrence usava desenhos para fazer negócios. Às vezes, ele simplesmente não conseguia lembrar o nome de um determinado produto, e os intérpretes nem sempre estavam disponíveis. Por isso, a maioria dos mercadores viajantes eram bons desenhistas. Sempre que Lawrence conseguia um ótimo lucro, ele desenhava uma imagem de sua futura loja. Isso o fazia se sentir ainda melhor do que beber vinho.

E como ele tinha confiança em suas habilidades de desenho, era bom ser elogiado.

“O que é isso escrito?”

“Localização e planejamento de despesa. Eu não espero que seja exatamente assim, é claro.”

“Hmm. Você desenhou partes de uma cidade também. Que cidade é?”

“Nenhuma em particular — apenas uma cidade idealizada para minha loja.”

“Ho-ho. Você foi muito detalhado aqui — eu suponho que esteja planejando abri-la em breve, então?”

“Se o negócio com a Companhia Milone acabar bem, provavelmente serei capaz disso.”

“Hm.” Holo assentiu, parecendo não muito animada com a ideia. Ela mordeu um pedaço de pão em sua boca pequena, em seguida, caminhou de volta para a mesa. Lawrence imaginou que o som era ela terminando de beber a água.

“É o sonho de todo mercador viajante ter uma loja. Eu não sou diferente.”

“Heh. Sei. Você chegou até mesmo ao ponto de esboçar sua cidade ideal, já deve ter feito isso muitas vezes.”

“Quando desenho, sinto que isso vai acontecer algum dia.”

“Um artista que conheci há muito tempo disse algo assim — que ele queria pintar todas as cenas que via diante de si.” Holo mordeu uma segunda fatia de pão e se sentou no canto da cama. “Duvido que o artista tenha conseguido realizar seu sonho, mesmo agora, mas parece que o seu está próximo.”

“De fato. Quando penso sobre isso, mal posso ficar parado, quero correr até a Companhia Milone e pedir para eles trabalharem mais rápido.”

Era um pouco exagerado, mas longe de ser uma mentira. Talvez fosse por isso que Holo evitou de debochar sobre isso, simplesmente rindo falou, “Então espero que o seu sonho se torne realidade.”

Ela continuou. “Ainda assim, ter uma loja é uma coisa tão boa? Ser um mercador viajante não é lucrativo também?”

“Se for pelo lucro, com certeza.”

Holo inclinou a cabeça um pouco. “E pelo que mais poderia ser?”

“Um mercador viajante tem que viajar entre vinte ou trinta cidades — se não se mantiver em movimento, não vai fazer dinheiro nenhum. A maior parte do seu ano é gasto em cima de uma carroça." Lawrence bebeu um pouco de vinho do copo sobre a mesa. “Vivendo desse jeito, você não faz realmente nenhum amigo — apenas sócios de trabalho.”

Ao ouvir a explicação, Holo pareceu perceber algo e se arrependeu de ter feito a pergunta.

Ela realmente é uma boa pessoa, Lawrence pensou, e ele continuou, na esperança de amenizar seu arrependimento. “Mas se eu pudesse abrir uma loja, eu estaria me tornando um verdadeiro cidadão de uma cidade. Poderia fazer amigos, e seria bem mais simples procurar por uma esposa. Seria um grande consolo saber onde eu seria enterrado ao morrer. Apesar de que encontrar uma noiva que fique ao meu lado, mesmo na morte... bem... vai depender de um pouco de sorte.”

Holo riu levemente.

Entre mercadores viajantes, o ato de ir para uma nova cidade a procura de novos bens era conhecido como “em busca de uma esposa”, no sentido de ir encontrar algo raro e valioso.

Na realidade, porém, simplesmente abrir uma loja não garante que você seja próximo dos habitantes da cidade.

No entanto, ser capaz de ficar no mesmo pedaço de terra por um longo tempo era o sonho de qualquer mercador.

“Entretanto, vai ser ruim para mim se você abrir uma loja,” disse Holo.

“Por que isso?” disse Lawrence se virando. Embora o sorriso dela não tenha desaparecido, ele estava tingido com tristeza.

“Se você abrir uma loja, você não vai querer deixá-la certo? Vou ter que viajar sozinha ou encontrar uma companhia diferente.”

Lawrence então se lembrou de que Holo havia dito que queria viajar o mundo por um tempo, em seguida, retornar à sua terra natal no norte.

Mas ela tinha sua perspicácia. Ela tinha o dinheiro que ela tinha feito com a venda de peles. Certamente ela ficaria bem por conta própria.

“Você pode viajar sozinha, certo?” Lawrence não tinha nada especial por trás das palavras, mas ao ouvi-las, Holo silenciosamente olhou para baixo enquanto comia o seu pão.

“Estou cansada de ficar sozinha,” ela deixou escapar, de repente parecia tão infantil enquanto balançava as pernas — que não alcançavam o chão — ao longo da borda da cama. Ela caiu para trás e parecia tão pequena que até mesmo a luz bruxuleante das velas ameaçava engoli-la.

