Volume 2 – Arco 13

Epílogo: Anastasia

Caminharam em direção ao ponto onde haviam deixado o grupo, mas não encontraram ninguém. 

O campo estava vazio, silencioso — como se o ar ainda estivesse se recuperando da batalha. 

O casal trocou um breve olhar. Nenhuma palavra.  Apenas o som de seus passos, arrastados e lentos, ecoava no chão marcado de sangue e cinzas.  A vontade de desmaiar os acompanhava como um fantasma a cada passo.  A única esperança que lhes restava era a carruagem. 

Se houvesse algum lugar onde o grupo pudesse estar, seria lá. 

E, para o alívio deles, estavam. 

— Kenshiro! Erina! — gritaram algumas vozes, aliviadas e tensas ao mesmo tempo. 

Mas não havia sorrisos.  A expressão de todos era a mesma: medo e exaustão. 

— O Kaji parece ter desmaiado — explicou Soren, tentando manter a calma. — É como se... o fogo dele tivesse simplesmente se apagado. 

Erina e Kenshiro se entreolharam, assustados. 

— E o Sebastian... — disse Xin, entre soluços que mal conseguiam sair —, ele... ele... 

O casal não esperou o fim da frase. 

Correram até eles. 

Kaji estava caído um pouco distante da carruagem. Parecia que tentara se arrastar até ela. O corpo cinza, quase negro, imóvel.  O elemental parecia ter se fundido ao própria mundo, nada do que faziam a movia.  Nem mesmo Erina, que outrora vestira uma armadura mais pesada, conseguia mexê-lo um centímetro sequer. 

Mas Sebastian... 

Sebastian estava pior. 

Muito pior. 

Ah... ah...

Apenas gemidos de dor o vampiro emitia.

Zhen, pálido, explicou com a voz trêmula: 

— Ele ficou assim logo depois que vocês saíram... 

O vampiro jazia no chão, em posição fetal, agarrando o próprio pescoço, como se tentasse arrancar algo invisível que o sufocava.  O sangue jorrava em pulsos irregulares de praticamente todo o corpo — dos olhos, do nariz, das orelhas. 

E o cheiro... era podridão viva. 

Erina ajoelhou-se ao lado dele. 

Encostou a mão em sua testa, invocando sua aura verde.  Luz suave se espalhou pelo corpo do vampiro — mas, diferente das outras vezes, a carne não reagiu. 

O sangue continuava a escorrer.  A respiração dele soava cada vez mais fraca. 

Um minuto se passou. 

E então Erina ergueu os olhos para o marido, o rosto tomado pela impotência. 

— Não está surtindo efeito! 

Kenshiro segurou o ombro dela, tentando transmitir firmeza — mesmo sem saber o que fazer. 

Ele era o líder quando Erina fraquejava.  Mas, naquele instante, liderança era apenas uma palavra. 

“Se fosse o Fox ou Ren...”, pensou Kenshiro. “O que eles fariam?” 

— Onde estão Fox e Ren? — perguntou, olhando ao redor. 

— Ainda não voltaram — respondeu Gurok, em tom grave. 

Takashi começou: 

— Acha que eles... 

— Shh! — interrompeu Kenshiro, levantando a mão. — Escutem... 

O grupo silenciou. 

Até os soluços de Xin cessaram. 

Durante alguns segundos, apenas o som irregular da respiração de Sebastian preenchia o ar. 

Mas logo, sob o murmúrio do vento, outra coisa se fez ouvir. 

Uma voz. Distorcida, distante.  Como se viesse debaixo da terra ou de um lugar que não devia existir. 

Uma mistura de palavras e lamentos, arrastados e fragmentados — um som que não parecia humano, mas também não era totalmente alheio. 

O frio percorreu a espinha de todos. 

E, pela primeira vez desde a vitória, Kenshiro não soube se ainda estavam a salvo. 

— R_pido! V__ês pr__isam __gir! 

A voz soava distorcida, quebrada por estática e dor. 

