Volume 3 – Prólogo
Prólogo 2: Nêmesis
Na manhã seguinte, quando o sol começou a romper a escuridão da floresta e a primeira luz dourada tocou o solo, Astrid iniciou a viagem de retorno com os sobreviventes.
Eram homens e mulheres debilitados, carregando traumas recentes ainda estampados no olhar, mas que caminhavam com o alívio silencioso de quem havia escapado da morte.
Astrid os escoltou pessoalmente por horas, seguindo trilhas difíceis e estradas secundárias, guiando cada passo até que avistassem, ao longe, as muralhas de pedra da cidade imperial mais próxima.
Ao chegarem aos portões, Astrid não delegou a responsabilidade a guardas, mensageiros ou funcionários municipais. Ela mesma conduziu os sobreviventes até o escritório central da administração e exigiu que fossem registrados, tratados e encaminhados às equipes responsáveis.
Não aceitou respostas vagas, e permaneceu no local durante todo o processo, observando cada comprovante, cada assinatura, cada documento entregue.
Só descansou quando teve a certeza absoluta de que todos os nomes constavam como novos moradores daquela região, com moradias asseguradas, alimentos provisórios e a promessa de reintegração ao cotidiano da cidade.
A notícia da chegada deles se espalhou rapidamente.
Quando o processo terminou e Astrid se preparava para partir, as famílias insistiram em agradecer. Um a um, cada cidadão se aproximou, alguns constrangidos, outros chorando abertamente, todos com palavras simples, mas carregadas de verdade.
Alguns apenas seguravam sua mão com força, como se aquele toque fosse a prova definitiva de que estavam vivos. Outros a abraçavam, tremendo, mas encontrando nela um ponto de apoio e segurança.
Astrid aceitou tudo aquilo sem demonstrar cansaço ou impaciência. Sabia que, para eles, aquele momento era uma despedida irrepetível, e que dificilmente voltariam a se cruzar na imensidão do Império.
Para aquelas pessoas, ela não era apenas uma militar ou uma heroína imperial: era seu anjo guardião, a mão que apareceu quando todas as outras haviam desaparecido.
Se despedir das crianças era sempre a parte mais difícil.
Cada abraço pequeno apertava seu coração com força quase insuportável. Astrid raramente chorava em batalha, mas ali, diante de olhares tão jovens marcados pelo trauma, as lágrimas fugiam sem que pudesse impedir. As crianças eram seu maior combustível. Eram a prova viva de que suas missões tinham sentido, que seu esforço salvava vidas reais, e não apenas números em relatórios oficiais.
Depois de enxugar o rosto, ajustar o uniforme e respirar fundo, Astrid se colocou novamente em marcha. Sentia-se renovada, como quem acabara de cumprir mais uma peça essencial de um juramento silencioso.
Agora podia voltar à Capital, atualizar seus registros, receber novas ordens e escolher sua próxima missão — porque havia sempre alguém precisando de ajuda, sempre uma história com final ainda incerto esperando por ela nas estradas do Império.
(...)
— Já retornou? — perguntou o velho, cuja voz arrastada e aparência asquerosa eram capazes de fazer qualquer pessoa sentir uma vontade quase instintiva de socá-lo, tamanho o desprezo que sua presença despertava.
Suas roupas escuras pendiam do corpo magro como trapos, e os olhos fundos brilhavam com uma mistura de veneno e impaciência.
— Sim, Bispo — respondeu Astrid, adentrando a sala com passos firmes, como se o cômodo também fosse seu. Seus cabelos balançaram levemente quando ela parou diante dele, a postura altiva e inabalável. — Sabe que eu não gosto de ficar ociosa. Tem algo para mim?
O Bispo franziu os lábios, desconfortável.
A sala, iluminada apenas pela luz pálida que filtrava pelas janelas sob o céu nublado, parecia ainda menor diante da presença dela.
— No momento não — respondeu arrastadamente, medindo cada sílaba com cautela — mas, se quiser mudar de ideia, você pode…
— Esqueça — Astrid interrompeu com frieza, cruzando os braços e se apoiando em um dos pilares de mármore que sustentavam o teto. Seu olhar era gélido, como se pudesse perfurar o velho onde ele estivesse.