Lawrence recordou a noite em que Holo tinha carinhosamente relembrado de seu amigo de séculos anteriores.

Viver tão nostalgicamente no passado provou que ela estava sozinha. Ele se lembrou de como ela estava enrolada como que para se proteger de uma tempestade de isolamento.

Lawrence escolheu suas palavras com muito cuidado para evitar ferir seus sentimentos — ela não costumava mostrar esse lado de si mesma. “Eu imagino que vou te acompanhar até você voltar para seu lar no norte.”

Ele tinha pouca escolha a não ser dizer isso, mas mesmo assim Holo olhou com uma expressão que dizia “Sério?” De uma forma bastante humilde. Lawrence ocultou cuidadosamente a excitação que sentiu e continuou.

“Mesmo quando o dinheiro entrar eu não vou ser capaz de abrir uma loja de imediato.”

“Verdade?”

“Por que eu iria mentir?” disse Lawrence. Ele não pôde deixar de sorrir amargamente; Holo também sorriu, mas de alívio. Ao olhar para baixo, seus olhos pareciam de alguma forma tingidos de solidão. Lawrence ficou impressionado com a percepção incongruente de que os cílios dela eram realmente muito longos.

“Então vamos, não fique com essa cara,” ele acrescentou.

Um mercador que vivesse na cidade provavelmente teria dito algo mais eficaz, mas infelizmente Lawrence estava sempre viajando e sendo forçado a uma vida longe das mulheres. Ainda assim, Holo olhou para cima e sorriu levemente. “Mm-hm” ela concordou com um aceno de cabeça.

Vendo uma garota tão pequena mansa desse jeito, a fez parecer de certa forma fugaz. As orelhas de lobo que ela normalmente mantinha tão altas estavam baixas e sem direção, e sua orgulhosa cauda estava enrolada, insegura ao lado de seu corpo.

De repente havia um silêncio.

Lawrence continuou a observar Holo, que parecia incapaz de olhar de volta.

Ela olhou para ele apenas uma vez, em seguida rapidamente desviou o olhar. Lawrence sentiu que tinha visto isso antes. Vasculhando suas memórias, ele percebeu que tinha sido o incidente das maçãs, pouco depois que eles chegaram a Pazzio.

Ela queria maçãs, então... o que ela precisa agora?

Compreender o desejo de outra pessoa era uma habilidade singularmente importante para um mercador.

Lawrence respirou fundo e se levantou. Surpresa com o barulho repentino, as orelhas e cauda de Holo se mexeram, e ela fitou Lawrence. Confusa por sua aproximação repentina, ela desviou o olhar.

Ela estendeu as mãos quando ele parou diante dela, trêmula, quase assustada.

“Foi chorar em seus sonhos que deixou teus olhos tão vermelhos?” Lawrence pegou sua mão e se sentou ao lado dela. Ele a puxou para perto e a segurou delicadamente.

“Quando eu...”

“Hm?”

“Quando... quando abro meus olhos, eles se foram. Yue, Inti, Paro, e Myuri... todos se foram. Não estão em lugar algum.”

Ela estava falando sobre seu sonho. Lawrence acariciou a cabeça dela suavemente enquanto soluçava. Os nomes que mencionou devem ser de seus amigos lobos, talvez até mesmo lobos deuses — mas ele não era insensível o suficiente para perguntar.

“Eu — eu posso viver por séculos. Então pensei em sair em uma jornada. Eu tinha certeza de que veria todos eles novamente. Mas... Eles se foram. Não tem mais ninguém.”

A mão de Holo estremeceu quando ela agarrou a camisa de Lawrence. O próprio Lawrence não queria ser atormentado por esses sonhos.

Se ele retornasse para sua cidade natal, não ia ter uma alma para se lembrar dele — às vezes ele tinha pesadelos semelhantes.

Havia contos de mercadores que tinham deixado sua terra natal e não retornavam em vinte ou trinta anos. Quando finalmente conseguiam voltar para casa, descobriam que sua vila havia simplesmente desaparecido. Poderia ter sido arrasada em uma guerra ou até mesmo atingida pela peste ou pela fome — haviam inúmeras razões possíveis.

É por isso que os mercadores viajantes sonhavam em ter uma loja.

Uma loja significava um lar, fazer um lugar para si mesmo.

“Eu não quero abrir os olhos e não encontrar ninguém... estou cansada de estar sozinha. É frio. É... solitário.”

Lawrence permaneceu em silêncio durante a manifestação emotiva de Holo, apenas acariciando sua cabeça. Ela estava tão angustiada que qualquer coisa que ele dissesse provavelmente entraria em um ouvido e sairia pelo outro, e de qualquer maneira ele não conseguia pensar em nada apropriado para dizer.

Ele próprio tinha sido atacado pelos ventos da solidão enquanto viajava na carroça ou entrava em uma nova cidade.

Não havia nada que se pudesse fazer nesses tempos — nada se podia ouvir e encontrar consolo. A única coisa a fazer era encontrar algo para agarrar e esperar a tempestade passar.