— O que é aquilo? — perguntou Kenshiro, erguendo a cabeça. 

Todos olharam na mesma direção. 

Ao longe, uma figura cambaleante se aproximava. 

Seus movimentos eram desajeitados, incoerentes, como os de uma criança aprendendo a andar — ou de alguém que havia esquecido como fazê-lo. 

Takashi estreitou os olhos, tentando focar, até que a silhueta se tornou clara o suficiente para que pudesse vê-la.  E imediatamente desejou não ter visto. 

A criatura que se aproximava era humanóide, mas não havia nada de humano em sua forma. 

A pele, roxa, quase negra, parecia apodrecida e inflamada. Pelos longos, grossos e desalinhados cobriam-lhe partes do corpo como um animal selvagem.  O rosto — ou o que restava dele — estava deformado, os ossos do maxilar à mostra, e os olhos, um deles faltando, tremiam em convulsões. 

O corpo estava coberto de cicatrizes abertashematomas profundos e ossos quebrados que se projetavam sob a carne. 

E ainda assim, por mais grotesco que fosse, havia algo terrivelmente familiar. 

— Por favor! — A criatura gritou com uma voz rouca, sufocada. — SAIAM DAQUI! 

As palavras ecoaram com clareza, mesmo à distância. 

E naquele instante, Kenshiro e Erina gelaram. 

— Aquele é...? 

— Ren? 

O nome saiu quase sem som, um sussurro que ninguém quis acreditar. 

Mas o tempo para entender o que viam simplesmente acabou. 

De repente, o céu mudou. 

A luz do dia fora arrancada como uma cortina. 

Não havia nuvens. 

Não havia sol. 

Não havia cor. 

Somente o vazio escuro, absoluto, sufocante. 

E no meio daquele breu, começou um ruído metálico, repetitivo, estridente.  Um som que rasgava os tímpanos, que feria a alma. 

Kenshiro ergueu o olhar — e o coração pareceu parar. 

Centenas de milhares de adagas flutuavam sobre eles, formando um manto metálico que se estendia de horizonte a horizonte. 

Cada uma tremeluzia com uma energia sombria e pulsante, e o som incessante era o bater delas umas contra as outras, impacientes, vibrando em um coro de destruição iminente. 

Dois olhos rubros abriram-se distante na estrada. 

E naquele instante, todos entenderam:

Eu havia me cansado de brincar. 

Ren tentou gritar de novo. O som veio apenas como um gemido distorcido: 

 — F... FUJAAAAMMMMM!!! 

O aviso veio tarde demais. 

O céu rasgou-se. 

As primeiras ondas de adagas desceram em queda livre, perfurando a terra, as rochas e até o ar. 

Eram incontáveis. 

Vieram em camadasem marésem enxames, cada uma seguida de outra, até que o mundo inteiro se tornasse o eco de aço contra aço, gritos, sangue e morte. 

E quando finalmente cessaram, quando as últimas adagas tocaram o chão e o silêncio voltou, o céu estava limpo novamente.

E assim, um pequeno destacamento aproximava-se, a passos pacientes, para abordá-los.

***

Você esperava um resultado diferente?

Pois não deveria. 

Nenhum outro fim seria digno. 

Não me veja como um ser maligno, minha doce criança.
O mal... o verdadeiro mal...
nunca se apresenta com garras ou presas.
Ele se oculta entre sorrisos e promessas,
em rostos bem alinhados,
em vozes suaves e mãos perfumadas. 

Você já deve tê-lo visto uma vez;

O mal que se veste de virtude,
que fala em justiça,
que distribui caridade
enquanto se banha em sangue e orgulho. 

Ah... eu o vi.

Assim como minha filha. 

Quando a encontrei
tão frágil, tão ferida
soube que havia tocado algo puro. 

Ela sentiu esse mal na própria carne.
E ainda assim, só exalava bondade.

Foi por isso que a tomei em meus braços,
por isso que a chamei de minha filha. 

Não por fraqueza...
mas por amor. 

