Volume 3 – Prólogo

Prólogo 1: Nêmesis

Deve-se lembrar, antes de qualquer análise, que os chamados heróis imperiais não eram apenas guerreiros reconhecidos ou símbolos vivos do poder do Império. Na verdade, eles surgiram originalmente como os Juízes das grandes cidades imperiais, figuras investidas de autoridade plena para decidir sobre vida, morte e destino.  

Assim acontecera com Ajax, Herói de Aranost, Juiz de Cenara, cujo nome ainda ecoava pelos corredores da história como o exemplo perfeito de bravura, justiça e disciplina. 

E desta forma, os Heróis — os verdadeiros — também eram, no princípio, Juízes, protegendo inúmeras cidades com suas armas e veredictos. 

Budai, Juiz de Shenxi, carregava seu título com tanto peso e respeito que sua morte fora apenas o prenúncio para a queda e destruição da cidade que jurara proteger. 

Entretanto, é preciso cautela ao interpretar essa tradição, pois a regra não se aplica de maneira absoluta.  

Todo juiz é um herói, alguém reconhecido pelo Império, ou pelo povo, por seus feitos e sua autoridade; mas nem todo herói é um juiz, pois nem todos recebem o encargo de julgar em nome do Imperador, ou do Sol. 

Reiji Torison era um exemplo perfeito dessa distinção.  

Amplamente reconhecido como o Melhor Espadachim do Império, seu renome era tão vasto que seu nome era citado em tavernas, academias militares e registros oficiais. No entanto, apesar de carregar o título de herói imperial, Reiji não exercia jurisdição sobre cidade alguma. 

Para que alguém recebesse oficialmente o título de herói imperial, não bastavam habilidade, fama ou feitos extraordinários. Era necessário ser reconhecido pelo Conselho, um órgão cuja palavra tinha peso legal e político.  

Alternativamente, o título poderia ser concedido diretamente pelo Imperador ou pelo Bispo — uma honra raríssima, reservada apenas àqueles que ultrapassavam o comum em tudo o que faziam.  

Ao longo da história, pouquíssimos mortais receberam tal privilégio, e essa exclusividade aumentava ainda mais o prestígio de quem o possuía. 

Curiosamente, entre todos os generais do Império — o mais alto grau que alguém poderia alcançar dentro das forças armadas — apenas uma havia sido agraciada com o título de herói imperial; sem ser vinculada como Juiz de uma cidade.  

Sua existência era envolta em reverência e mistério.  

Ninguém sabia ao certo sua origem, nem como conquistara tal título, apenas que estava lá desde antes mesmo da existência do próprio Conselho, o que a tornava uma figura lendária dentro das fileiras militares. 

Seu nome era Astrid. 

Era uma mulher de aparência jovem, cuja imagem enganava facilmente quem olhasse apenas sua face, pois seus anos de serviço ao Império eram longos o suficiente para derrubar qualquer cronologia aparente.  

Possuía cabelos ruivos, longos e sedosos como fios de fogo que captavam a luz, conferindo-lhe uma presença quase etérea. Seu corpo era de estrutura comum, sem exageros de proporção, mas marcado pela musculatura discreta e firme adquirida após anos de treinamento, combates e campanhas que moldaram seu corpo tão bem quanto sua reputação.  

Seus olhos, castanhos claros como mel recém-colhido, transmitiam uma serenidade perigosa: a calma de alguém que já havia enfrentado batalhas demais para se impressionar com pequenas ameaças. 

Apesar de ostentar o posto de General, Astrid recusava-se a vestir armaduras. Em vez disso, trajava sempre seu uniforme militar impecável, exibindo com orgulho o emblema do Império: uma águia de asas abertas e garras estendidas, prestes a abater sua presa. Para ela, aquele símbolo era mais do que insígnia; era um juramento vivo carregado no peito. 

Outra particularidade a tornava ainda mais singular. Astrid era uma das raras oficiais que não possuía exércitos sob seu comando, nem guardas pessoais que a seguissem como sombra.  

Preferia realizar suas missões por conta própria, sem interferências, testemunhas ou distrações. Ela se movia como uma força militar de uma única pessoa, tão eficiente que os relatos de seus feitos, sempre solitários, tornavam-se lendas. 

Talvez fosse justamente essa independência que tornava seus resultados perfeitos, pois ninguém podia atrapalhá-la, e ninguém precisava consertar o que ela deixava para trás. 

***

Era noite cerrada. 

Longe de qualquer cidade, estrada ou sequer uma casa solitária, o céu se mostrava em sua forma mais pura. As estrelas brilhavam com intensidade, cintilando como pequenas lâmpadas presas ao negro absoluto da noite.  

Era uma paisagem tão bela, tão vasta e silenciosa, que seria capaz de emocionar qualquer viajante… se não fossem as copas densas das árvores altas que bloqueavam boa parte daquela visão.  

O bosque abafava o brilho dos céus como se desejasse esconder suas próprias testemunhas. 