Holo continuou a chorar.

Lawrence a segurou, e quando as ondas de emoções diminuíram e ela soltou suas roupas, olhando para ele.

Ele a soltou e ela se sentou, ainda fungando.

“... Tão humilhante,” disse Holo, o nariz e os olhos ainda vermelhos, mas a voz calma.

“Mercadores viajantes também tem sonhos como esse,” disse Lawrence.

Holo riu timidamente e fungou com nariz entupido.

“Seu rosto está uma bagunça. Espere um pouco.”

Lawrence se levantou e pegou o papel da mesa. Os desenhos e números sobre a folha estavam secos, então ele pensou que seria bom se ela assuasse o nariz nele.

“Mas... este é o seu...”

“Eu sempre jogo fora quando termino. E o negócio ainda não está terminado, é muito cedo para ser otimista,” disse Lawrence com um sorriso.

Holo devolveu o sorriso e pegou o papel. Após assuar o nariz com força e enxugar seus olhos, ela parecia muito melhor. Ela suspirou e respirou fundo, depois olhou envergonhada mais uma vez.

Vê-la assim, Lawrence queria abraçá-la novamente, mas se conteve. Holo era ela mesma mais uma vez e ele provavelmente seria ridicularizado.

“Estou em dívida com você agora,” ela disse, pegando o pão agora esfarelado e comendo. Não ficou claro se ela tinha ou não percebido os pensamentos dele.

Aliviado em todo caso, que não tinha sido repreendido, ele observou enquanto ela terminava de comer e bocejava, limpando as mãos livres de migalhas. Ela provavelmente estava cansada depois de chorar.

“Ainda estou com sono. Você não vai dormir?” ela perguntou.

“Em breve, sim. Permanecer acordado por mais tempo seria um desperdício de velas.”

“Heh, falando como um verdadeiro mercador,” disse Holo, sorrindo, enquanto se sentava de pernas cruzadas sobre a cama, e depois se deitando.

Depois de olhar uma última vez para ela, Lawrence soprou a vela.

A escuridão foi instantânea. Enquanto seus olhos ainda estavam se acostumando com a luz, tudo parecia um breu. O céu estava limpo e as estrelas à mostra. Ele ainda não podia ver a luz fraca que atravessava da janela de madeira. Enquanto esperava que seus olhos se ajustassem, Lawrence tateou o caminho para sua própria cama sob a janela no canto do quarto, com cuidado para não tropeçar sobre a cama de Holo no caminho.

Finalmente ele conseguiu e, depois de sentir a borda da cama, se deitou sobre ela. No passado, Lawrence havia se machucado por descuido ao se atirar para cima da cama e, acidentalmente, atingir a borda. Ele aprendeu a tomar cuidado.

Mas não havia como ele estar preparado para o que o esperava.

Quando ele começou a se deitar na cama, percebeu que alguém já estava nela.

“O que — o que você —”

“Não seja tão ingênuo," disse o Holo com uma voz irritada que que carregava um tom de flerte.

Lawrence se deixou ser puxado para baixo, e Holo se pressionou contra ele.

Diferente de antes, quando a segurou gentilmente, este abraço foi apertado. Ele sentiu o inconfundível corpo macio dela.

O batimento cardíaco de Lawrence não pode ser controlado. Ele era um homem saudável no fim das contas. Ele a abraçou com força pouco antes de perceber isso.

“... Não consigo respirar...” veio à voz constrita de Holo. Ele voltou a si e relaxou os braços, mas não a soltou. Ela não fez nenhum movimento para afastá-lo.

Em vez disso, ela se aproximou de seu ouvido e sussurrou.

“Os seus olhos já se adaptaram?”

“O que você —”

— Ele pretendeu dizer, mas Holo o interrompeu com um dedo pressionando seus lábios.

“Finalmente me lembrei do que eu queria te dizer.”

Sua voz sussurrante provocava. Provocava, de fato — embora seu tom doce e íntimo tivesse desaparecido, substituído por alarme em sua voz.

“É um pouco tarde. Há três pessoas atrás da porta. Duvido que eles sejam convidados.”

Lawrence finalmente percebeu que Holo já estava vestindo o manto. Ela remexeu em silêncio, e logo todos os pertences de Lawrence apareceram em seu peito.

“Estamos no segundo andar. Felizmente não há ninguém lá fora. Você está pronto?”

Agora ficando excitada em um sentido completamente diferente, Holo levantou. Lawrence fingiu colocar o cobertor sobre si mesmo, e vestiu suas roupas. Assim que ele posicionava a adaga de prata em sua cintura, Holo falou em voz alta, com a voz propositadamente alta o bastante para ser escutada além da porta fechada.

“Venha, veja meu corpo sob do luar!”

Assim que ela terminou, Lawrence ouviu a janela se abrir. Holo empoleirada no parapeito da janela pulou sem hesitação. Lawrence correu atrás dela, colocando o pé no peitoril. Ele também não hesitou — porque atrás dele vinha o som da porta sendo arrombada, seguido de passos pesados.

