Volume 3 – Prólogo

Prólogo 7: Nêmesis

Aviso: O capítulo a seguir inclui conteúdo potencialmente perturbador, como violência e gore. Caso esses temas sejam sensíveis para você, considere avançar com cuidado ou pular esta parte. Seu bem-estar durante a leitura é primordial. 


Dos céus caía uma fumaça negra, espessa e quente, como se o ar tivesse sido queimado de dentro para fora. Ela se elevava em redemoinhos lentos, liberando um odor agressivo e tóxico que irritaria os pulmões de qualquer pessoa comum.  

Ao mesmo tempo, deslizando rente ao chão como um véu fantasmagórico, surgia uma névoa branca e fria, silenciosa e suave, quase reconfortante, como uma brisa gelada que precede a queda da primeira neve.  

Dois fenômenos opostos, coexistindo, se anulando e se devorando, nascidos do choque de duas forças completamente diferentes. 

Quando, após alguns segundos, ambas as manifestações finalmente se dissiparam, o campo de batalha se revelou novamente — agora silencioso.  

Os gêmeos estavam caídos no chão, unidos ainda em sua forma única, mas completamente exaustos. Seus corpos tremiam pelo esgotamento absoluto de quem havia apostado tudo.  

A fusão se desfez, a Essência se extinguiu, e ambos voltaram às formas individuais, inconscientes da derrota inevitável que já se instalara. 

Astrid continuava de pé. 

A General observava sua própria mão, levantando-a diante do rosto com expressão tranquila e avaliadora. Não havia hematomas, cortes ou queimaduras, mas ela conseguia ver, brilhar sobre sua pele, os resíduos da força dupla que a atingira. Era quase como se sua mão estivesse dividida visualmente entre gelo e fogo — um equilíbrio temporário entre aquilo que havia recebido.  

Por um segundo, permitiu-se admirar a beleza daquela fusão elementar. 

Assoprou de leve sobre a mão. 

A energia residual se desprendeu imediatamente, desmanchando-se no ar e transformando-se em minúsculos cristais que flutuaram lentamente ao redor. Pontos azuis, brancos, vermelhos e amarelos dançaram pelo vento, como se fossem pequenas brasas e flocos de neve misturados — o último vestígio do esforço fenomenal dos dois jovens guerreiros. 

Astrid continuava sem qualquer ferimento. Nem arranhões. E isso era, de certa forma, a parte mais cruel da realidade para seus oponentes. 

— Infelizmente — disse ela, aproximando-se dos gêmeos com passos elegantes e seguros —, essa explosão certamente foi vista por Cenara. Agora não tenho desculpas para não os prender. 

O tom não era ameaçador, apenas prático. 

Nesse momento, passos pesados ecoaram ao longe, abafados primeiro, depois se tornando mais claros à medida que alguém se aproximava pela estrada. Cada passada soava como se um gigante estivesse caminhando, como se o chão vibrasse sob seu peso. 

Astrid fechou o semblante. 

— Eu disse para ninguém se aproximar! — gritou, impaciente. 

Da sombra da estrada surgiu alguém de seu próprio destacamento. O mesmo indivíduo que, no passado, fizera Varelith conter Astrid temporariamente para evitar uma catástrofe. 

Aquele homem parecia menos um soldado e mais um cadáver ambulante.  

Sua presença era perturbadora, um lembrete vivo, ou quase, das consequências da guerra e de sua crueldade.  

Boa parte de sua carne havia sido removida, substituída por placas metálicas, articulações artificiais e mecanismos internos que rangiam a cada movimento. Não havia naturalidade em sua postura, nem suavidade em seus gestos; cada passo soava como ferro sendo arrastado sobre pedra. 

Para manter aquilo que ainda restava de seu corpo humano funcionando, era necessário um tratamento diário rigoroso. Suas feridas precisavam ser limpas todas as noites para impedir que apodrecessem ou se espalhassem ainda mais.  

E apesar de todo o esforço médico e tecnológico, nada realmente aliviava sua dor. A vida havia sido forçada dentro dele, mas não havia sido gentil.  

Ele continuava respirando, mas a que custo? 

O pior era que ele já não conseguia falar. Ou, talvez, já não houvesse qualquer razão para que o fizesse. Tudo o que restava de sua voz eram grunhidos, sons de dor comprimida entre dentes metálicos, e gritos agonizantes que explodiam durante as batalhas.  

Não era um guerreiro — era uma arma viva, moldada à força e mantida ativa apenas porque ainda conseguia matar. 

E sua aparência era tão brutal quanto sua história. 