E, para minha alegria,
ela me aceitou como mãe. 

Mesmo sem saber quem eu era.
Mesmo depois de descobrir quais eram minhas intenções.

Agora, o seu corpo repousa. 

Durma, minha querida Anastasia.
Descanse nas sombras. 

Pois em breve,
irradicarei todo o mal que há de habitar
neste mundo tão injusto e cruel.

***

Anastasia era uma jovem garçonete de uma taverna cuja cidade já mudara de nomes nos tempos atuais. E, por sinal, era a melhor funcionária daquele estabelecimento. 

Fora prometido a ela receber aquela taverna quando seu dono, um homem já velho e sem herdeiros, partisse. 

A pequena fofoca se espalhou por toda a cidade, e sem perceber, Anastasia já tinha algumas dúzias de amigas e amores a ela declarados. 

Todos com segundas intenções, mas ela não sabia disso. 

Embora fosse uma mulher muito bonita, a verdadeira beleza naquele período se encontrava no dinheiro. 

As mulheres gordas eram as mais procuradas, pois possuíam as melhores guloseimas que se podiam comprar — um luxo raro, e portanto desejado.  Quanto aos homens, os mais requisitados eram sempre os velhos, donos de posses e terras. 

Anastasia havia aplicado um pequeno golpe em seu patrão sem sequer ter essa intenção. 

Fora bastante para que a cidade a olhasse diferente.  Isso fez muitos deduzirem que ela era uma pessoa tão mal caráter quanto eles, justificando assim suas próprias ações. 

Anastasia era uma mulher difícil de agradar. 

Desejava mais do que tudo encontrar o seu verdadeiro amor, e somente com ele seria o seu primeiro em tudo — seu primeiro namorado, marido, e o único que desejava amar até o fim. 

O tipo de sonho que o mundo costuma punir. 

Certo dia, quando tomava conta das bebidas, um homem estrangeiro havia chegado na cidade.  Tinha um sotaque que ninguém reconhecia, um olhar calmo, e uma postura nobre demais para estar ali.  E justamente havia parado em seu bar para beber e descansar. 

O fato de não se atirar aos seus pés, de se manter mais calado, diferente dos demais, a fez desejá-lo. 

Ele falava pouco, e sorria apenas quando queria.  Parecia sincero — e para uma alma faminta de verdade, isso bastava. 

Poucas semanas depois, estavam casados. 

A cidade murmurava inveja e desconfiança, mas ela, cega de amor, nada escutava. 

Para ela, havia encontrado o paraíso, antes de sua repentina morte. 

Durante a lua de mel, foram para longe da cidade — um local isolado, coberto por flores e pelo canto distante de pássaros invisíveis. 

Um lugar que parecia encantado, mágico. 

Um paraíso. 

E foi lá onde Anastasia fora enterrada. No dia seguinte... 

Seus gritos de dor ao ser violada pelo homem que amava.  O som abafado de súplicas que ninguém responderia. A maneira brutal pela qual foi tão cruelmente assassinada. 

Ninguém jamais a escutaria. 

Mas eu escutei. 

O vento me trouxe seu último sopro. 

Sabia que havia chegado tarde, mas sua alma ainda habitava o corpo ainda quente. 

O desgraçado sequer esperara para partir. 

Se tivesse passado a noite, ainda o encontraria ali, dormindo. 

Anastasia morrera no meio do dia, e eu chegara quando o sol ainda pensava a se pôr. 

Meu coração se aqueceu ao ver Anastasia abrindo os olhos. 

— O que...? Eu... 

— Não diga nada — eu disse, a voz saiu suave para não perturbar o fio tênue entre a vida e a morte. 

A abracei com cuidado, como se um movimento brusco pudesse espalhar os vermes que já haviam começado a devorar o corpo. Os pequenos corpos repugnantes trabalhavam sob a pele murcha; eu os ocultei com o calor das minhas mãos para que ela não visse o horror. 

— Apenas me diga o que houve — pedi, num sussurro que tentava ser porto e promessas. 