Ele se sentiu desagradavelmente leve por um momento, mas seus pés logo colidiram com o chão duro.

Incapaz de suportar a força do impacto, Lawrence caiu de joelhos.

Ele teve sorte de não ter quebrado a perna, mas Holo ainda gargalhou dele, embora ela tenha estendido a mão.

“Vamos ter que correr. Não temos tempo para pegar o cavalo.”

Um Lawrence atordoado olhou de volta para os estábulos. O cavalo tinha sido forte e barato, mas o mais importante, foi a primeira coisa que ele tinha comprado.

Parte dele queria correr para os estábulos, mas a prudência lhe disse que não. O plano de Holo era o certo.

Lawrence cerrou os dentes e se conteve.

“Eles não vão ganhar nada matando seu cavalo; vamos esperar que as coisas se acalmem antes de recuperá-lo, certo?” consolou Holo. Lawrence só podia esperar que fosse verdade. Ele balançou a cabeça e respirou fundo, pegando sua mão estendida e se levantando.

“Oh, e também —"

Holo pegou a bolsa que estava pendurada em seu pescoço e desfez a corda que a mantinha fechada. Ela pegou cerca de metade do trigo com sua mão.

“Só por precaução. Você deve ficar com um pouco,” disse ela casualmente empurrando os grãos no bolso do peito dele, sem esperar pela sua resposta. O trigo estava quente, era provavelmente, o calor do corpo de Holo. Afinal, era o trigo em que ela morava.

“Certo, agora vamos correr.”

Holo sorriu como se falasse com um amigo de confiança. Lawrence estava prestes a responder, mas simplesmente concordou com a cabeça e correu com ela para a cidade na noite.

“Então, o que eu ia dizer para você era isso — se a Companhia Milone pudesse investigar o garoto, sem dúvida, o inverso é verdade. Seus apoiadores eram obrigados a ficarem alertas. Se eles descobrissem que fomos para outra companhia com um acordo, eles vão tentar nos calar, não?”

A única luz no caminho da calçada era a lua, mas era suficiente para enxergar. Eles continuaram a correr sem encontrar outras pessoas, em seguida, viraram em um beco.

Lawrence mal conseguia ver na escuridão. Holo o guiava, puxando sua mão enquanto corria, ele ia tropeçando atrás dela.

Eles correram por perto de um cruzamento e viram um grupo de homens atrás deles, gritando. Ele escutou as palavras “Companhia Milone” entre os seus gritos.

Eles também sabiam que o único lugar onde Lawrence e Holo encontraria refúgio seria na Companhia Milone.

“Oops. Eu não sei o caminho,” disse Holo, ainda puxando a mão de Lawrence quando eles chegaram a uma bifurcação. Lawrence olhou para cima e tendo verificado a posição da lua e a fase, criou mentalmente um mapa de Pazzio.

“Por aqui.”

Eles correram pelo lado ocidental. Esta era a parte velha de Pazzio. Os prédios estavam constantemente sendo reconstruídos, e a estrada serpenteava como uma cobra. Mas Lawrence tinha visitado Pazzio muitas vezes. Furtivamente verificando a sua posição com a estrada principal, enquanto seguiam, a dupla chegava mais e mais perto da Companhia Milone.

Mas seus oponentes não eram tolos.

“Pare. Há um guarda.”

Eles precisavam apenas virar à direita no cruzamento, seguir a estrada até o seu fim e em seguida, virar à esquerda. Quatro quarteirões depois, eles chegariam a Companhia Milone. Ainda deveriam ter homens carregando e descarregando carroças a esta hora. Se eles pudessem chegar lá, os perseguidores não seriam capazes de tocá-los. Em uma cidade de comercial, a melhor segurança era a riqueza implícita no letreiro de um grande negócio.

Tch. Estamos tão perto.”

“Heh-heh. Não caço faz muitos anos, mas esta é a primeira vez que sou caçada.”

“Isso não é hora para brincadeiras. Oh, bem, nós vamos ter que tomar o caminho mais longo.”

Lawrence voltou para a estrada original, virando à direita ao longo dela. Ele decidiu que iria pegar um beco depois do próximo bloco e dar a volta até a Companhia Milone.

Mas ele foi interrompido depois que fez sua primeira curva à direita.

Holo agarrou sua camisa e o empurrou contra a parede.

“Já os encontraram? Eles devem estar por perto! Encontre-os!”

A corrente de medo que corria através dele era pior do que quando foi perseguido por lobos na floresta. Dois homens saíram correndo violentamente de um beco próximo. Se Holo não tivesse parado, ela e Lawrence teriam corrido em direção a eles.

“Droga. Há muitos deles. E eles conhecem a área.”

“Mmm... é uma situação ruim,” disse Holo. Seu capuz caiu, expondo suas orelhas de lobo enquanto examinava a esquerda e direita.

“Devemos nos separar?”

“Não é uma má ideia, mas eu tenho uma melhor.”

“Qual é?”