Uma máscara grotesca substituía a metade inferior de seu rosto. Sua mandíbula inteira havia sido removida e substituída por peças mecânicas escuras, com dentes metálicos alinhados em um sorriso permanente e mórbido. Onde antes existia um nariz, havia apenas um buraco escuro, fundido ao metal queimado. Seus olhos, outrora humanos, agora estavam escondidos atrás de duas lentes circulares e opacas que refletiam o ambiente sem permitir que ninguém enxergasse por trás delas. 

Um pouco atrás dele, Astrid pode ver mais de seus homens se aproximando, marchando com uma disciplina fria. 

Aqueles eram os responsáveis pelo ser mecanizado, os guardiões de sua miséria e a única razão de estarem junto daquele destacamento. Eles eram os que controlavam a criatura quando necessário, os que o mantinham útil, os que justificavam sua continuidade naquele estado. 

Pelo menos, pensou Astrid, dois de seus soldados haviam obedecido suas ordens de permanecerem distantes — os dois Descendentes. 

— Perdão, General — disse um deles, absolutamente sem medo, pedindo desculpas apenas por formalidade. 

— Estamos seguindo ordens — completou o segundo, quase frio. 

— Ordens acima da senhora — finalizou o último. 

Por um instante, a General esteve pronta para matá-los ali, no meio da estrada. Mas, então, Astrid sentiu seu interior estremecer — Varelith, sua mãe, ameaçou assumir o controle de seu corpo para impedi-la de cometer aquele ato impulsivo. 

Astrid estava disposta a enfrentar sua própria mãe naquele momento, até algo roubar sua atenção. 

Os dois gêmeos, até então largados no chão, começaram a se arrastar. Seus dedos tremeram, seus rostos se levantaram com esforço doloroso, e quando seus olhares encontraram a figura metalizada diante deles, as lágrimas simplesmente vieram, rápidas, silenciosas, incontidas. 

— Ulfric... Tufar… — sussurrou Surtr, a voz quebrada. 

— O que fizeram com você? — completou Skadi, incapaz de conter o choro. 

Ulfric — nomeado e reconhecido — olhou para eles com um peso humano que nenhuma máscara conseguia esconder.  

Deu alguns passos vacilantes, como se cada articulação mecânica protestasse contra o movimento, e finalmente se aproximou dos dois. 

Entre grunhidos que pareciam mistura de dor e soluços, ele ajoelhou-se diante deles. Não era uma postura ensaiada ou programada. Era algo instintivo. Humano. Doloroso. 

Os gêmeos, juntando toda a força que ainda lhes restava, tentaram se erguer, mesmo que fosse apenas até os joelhos. E quando conseguiram, abraçaram-no sem pensar. 

E Ulfric, aquela máquina de dor, os recebeu. Como se, naquele momento, ainda lembrasse que um dia fora humano. 

— O que está acontecendo aqui?! — perguntou Astrid, incapaz de esconder a indignação crescente em sua voz. 

— Esta coisa — respondeu o primeiro soldado com frieza — já foi um General dos Remanescentes. 

— Um mago — completou o segundo, como quem expõe uma acusação. 

— Um mago dos ventos — finalizou o terceiro, quase com satisfação. 

Astrid cerrava os dentes.  

A forma como aqueles homens narravam a história, como se falassem de um objeto e não de uma vida arruinada, era o tipo de provocação que poderia fazer a própria Varelith tomar o controle por puro desgosto.  

Ela inspirou fundo, esforçando-se para manter o controle. Precisava ouvir até o fim antes de escolher agir. 

“Ulfric Tufar” 

O nome ecoou em sua mente enquanto sua história começava a se formar em uma linha cruel e inevitável.  

Ele havia se tornado alvo da Inteligência do Império. O elemento vento sempre fora o mais raro entre os elementos comuns, e por isso, magos capazes de manipulá-lo eram praticamente tesouros militares. Armas estratégicas. Bens de guerra. 

E o Império queria esse tesouro. 

Uma missão de captura foi planejada. Fria, metódica, cirúrgica. E ela foi bem-sucedida. A partir dali, Ulfric deixou de ser soldado, deixou de ser homem. e passou por experimentos tão intensos que seu corpo precisou ser refeito, sua voz perdida, e sua dor tornada permanente.  

Transformaram-no em algo que servia, lutava e obedecia — mesmo que aos pedaços por dentro. 

Astrid ainda assimilava a informação quando algo mudou. 

De repente, Ulfric moveu-se com violência. Sua mão metálica ergueu-se e agarrou os gêmeos pelos pescoços, um em cada braço, levantando-os como se não pesassem nada.  