O Bispo se remexeu na cadeira, irritado pela ousadia de alguém que deveria obedecê-lo.
— Como pode ser a General perfeita e não aceitar uma única missão minha?! — disparou ele, inclinando-se para frente, os dedos finos crispados sobre a mesa.
Astrid ergueu o queixo, um sorriso quase imperceptível surgindo no canto dos lábios.
— Eu não aceito suas missões, e o Imperador nunca me deu uma. Acho que estamos quites.
O velho soltou uma risada seca, carregando todo o veneno que conseguia expressar.
— Acredita mesmo que o Imperador iria lhe dar alguma missão? — perguntou o Bispo, com desprezo. — Ele só se importava com aqueles Cavaleiros de Camelot.
Astrid apertou os punhos, mas manteve o tom de voz perfeitamente controlado.
— Com a saída deles, talvez ele pudesse. É uma pena que ele tenha morrido, ou melhor dizendo… assassinado.
O Bispo e Astrid se encararam como dois predadores prestes a saltar.
Nenhuma palavra além das necessárias foi dita, mas entre eles passavam ameaças, acusações e insultos velados, tão claras que qualquer terceiro teria sentido o impulso de sair da sala.
Se um deles ousasse colocar em voz alta tudo o que realmente pensava, talvez não restasse nada capaz de detê-los.
O Bispo desviou o olhar primeiro, respirando fundo.
— Sabe muito bem que eu não fiz nada — disse, tentando parecer firme, embora sua voz denunciasse um quê de defesa.
— Diga o que quiser — respondeu Astrid, seca. — Eu não acredito.
Recuou com um movimento lento e preciso, como quem se retira do palco certa de que já havia conquistado a plateia.
— Se tiver alguma missão, que não seja sua, me avise imediatamente.
Astrid caminhava para fora da sala quando o Bispo, incapaz de conter sua própria amargura, murmurou alto o bastante para ela escutar:
— Algum dia… encontrarei alguém para substituir você.
Ela parou.
O silêncio voltou a dominar o ambiente — mas desta vez, era um silêncio cheio de promessa.
O frio subiu rapidamente por sua espinha como um arrepio cortante, tão intenso que pareceu rasgar cada vértebra até atingir a base do pescoço. Mas antes que o calafrio pudesse alcançar sua nuca, Astrid já estava diante dele, movendo-se como um animal feroz que ataca quando a presa ousa virar as costas.
A proximidade era sufocante. Seus olhos cor de mel, brilhando como brasas acesas, encaravam o Bispo a uma distância tão curta que ele pôde ver, com clareza assustadora, sua pequena pupila tremendo pela sua raiva contida.
— Eu devo lembrá-lo, sua santidade, que sou a única sobrevivente dos ataques dos “Remanescentes”?
A pergunta caiu como uma lâmina na garganta do velho.
— N-não! Não precisa — gaguejou, seus dedos crispando no braço da cadeira como se buscassem apoio para não desmoronar diante dela.
Astrid inclinou a cabeça ligeiramente, como uma predadora avaliando o inimigo antes do golpe final.
— Então deve saber muito bem... que eu tenho prestígio o suficiente para que minha palavra seja tão confiável quanto a sua — Sua voz era baixa, firme, horrivelmente calma. — Se eu apenas sussurrar uma pequena ideia, seja para quem for… quanto tempo você acha que iria levar até todos descobrirem as suas mentiras?
O Bispo engoliu em seco. O som, apesar de discreto, pareceu ecoar pela sala silenciosa como um sino acusatório. Ele tentou reagir, embora suas mãos tremessem levemente.
— Ninguém acreditaria em você! — protestou, erguendo o queixo com falsa coragem. — A verdade é horrenda demais! A guerra... ela ao menos nos traz esperança!
Astrid deu um leve sorriso, mas aquele gesto não trazia qualquer alegria, apenas desprezo.