Passos podiam ser ouvidos nas proximidades. Sem dúvida, cada estrada principal agora tinha um guarda nela. Eles estariam encurralados se tentassem usá-las.

“Eu irei atraí-los na estrada principal. Então você pode ter a chance de —”

“Espere. Você não pode —"

“Agora me escute. Se nos separarmos, você é o único que vai ser pego. Sozinha, eu não vou ser pega, mas você vai. E quando isso acontecer, quem irá para a companhia? Eu devo mostrar as minhas orelhas e cauda e implorar pelo seu resgate? E então?”

Lawrence não tinha resposta. Ele já tinha informado a Companhia Milone sobre a moeda trenni de depreciada. Eles podem até mesmo abandonar ele e Holo. Se isso acontecer, o seu único recurso seria se usar como um trunfo e ameaçar investir em seu concorrente.

E só ele poderia conduzir essas negociações.

“De qualquer forma, não. Se a Companhia Milone ver suas orelhas e cauda, eles a levarão até a Igreja. E eu não preciso mencionar a Companhia Medio.”

“Então, tudo que preciso fazer é evitar a captura? E se for pega, eu vou esconder minhas orelhas e cauda por um dia enquanto você vem me resgatar.”

Talvez por causa da sua coragem, Lawrence queria impedi-la de fazer isso. Ela sorriu para ele.

“Eu sou Holo a Sábia Loba. Mesmo que minhas orelhas e cauda sejam descobertas, fingirei ser uma loba enlouquecida, e ninguém vai querer chegar perto de mim.” Ela sorriu, mostrando suas presas.

No entanto, tudo que Lawrence podia pensar era em abraçar a triste garota que falou de solidão, com sua forma incrivelmente esguia. Ele não podia imaginar deixa-la para esses marginais contratados.

Ainda sorrindo, Holo continuou. “Seu sonho é abrir uma loja, não é? E apenas um momento atrás eu disse que te devia um favor. Você está tentando me transformar em uma loba sem honra?”

“Não seja tola! Se você for pega, será morta! Que honra há nisso? Eu vou acabar com uma dívida que jamais poderei pagar!” bradou Lawrence, sua voz em baixo tom.

Holo esboçou um sorriso e balançou a cabeça. Ela cutucou levemente no peito com o dedo indicador. “A solidão é uma doença mortal. Nós estamos quites.”

Lawrence não tinha palavras diante do seu calmo e grato sorriso.

Holo aproveitou o silêncio e continuou. “Além disso, você tem um raciocínio rápido e inteligente — prometo. Eu confio em você. Eu sei que você vai me encontrar.”

Ela rapidamente abraçou Lawrence em silêncio e, em seguida, se soltou de suas mãos, correndo para longe.

“Lá estão eles! Na Estrada Loinne!”

Assim que Holo correu para fora do beco, os gritos podiam ser ouvidos, e os passos dos perseguidores se distanciaram.

Lawrence fechou os olhos por um momento, os abriu e correu. Se perdesse essa chance, poderia nunca mais ver Holo novamente. Ele rapidamente correu para o beco escuro — tropeçando algumas vezes, mas sempre em frente. Atravessou a estrada larga e entrou em outro beco, em direção ao oeste. A comoção continuou, mas o seu adversário não podia se dar ao luxo de fazer barulho por muito tempo para não alertar a guarda da cidade.

Ele continuou correndo, acelerando de novo através da estrada principal, e descendo por outro beco. Ele precisava apenas virar à direita, depois à esquerda na próxima rua principal para alcançar a Companhia Milone.

“Só um? Deveria haver dois!”

Lawrence ouviu a voz vir de trás dele. Holo foi capturada? Ela escapou? Se ela tivesse escapado, tudo estava bem. Não — ele esperava desesperadamente que fosse assim.

Ele saltou para a avenida iluminada pelo luar e virou imediatamente à esquerda. Logo ouviu vozes atrás dele. “Lá está ele!”

Ignorando eles, correu com toda a sua força, se atirando contra as portas da área de carga da Companhia Milone.

“Meu nome é Lawrence, vim aqui mais cedo hoje para fazer negócios! Socorro! Estou sendo perseguido!”

Acordados pela comoção, os homens de plantão abriram o portão de ferro.

Imediatamente após Lawrence desaparecer atrás dele, um grupo de homens carregando bastões de madeira correram até o portão.

“Esperem, vocês! Entregue esse homem para nós!" Disse um deles, batendo no portão com seu bastão. Os homens começaram a tentar usar a força para puxar o portão para abri-lo.

Mas aqueles que seguravam o portão fechado no lado oposto estavam acostumados com longos dias de carga e descarga. O portão não abriria tão facilmente.

Um homem de barba com aparência de meia-idade surgiu de dentro do prédio da companhia. “Escoria” ele rugiu. “De quem vocês acham que é esta casa? É a filial da Companhia Milone em Pazzio, pertencente ao honrado Marquês Milone, reconhecido por Sua Graça, o trigésimo terceiro Arquiduque de Raondille! Qualquer um dentro destas paredes é um convidado do Marquês! Saibam que quando vocês atacam estes portões, golpeiam o trono de Sua Graça!”