A súbita agressão chocou Astrid a ponto de não conseguir reagir. 

Seus grunhidos aumentaram. Não eram sons de raiva, mas de dor profunda e sufocante, como se cada fibra restante de sua alma estivesse lutando dentro de um corpo que não obedecia totalmente. 

— Ulfric! — Astrid tentou avançar 

Já era tarde demais. 

Os gêmeos debatiam-se, suas pernas chutando o ar numa mistura de desespero, choque e incredulidade. Ulfric inclinou a cabeça para trás e liberou um grito que mais parecia um clamor de sofrimento. 

AAAAAHHHHHH!!! 

O vento começou a concentrar-se nele. 

Primeiro nos ombros. Depois nos braços. 

Então desceu até suas mãos, transformando-as em canais para sua magia. Um poder bruto, intenso, descontrolado. A energia que ele já não dominava por completo agora atravessava seus próprios membros como se queimasse por dentro. 

Os dedos apertaram ainda mais os pescoços dos dois, e a magia se acumulou dentro deles com força destrutiva, crescendo rumo a um desfecho inevitável. 

Astrid viu acontecer. 

Incapaz de fazer algo a respeito. 

BLOOOORF—PWAAAF!  

Os dois explodiram diante de seus olhos. 

Não houve gritos dos gêmeos. 

Não houve tempo para despedidas. 

— Aaaahhhh.... AAAAHHHHHHH!!! 

Ulfric continuou gritando. 

Sua voz — se é que aquilo ainda era uma voz — ecoava como um lamento sufocado vindo de alguém consciente do que tinha acabado de fazer, mesmo que fosse incapaz de impedir. 

E Astrid não sabia dizer se havia um inimigo diante dela, ou apenas mais uma vítima do Império. 

Ela ainda respirava com dificuldade, o corpo inteiro trêmulo. Era como se parte de seu espírito ainda estivesse tentando aceitar o que seus olhos haviam presenciado. A mente recusava-se a processar, como se algum mecanismo interno tivesse travado para evitar que ela desmoronasse de imediato. 

— Agora que nossa missão fora encerrada — disse o primeiro soldado, com frieza. 

— Não terá mais que se preocupar com ele — completou o segundo, impassível. 

— Pode voltar a agir por conta própria — acrescentou o terceiro, falando de algo trivial. 

Então, juntos: 

— Adeus! 

Partiram sem olhar para trás. 

Quando o Ulfric desapareceu pela estrada, Astrid sentiu as forças abandonarem seu corpo. Seus joelhos fraquejaram, e ela caiu no chão, apoiando-se com dificuldade nos próprios braços.  

Ela tentou respirar fundo, mas o ar entrou cortando sua garganta como facas. Um nó se formou em seu estômago, e não houve como impedir. O corpo reagiu antes da mente. 

Ela vomitou. 

Ali, sozinha, finalmente permitiu-se sentir. Permitiu-se quebrar. Permitiu-se ser apenas humana, longe dos olhos de soldados, longe de obrigações, longe do dever que a definia. 

Astrid, minha filha, está tudo bem?”, perguntou Varelith em sua mente, sua voz carregando preocupação materna e suave, como mãos tentando segurá-la antes que ela caísse ainda mais fundo. 

Astrid limpou os lábios com o dorso da mão. Sua voz saiu pequena, frágil, como raramente acontecia. 

— Eu… eu só… eu só preciso de um tempo… 

Varelith compreendeu.  

Astrid, mesmo ferida por dentro, sabia que não podia depender de sua mãe para sempre. Por mais que o apoio dela a fortalecesse, havia momentos em que precisava permanecer de pé sozinha, enfrentar o peso do mundo com as próprias forças. Era por isso que se esforçava para ser seu próprio alicerce. 

Ela respirou fundo. 

Uma vez... duas... dez... 

Vinte vezes, até que o coração finalmente diminuísse seu ritmo frenético e o corpo parasse de tremer. 

Com a palma da mão estendida, produziu uma pequena chama fraca, usando-a para limpar a bagunça no chão. 

Era necessário admitir para seguir em frente... 

Skadi e Surtr estavam mortos. 

Não havia tempo para luto. 

O Metamorfo continuava em Cenara, e ela ainda precisava detê-lo antes que se tornasse outra tragédia na lista daquele dia. 

Limpou o rosto, realinhou a postura, e colocou os pés de volta na estrada, seguindo em direção à cidade. 

Um passo após o outro. 

Mesmo com o coração mais pesado do que o machado que acabara de enfrentar. 

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