— E me parece que até você, sua santidade, deixou-se acreditar em suas próprias mentiras — Sua voz se tornou mais dura. — Escolheu criar o maior exército do Continente e esqueceu de proteger suas próprias ruas. Tudo para enfrentar um mal cuja muralha de Aranost está apenas contendo... Se acredita mesmo que pode enfrentá-los, te desafio a ir para as linhas de frente...
Ela fez uma breve pausa, apenas o suficiente para que as palavras penetrassem como ferrões.
— Mas é claro que o senhor não iria. É mais confortável estar no aconchego de sua cama, aproveitando das vastas opções de comidas, enquanto seus homens estão morrendo, gritando, clamando por salvação.
O Bispo desviou o olhar, talvez para esconder a vergonha, ou talvez para fugir da verdade que se infiltrava como veneno.
Astrid respirou fundo, permitindo que aquele momento de silêncio prolongado carregasse o peso necessário.
Era uma pausa cruel, calculada para que suas palavras reverberassem dentro da mente do velho como marteladas certeiras.
— Diferente de você, eu estou lá — continuou ela, cada sílaba carregada de convicção —, salvando vidas e prevenindo que mais mortes desnecessárias ocorram. Então, eu lhe pergunto... Se todos descobrissem a verdade, e o desespero tomasse conta deles, a quem eles iriam culpar? Quem fora o responsável por dá-los falsas esperanças? Quem eles fariam questão de escutar seus gritos de dor antes do fim?
O Bispo não respondeu. Sua boca abriu e fechou como a de alguém que buscava palavras, mas nenhuma surgiu. Antes que pudesse balbuciar qualquer desculpa, uma voz surgiu da porta.
— Aham! — chamou um serviçal do próprio Bispo, encolhendo-se ao ver o clima que dominava o ambiente. — Queiram me perdoar por interrompê-los. Os Nobres vieram para discutir sobre as parcelas dos lucros dos impostos mensais.
O tom burocrático e hesitante do servo caiu como água fria naquele campo de batalha silencioso. Astrid deu um passo para trás, rompendo o confronto visual como alguém que abandona uma luta porque já sabe que saiu vitoriosa.
— Eu já estava de saída.
Sem hesitar, virou-se e caminhou para fora, cruzando pelo serviçal sem lhe dedicar sequer um olhar.
O corredor parecia ecoar seus passos firmes, cada um deles carregado com uma vontade de esmagar a cabeça daquele que discutira.
Ainda trêmulo, o Bispo ajeitou-se em seu trono, as mãos tentando reorganizar as vestes como se isso pudesse recuperar dignidade.
— Ugh... É uma pena ela ser tão útil... — murmurou, tentando disfarçar o tremor na própria voz, embora ele continuasse ali, denunciando o medo que sua postura não conseguia esconder.
(...)
O caminho até seus aposentos era, como sempre, marcado por um silêncio quase de um cemitério.
Os corredores longos e frios pareciam eternos, iluminados apenas por tochas e luminárias presas às paredes de pedra que lançavam sombras dançantes no chão. Cada passo ecoava como se ela estivesse marchando sozinha dentro de um templo abandonado.
Ali, ninguém ousava dizer palavra.
Os guardas de elite que protegiam aquele setor eram tão imponentes que podiam ser facilmente confundidos com estátuas. Seus corpos estavam envoltos em armaduras escuras, polidas e marcadas por símbolos imperiais, mas seus rostos permaneciam ocultos atrás de elmos que não revelavam qualquer emoção.
Eram conhecidos por sua devoção quase cega: fanáticos treinados para servir apenas aos seus oficiais diretos — e ao Bispo.
Astrid, mesmo sendo General e a maior combatente viva do Continente, não poderia dar uma ordem sequer a algum deles. Mas isso nunca a lhe incomodou; jamais aceitaria homens que obedecessem por adoração, apenas aqueles que lutassem por convicção.
Quando chegou à porta de seus aposentos, sentiu o peso do dia começar a se desfazer.
Seu quarto era magnífico, uma verdadeira homenagem à sua trajetória.