— Foi uma bela captura hoje, não é? — comentou um dos bandidos, um sujeito magro, sempre grudado ao chefe como um cachorro fiel. Falava com entusiasmo sujo nos olhos. — Por quanto você acha que vamos conseguir vender eles? 

Alguns metros adiante, amarradas e amordaçadas, famílias inteiras aguardavam um destino trágico que não conseguiam evitar.  

Havia homens, mulheres, idosos de olhar cansado e crianças que mal compreendiam o que estava acontecendo, mas sentiam o medo no ar.  

Ali, para os criminosos, não importava idade, condição, saúde ou lágrimas: sempre existia alguém disposto a pagar por corpos, por mãos para trabalhar ou por vidas descartáveis. 

A venda de seres humanos, de suas vidas e de seus corpos, havia sido proibida muito antes do nascimento do Império. Um decreto tão antigo que aparecia até nos registros mais poeirentos das bibliotecas.  

Mas, apesar disso, o comércio clandestino jamais diminuíra. Nunca cessara. Vivia nos cantos obscuros do mundo como uma doença resistente, mudando apenas de nome, de rota, de intermediários. 

Os bandidos, todos homens e armados, bebiam e festejavam ao redor da fogueira central, comemorando o saque recente ao vilarejo isolado. Uma aldeia sem proteção, tão afastada das cidades-livres quanto das imperiais, que vivia de forma simples, pastoral, sem imaginar que um dia seriam alvo de monstros em forma de gente. Não tinham guardas, armas ou muralhas — apenas vidas pacatas que agora terminavam ali, amarradas no chão frio. 

O chefe dos bandidos observava a euforia com tédio. Um homem velho, largo, de barba grisalha e expressão cansada. Já vira aquela cena incontáveis vezes. O sofrimento alheio, os gritos, a celebração de seus homens… nada disso o influenciava mais. Suas rugas pareciam marcadas por anos de crimes e violência que o haviam tornado imune a qualquer remorso. 

— Meu senhor… — chamou um dos subordinados, outro bajulador que vivia em volta dele como mosca no cadáver. 

O chefe estreitou os olhos, já irritado por ter sua paz interrompida. 

— O que foi? — rosnou. 

O homem engoliu seco antes de falar: 

— Os h-homens estão ficando ansiosos. Eles querem… você sabe… faz muito tempo desde que… 

O chefe revirou os olhos com impaciência, como quem já sabia exatamente do que se tratava. 

— Apenas as mulheres que já tiveram filhos — decretou, com a voz grave e indiferente. — As crianças e as virgens são valiosas demais para vocês tocarem. 

— S-senhor… 

— O que foi agora?! — A irritação ficava visível em seus maxilares travados. 

— Podemos… bater nelas? Só um pouco? 

O chefe olhou demoradamente para o subordinado e depois para o restante de seus homens. Eram quase cinquenta, todos observando com expectativa animalesca.  

Ele conhecia aquele olhar, sabia bem como funcionavam. Se os frustrasse, se cortasse suas vontades completamente, não demoraria para que outro se levantasse contra ele, e seu corpo acabasse estendido sobre o mato como os muitos que já havia executado.  

Ele mesmo assumira a posição de líder desse modo. 

— Está bem — disse por fim, pesado. — Mas nada de mortes. E nenhum osso quebrado. Ficou claro? 

Um rugido coletivo de satisfação ecoou pelo acampamento.  

Copos foram erguidos, homens sorriram, e todos se voltaram na direção dos prisioneiros, que agora choravam em desespero silencioso.  

Ninguém ainda havia sido tocado, mas sabiam que aquela era apenas a primeira de muitas noites antes que fossem vendidos para seus novos donos. E entendiam que aquela mesma noite terrível se repetiria, e repetiria, até o dia da mercadoria ser entregue. 

Antes mesmo que a primeira mão estendida pudesse tocar na pele da primeira vítima, todas as tochas do acampamento se apagaram ao mesmo tempo, como se um vento gelado e consciente tivesse varrido o local.  

A escuridão tomou conta do bosque tão rapidamente que parecia ter engolido o mundo inteiro. 

— O que foi isso? 

— Deve ter sido o vento… 

As respostas surgiram hesitantes, mas não havia vento algum.  

As copas das árvores continuavam imóveis, e o ar estava tão parado que dava para ouvir a respiração acelerada dos homens.  

Alguns ainda tentavam fingir coragem, embora as vozes não escondessem o medo crescente. Grunhidos nervosos, passos incertos, metal raspando contra metal — sons que agora soavam altos demais no silêncio absoluto. 

— Calem a boca, todos vocês! — rugiu o chefe, levantando-se de sua cadeira rudimentar com um peso que denunciava sua idade.  

Agarrou seu enorme martelo de guerra com mãos calejadas, como se a arma pudesse devolver-lhe controle da situação. 