Intimidado pelo grande discurso do homem, os atacantes fugiram. Só então, o apito da guarda municipal tocou.

Os homens pareceram perceber que esta era sua chance de escapar. Eles logo se dispersaram.

Dentro dos portões, todos pararam por um momento. Por fim, os sons de passos e assobios da guarda desapareceram, e o homem que fez o impressionante discurso finalmente falou novamente.

“Esta é uma comoção e tanto para esta hora da noite. O que está acontecendo aqui?”

“Minhas mais humildes desculpas, sir. Eu ofereço a minha mais profunda gratidão pelo seu abrigo.”

“Salve seus agradecimentos para o Grande Marquês de Milone. O que é que eles queriam?”

“Creio que eles eram da Companhia Medio. Sem dúvida, eles estão descontentes com o negócio que eu trouxe para sua companhia.”

“Oh ho. Você é um mercador que corre riscos. Não vi muitos de sua espécie recentemente.”

Lawrence limpou o suor da testa e sorriu. “A pessoa que me acompanha é que é imprudente.”

“Deve ser duro.”

“Não quero pensar sobre isso, mas esta mesma pessoa pode ter sido capturada. Seria possível eu falar com o gerente da filial, Sir Marheit?”

“Somos uma empresa estrangeira. Emboscadas e incêndios criminosos são um fato da vida para nós. Ele já foi avisado,” disse o homem com uma gargalhada profunda.

A competência do homem que comandou esta operação fez Lawrence se sentir em casa.

Talvez eles realmente fossem capazes de garantir a sua segurança.

Incertezas giravam em sua mente, mas Lawrence logo se recompôs. Ele iria pedir a garantia não só de sua segurança, mas de seu lucro também.

Seu orgulho como um comerciante e sua dívida com Holo, que tinha tomado tal risco por ele, exigia nada menos que isso.

Lawrence respirou fundo.

“De qualquer forma, vamos lá para dentro, tudo bem? Mesmo o vinho fica melhor com o tempo,” disse o homem. Lawrence, pensando em como Holo estava, dificilmente de se acalmaria.

Ainda assim, o velho estava acostumado com situações como esta, e vendo o estado de agitação de Lawrence, ofereceu algum consolo. “Em qualquer caso, se o seu parceiro estiver bem, ele vai vir aqui, não é? Apenas nos dê o seu nome e descrição, e vamos acolhê-lo, mesmo que a própria Igreja venha atrás dele!”

Era um exagero, mas Lawrence se acalmou.

“Os meus agradecimentos. Certamente... não, sem dúvida ela virá. Seu nome é Holo. Ela é uma garota pequena, e usa um capuz sobre a cabeça.”

“Uma garota, hein? Ela deve ser bastante linda não?”

Lawrence compreendeu que o homem estava fazendo isso para aliviar seus medos, assim ele sorriu e respondeu. “De dez pessoas, todas elas se voltariam para olhá-la.”

“Ha-ha-ha! Isso é algo que quero ver,” riu o grande homem vigorosamente e ele levou Lawrence para dentro do prédio da companhia.

 

“Oito ou nove de dez as chances de serem homens da Medio.”

Embora ele provavelmente tivesse acabado de acordar, as maneiras de Marheit não eram diferentes do que havia sido no início do dia enquanto ele pulou as formalidades.

“Concordo. Eles descobriram que vim até vocês por assistência com o meu plano para as moedas de prata e estão tentando nos deter.”

Lawrence não queria que sua agitação parecesse óbvia, mas não podia deixar de se preocupar com Holo enquanto falava. Holo, sendo o que era, achava tinha uma chance de ela ter escapado, mas era melhor assumir o pior. Em todo caso, ele precisava garantir tanto a sua segurança quanto a de Holo o mais rápido possível.

E para isso, ele precisava da Companhia Milone.

“Creio que minha companheira possa ter sido capturada. Se isso aconteceu, me parece óbvio que as negociações serão impossíveis. Será que a Companhia Milone pode nos ajudar?” perguntou Lawrence, evitando se inclinar sobre a mesa apenas com certo esforço. Marheit parecia perdido em pensamentos e não olhou para Lawrence.

Finalmente, ele olhou para cima lentamente.

“Você diz que sua companheira pode ter sido capturada?”

“Sim.”

“Entendo. Após a comoção aqui, mandei alguns dos meus homens segui-los. Eles relataram terem visto uma garota sendo levada, aparentemente contra sua vontade.”

Apesar das palavras, de certa forma esperadas, de Marheit, Lawrence sentiu agarrarem seu coração e sacudi-lo desesperadamente.

Ele engoliu o choque e conseguiu obter algumas palavras. “Provavelmente era minha companheira, Holo. Ela agiu como uma distração para que eu pudesse chegar aqui.”

“Entendo. Mas o que eles conseguiriam capturando sua parceira?”