Tapetes macios e caríssimos forravam o chão, e as paredes estavam enfeitadas com títulos, brasões, medalhões, certificados de vitórias, além de dezenas de armas e armaduras exibidas como troféus de glória.
Lembranças de cidades salvas, batalhas vencidas e vidas que mudaram graças aos seus feitos. Presentes dados tanto por Governadores quanto pelo povo simples que, em algum momento, ela protegera.
Se quisesse, poderia facilmente reclamar o título de Herói do Povo. Não haveria uma alma que não concordasse. Sua fama era tão grande que era lendária.
Mas, apesar de toda a pompa, riqueza e reconhecimento que aquele quarto ostentava, apenas uma única coisa realmente importava naquele momento: sua cama. A grande, farta e acolchoada cama que a esperava como um porto seguro após dias e dias enfrentando o mundo.
Feliz por não estar usando qualquer armadura, Astrid não precisou de cerimônias ou gestos cuidadosos. Jogou-se sobre a superfície macia, sentindo o alívio instantâneo se espalhar por seu corpo.
Seus músculos relaxaram, a mente afrouxou como se respirasse pela primeira vez em muitas horas. Parecia que, finalmente, o sono poderia alcançá-la com suavidade.
Mas antes que pudesse se entregar completamente ao descanso, uma voz familiar ecoou em sua mente, clara como um sussurro no ouvido:
— Minha querida Astrid, tem um minuto?
Astrid sorriu, mesmo de olhos fechados.
— Para você, todo o tempo do mundo, mãe.
Varelith, eu, estava falando.
A presença da voz era quente, maternal, acolhedora. Como se um abraço invisível envolvesse seu coração.
— Estou muito orgulhosa com o que você fez mais cedo — continuou Varelith, com orgulho na voz. — Salvou aquelas pessoas e ainda garantiu que tivessem uma segunda chance.
Astrid soltou o ar devagar, como alguém que carregava mais peso do que deixava transparecer.
— Era o mínimo que eu podia fazer.
Varelith ficou em silêncio por um breve instante, antes de tocar no assunto que sempre estava entre elas.
— Me diga... ainda está ressentida com o que fizemos em Shenxi?
— Não — respondeu Astrid automaticamente.
— Não minta para mim, por favor.
A voz não era acusatória. Não havia julgamento, nem frieza. Era apenas uma mãe conversando com sua filha sobre algo doloroso — algo que ainda sangrava por dentro.
Era exatamente isso.
Astrid respirou fundo, e quando respondeu, sua voz saiu mais baixa.
— Eu não me sinto mal pelo que fizemos, é sério. Só que... aquela cidade... aconteceu tantas coisas ruins, e eu nem pude salvá-los a tempo.
Um silêncio cheio de compaixão precedeu a resposta.
— Todos estão salvos dentro de você, minha querida — murmurou Varelith, com ternura infinita.
Astrid engoliu em seco.
— Eu sei. Mas... digo... as outras pessoas. Aquelas que eu não pude salvar. As de antes.
Uma lágrima, pequena, mas pesada, escorreu pelo rosto de Astrid.
Seus dedos ergueram, passando-os suavemente pela pele sentindo o toque reconfortante de Varelith acariciando sua face através de um pequeno controle do corpo de sua filha.
— Sh, sh, sh... — dizia Varelith. — Infelizmente, mesmo com todas as suas irmãs, nunca estaremos em todo lugar para salvarmos todos. Ainda assim, precisamos continuar.
Era cruel. Mas era verdade.
Astrid assentiu.
— Sim, mãe. Obrigada por vir me acudir.
Astrid segurou sua outra mão, apertando-a com força.
Na verdade, mãe e filha estavam se abraçando, indiretamente.
— Uma mãe sempre preza pelas suas filhas...
As duas soltaram uma risada suave, leve, como se aliviassem um peso antigo apenas com aquilo.
Astrid era a filha mais velha, a primeira, a iniciadora de todas as que viriam depois.
Então Varelith voltou a falar, com um tom que anunciava algo sério.
— Agora, Astrid, tem um assunto que precisamos conversar...
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