Nem os prisioneiros nem seus próprios subordinados sabiam exatamente de quem ele falava, mas o tom bastou. Por puro reflexo de sobrevivência, as vítimas silenciaram imediatamente. Já os bandidos… bem, bandidos nunca se calam por completo; e mesmo assim, pareciam ter finalmente aprendido a obedecer sem retrucar.  

As tochas acenderam de novo. 

E o que se revelou sob aquela luz fraca foi um cenário de pesadelo.  

Todos os cinquenta homens estavam mortos. Caídos onde estavam um instante antes, deitados sobre as próprias poças de sangue, sem terem tido tempo sequer de erguer suas armas. Nenhum grito fora ouvido. Nenhuma luta acontecera. Morreram como se o ar tivesse cortado suas gargantas. 

O chefe olhou ao redor pela primeira vez em décadas com verdadeiro pavor. Vasculhou cada árvore, cada sombra, cada uma das vítimas ainda amarradas, tentando identificar o responsável. Não havia flechas, pontas de lança, ferimentos visíveis de lâminas.  

Nada.  

O tipo de morte silenciosa que não deveria existir.  

Um pensamento maligno cruzou sua mente: vampiros.  

Ele fora do tipo que não acreditava em superstição, mas aquilo… aquilo não era obra de humanos comuns. Ainda assim, lembrava que vampiros estavam extintos. Ou deveriam estar. 

— Vai ficar tudo bem agora… 

A voz era feminina. Firme, madura, carregada de segurança. Sem pressa. Uma voz que parecia não apenas acostumada ao perigo, mas dona dele. 

Instintivamente, o chefe girou seu enorme martelo, atacando na direção de onde ouvira a voz. Pretendia esmagar a cabeça da desconhecida antes que ela tivesse tempo de falar outra palavra. 

Entretanto… 

TRRRAAAASH! 

No mesmo instante em que o ataque chegou ao alcance dela, a cabeça do martelo explodiu em fragmentos de metal e madeira. A mulher havia interceptado a arma com a ponta dos dedos e a destruído como se fosse barro, anulando completamente o golpe.  

O impacto fez ricochetear metal contra o chão, brilhando sob a luz fraca das tochas reacendidas. 

O chefe cambaleou. O medo o atingiu como um soco no peito e, tropeçando nos próprios pés, caiu sentado na terra dura. Sentia o coração batendo rápido demais para sua idade e percebeu, com clareza dolorosa, que não estava diante de uma oponente comum. 

A mulher, por sua vez, continuou seu trabalho em silêncio. Terminou de libertar a última pessoa com movimentos precisos, sem hesitação e sem pressa. Depois, levantou-se devagar, como quem sabia que nenhum inimigo vivo poderia feri-la.  

Virou-se para o chefe com um olhar de desdém gelado, e começou a caminhar em sua direção, passo após passo, cada um deles ecoando mais pesado na mente dele do que no chão da floresta. 

— Já faz algum tempo que estou lhe procurando — disse, a voz grave de alguém acostumada a dar ordens e executá-las. — Você sempre foi bom em se esconder. Mas parece que sua confiança lhe traiu dessa vez. Eu pude ouvir a festa que estavam fazendo… o saque foi bom, não é? Sei que para vocês o principal não são os objetos, mas as pessoas. Me diga… quantas foram desta vez? 

— O que vo... 

— QUANTAS?! 

Ele nem teve tempo de falar.  

A mulher pisou em seu joelho com brutalidade. O osso foi esmagado, o membro deslocado, e o grito do chefe cortou o silêncio da floresta. A dor era tão intensa que suas mãos tremeram sem controle. 

— Eu precisava deixar claro que não aceitaria revoltas! — gritou ele, tentando se defender, cuspindo as palavras entre respirações falhadas. — Matamos uns trinta! 

— Trinta e sete — corrigiu ela, com frieza gélida. — Trinta e sete pais, homens, filhos, maridos. 

— Droga… se não fosse eu, outra pessoa faria no meu lugar! 

— E essa outra pessoa estaria passando exatamente pelo que você está passando agora — respondeu a mulher, respirando fundo para recuperar a calma após o acesso de ira. — Infelizmente, acho que você vai sangrar até morrer pelo meu descuido. Escapou das punições imperiais, mas não do povo… 

Ela se afastou, deixando-o caído na terra úmida.  

O chefe viu, entre tremores e suor frio, todos aqueles que chamava de “mercadoria” olhando para ele. Homens e mulheres libertos, agora cheios de dor, luto e fúria acumulada. Alguns tremiam, outros choravam… mas todos o encaravam com a mesma emoção sombria. Não havia mais súplica em seus olhos. Havia julgamento. 

Os gritos do chefe quebraram o silêncio da floresta mais uma vez. Gritos de dor, arrependimento vazio, desespero sem escape. O tipo de som que denunciava alguém que finalmente pagava pelos pecados de uma vida inteira. 

E assim, Astrid ergueu o rosto para o céu escuro, ouvindo o que restava ecoar entre as árvores, e sentiu que sua missão estava concluída. 

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