Lawrence teve quase que se conter fisicamente para não gritar. Ele não podia se dar ao luxo de perder a cabeça na presença de um homem como Marheit. “Creio que por nós nos juntarmos com a sua companhia na tentativa de frustrar os planos deles.”

O semblante de Marheit permaneceu impassível, apesar da resposta acalorada de Lawrence. Ele olhou para a mesa e parecia perdido em pensamentos. Lawrence, angustiado, não podia deixar de mexer a perna impaciente. Ele estava prestes a saltar da cadeira e começar a gritar quando Marheit falou novamente.

“É um pouco estranho, porém, você não acha?”

“O que é estranho?!” exigiu Lawrence, finalmente saltando de sua cadeira, fazendo com que Marheit se assustasse rapidamente por um momento antes de recuperar sua compostura.

Marheit estendeu a mão para o visitante angustiado. “Por favor, acalme-se. Algo está estranho em tudo isso.”

“O que há de estranho nisso? Assim como sua empresa foi capaz de descobrir a respeito de Zheren, era simples para a Companhia Medio ver se alguém estava interferindo em seus planos!”

“... Verdade, já que a sua sede está aqui...”

“Então o que é estranho?”

“De fato, eu entendo agora. Isso realmente é estranho,” disse Marheit. Lawrence não tinha escolha, a não ser ouvi-lo. “Eu estava pensando, como é que eles chegaram à conclusão de que você estava conspirando com a nossa companhia?”

“Certamente, porque venho aqui com frequência. Além disso, se eles notaram que você começou a colecionar as moedas trenni de prata, tudo o que eles têm a fazer é somar dois mais dois.”

“Esta é a parte estranha. Você é um mercador viajante — nos visitar várias vezes para negociar é totalmente natural.”

“Mas se eles ligarem o interesse da sua empresa com os trenni de prata e o fato de que eu sou o único que entrou em contato com Zheren...”

“Não, ainda é estranho.”

“Por quê?”

Lawrence não entendia. A impaciência aparente em sua voz.

“Naturalmente, o ponto em que começamos a reunir os trenni de prata foi depois que terminarmos de negociar com você. Considere isso, Sr. Lawrence: ‘eu não posso dizer como isso vai acontecer, mas se você coletar trenni de prata seu lucro é garantido’. Nós certamente não faríamos nada com base apenas nisso, não é?”

“V-verdade...”

“O fato de que estamos realmente coletando trenni de prata significa que compreendemos a totalidade desta oportunidade. Sem dúvida, a Companhia Medio também sabe disso. Simplesmente não há razão para pega-los como reféns.”

“Certamente você não quer dizer —"

Marheit concordou, seu rosto expressando triste pesar. “Sim. Nós já temos todas as informações que precisamos para conseguir lucrar. O que acontece com você e sua acompanhante agora não é nossa preocupação.”

Sentindo-se tonto, Lawrence caiu na cadeira. Era verdade. Lawrence era um mero mercador viajante; ninguém se importava com ele.

“Espero que você entenda o quanto é difícil para eu dizer isso. Mas nós já investimos uma quantidade significativa de capital com base nas informações que você nos trouxe. O lucro será imenso. Se tivermos que escolher entre suportar o seu rancor ou lucro...” Marheit suspirou. “Eu sinto muito, mas tenho que escolher o último,” ele disse calmamente. “Ainda...”

Lawrence não ouviu o que Marheit disse depois disso. Em um pequeno canto de sua mente, ele se perguntou se era isso que se sentia ao declarar falência. Seus braços, pernas — de fato, todo o seu corpo — se sentia congelado. Ele não tinha certeza se ainda estava respirando.

Agora ele estava, a partir deste momento, abandonado pela Companhia Milone.

O que significava que Holo também havia sido abandonada; Holo, que dera si mesma para deixá-lo escapar acreditando que Lawrence seria capaz de negociar seu resgate com a Companhia Milone.

Lawrence recordou a expressão em seu rosto quando ela falou em voltar para sua terra ao norte.

Quando os reféns se tornavam inúteis, seu destino era claro. Homens eram vendidos para os navios e as mulheres para bordéis. Embora Holo tivesse orelhas e cauda de lobo, havia ricos excêntricos que coletavam tais garotas “endemoniadas”. Sem dúvida, a Companhia Medio conhecia um ou dois desses colecionadores.

Lawrence pensou em Holo sendo vendida, pensou em como um coletor rico obcecado por coisas demoníacas trataria uma garota.

Não. Ele não permitiria isso.

Lawrence se endireitou na cadeira e imediatamente começou a pensar. Ele tinha que salvá-la.

“Por favor espere,” disse ele depois de alguns instantes. “Se a sua companhia chegou a esta conclusão, certamente o outro lado fez isso também.”

A Companhia Medio não era comandada por tolos. Eles tinham ido atrás Lawrence e sua companheira e tinham despachado muitos homens para fazer isso, mesmo arriscando um confronto com a guarda da cidade.

“Sim. Isso é o que me pareceu tão estranho. Eu não tinha terminado de falar, veja bem — se a necessidade surgir, eu ficaria com o seu rancor pela companhia.”

Lawrence lembrou que Marheit terminou sua declaração com um “ainda” e baixou a cabeça envergonhado com o rosto vermelho.

“Eu posso ver que sua companheira é muito preciosa para você. Mas deixar suas emoções controlarem o seu pensamento é trocar suas prioridades.”

“Minhas desculpas.”

“Não se preocupe... se minha esposa estivesse em perigo, provavelmente eu também acharia difícil me acalmar,” disse Marheit, sorrindo.

Diante disso, Lawrence abaixou a cabeça de novo, embora seu coração saltasse com a palavra “esposa”. Ele percebeu que se Holo fosse uma mera companheira de viagem, ele não estaria tão bravo, e Holo não teria se sacrificado para ajudá-lo a escapar.

“Voltando para o problema principal. Nosso oponente é uma empresa sagaz que não será facilmente derrotada. Você e sua companheira não têm nenhum valor teórico para eles, mas mesmo assim, eles foram atrás de vocês... deve haver uma razão. Você tem alguma ideia do que possa ser?”

Lawrence não fazia ideia.

Porém, quando pensou na situação, se deu conta de que deveria haver alguma razão em especial para que eles fossem capturados.

Ele refletiu sobre isso.

Havia apenas uma possibilidade.

“Não, isso não pode ser...”

“Você pensou em alguma coisa?”

Lawrence tinha imediatamente descartado a possibilidade quando lhe ocorreu pela primeira vez. Simplesmente não podia ser, mas era a única coisa que ele podia pensar.

“O lucro diante de nós é quase inimaginável. Precisamos apenas pegá-lo. Se você já pensou em alguma coisa, não importa o quão trivial seja, por favor, me diga.”

O pedido de Marheit era inteiramente razoável, mas o que Lawrence pensou não era algo para ser compartilhado com facilidade.

Lawrence pensou em Holo, que era inegavelmente não humana. A maioria das pessoas a chamariam de um demônio. Esses “demônios” ou eram escondidos em casa ou entregues à Igreja. Nenhum dos dois era uma forma de viver. Uma vez que a Igreja lançasse seus olhos em uma pessoa assim, ele ou ela certamente seria executado.

Holo era indescritivelmente um indivíduo não humano.

A Companhia Medio poderia usá-la para chantagear a Companhia Milone. Se a Companhia Milone não quisesse que eles revelassem à Igreja que eles tiveram relações com alguém possuído por um demônio, eles teriam que se retirar.

Quando se tratava de uma Inquisição, a Companhia Medio poderia justamente acusar a Companhia Milone e Lawrence de terem celebrado um contrato do mal com uma entidade demoníaca. Sem mencionar que Holo seria queimada na fogueira.

Ainda assim Lawrence tinha uma dúvida.

Quem descobriu as orelhas e cauda de lobo de Holo, e quando?

Dada a aparência normal de Holo, não era algo facilmente discernível. Ele acreditava que ninguém, exceto ele mesmo sabia a verdade sobre sua identidade.

“Sr. Lawrence,” disse Marheit, pondo fim nas reflexões de Lawrence. “Você já pensou em alguma coisa?”

Lawrence não podia deixar de concordar com a pergunta do paciente Marheit, o que significava que ele agora teria de divulgar a verdade. Mas se a verdadeira razão para terem sido perseguidos fosse outra coisa, ele teria exposto o segredo de Holo por nada.

No pior dos casos, a Companhia Milone poderia virar a mesa sobre a Companhia Medio os acusando de usarem uma garota demônio para chantageá-los.

Se isso acontecesse, não haveria esperança para Holo.

Marheit olhou seriamente sobre a mesa.

Lawrence não viu nenhuma rota de fuga.

Mas eles foram interrompidos.

“Me desculpem,” disse um representante da Companhia Milone, entrando na sala.

“O que é?”

“Acabamos de receber uma carta. Relacionada a situação atual.”

O funcionário estendeu um envelope selado. Marheit pegou e o virou de ponta cabeça. O nome do remetente estava faltando, mas tinha um destino.

“‘Para o lobo... e para floresta em que ele reside?’”

Naquele instante, Lawrence percebeu que estava certo.

“Sinto muito, mas posso olhar primeiro essa carta?”

Marheit olhou para Lawrence duvidosamente, mas finalmente concordou com e entregou o envelope.

Lawrence agradeceu e, respirando fundo, quebrou o selo.

Havia uma carta e dentro um pouco do que poderia ser o pelo marrom de Holo.

A carta era breve.

“Nós temos o lobo. As portas da Igreja estão sempre abertas. Se você não quer que o lobo entre em sua casa, feche suas portas e mantenha a sua família dentro.”

Não havia mais qualquer margem para dúvidas.

Lawrence voltou a carta para Marheit. “Minha companheira, Holo, é a encarnação da deusa-loba da colheita,” disse ele em um tom de voz retorcido.

Os olhos de Marheit se abriram tanto quanto possível.



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