Anastasia era ingênua até a medula. Contou-me tudo, derramou, como se eu fosse a confidente mais antiga e leal: a infância na taverna, as noites cheias de risos, as promessas do velho dono, o troco esquecido que virou boato, a chegada do estrangeiro.

Quando chegou ao ponto em que entendeu — com aquela clareza que parte apenas das almas traídas — que seu amado a violara e a matara por ganância, ela desabou em meus braços. As lágrimas que caíam de seus olhos eram negras, saliva escassa e sangue, porque o corpo moribundo pouco tinha que oferecer além de dor. 

Tentei consolar o que restava de humanidade nela, mas não há palavra que apague tal agressão cometida por quem se diz amado. Não havia consolo suficiente naquele mundo. Então, por fim, dei a ela uma escolha: 

— Sua história não precisa terminar aqui, se quiser — disse, e levei sua mão ao meu peito. 

Quando tocou a minha pele, sentiu o bater lento, sentiu calor onde havia apenas frio. Sentiu a verdade do que eu oferecia. Seus olhos, famintos por qualquer promessa de abrigo, se abriram num sorriso tão pequeno e tão gentil que me quebrou ao mesmo tempo — o mesmo sorriso que eu já vira em outros que aceitavam minha mão.

— Ou... — continuei, com a honestidade dura que me define. — ...você pode se levantar e ajudar-me a trazer o que eu chamo de paraíso aos que merecem. 

Ela franziu o cenho, a voz frágil:

— E quanto àqueles que não merecem? 

— Que fiquem no inferno. 

Palavras ríspidas, diretas. Verdades que não pedem aprovação. Eu não minto com oferendas assim: o paraíso tem custos, e algumas almas simplesmente não cabem nele. 

Anastasia olhou fundo em meus olhos, numa decisão que parecia fazer o mundo todo segurar o fôlego, e respondeu com voz baixa, mas firme: 

— Eu quero ajudá-la. 

E foi quando eu a adotei. 

(...) 

Na manhã seguinte, depois de uma noite longa em que lhe contei tudo — os planos, as regras, a natureza fria da mudança que oferecia —, ela voltou à cidade. 

Eu disse a ela que poderia ceifar os conspiradores; sugeri vingança direta, o corte seco e justo. Mas Anastasia, sempre feita de doçura e ingenuidade, tentou o caminho mais suave: falou, expôs, tentou trazer à luz a verdade esperando que a honestidade bastasse. 

Sempre fora minha criança mais vulnerável. 

Ao entrar na taverna, a coragem ainda pendia de suas palavras; ela disse tudo, rosto encharcado, voz tremendo. Mas a resposta foi um único grito que calou qualquer princípio de justiça naquele recinto. 

— Renascida! — vociferou seu marido. 

No mesmo instante, todos os olhos se voltaram para ela. O sussurro da morte já havia circulado entre eles. Significava que sabiam da sua morte; significava que, mesmo revelando o assassino, ela fora marcada como perigo — algo a ser eliminado antes que apontasse sobre os outros a verdade. 

As amizades de ontem revelaram-se aberturas vazias. O calor humano virou gelo. Aqueles rostos que riam e brindavam viraram lâminas escondidas. Eles sempre foram assim em suas Essências: pequenos, egoístas, acostumados ao conforto.

Mereciam o inferno que já viviam. 

— Mãe, me empreste seu poder — pediu ela, com a esperança infantil que ainda a conduzia. 

E eu dei. 

Naquela noite, sob a lua pálida, as lâminas encontraram corações.

Em silêncio e sem heroísmo, as adagas perfuraram com precisão: os nomes que conspiraram, os olhares que a condenaram, todos caíram com o aço onde antes julgavam seguros seus passos. A cidade acordou ao som do sangue no chão.

Somente seu marido fora poupado no imediato — não por piedade, mas por necessidade.

Para ela, ele seria o primeiro e único a receber o gosto do aço com prazer: que sofresse, que berrasse, que visse o próprio sangue decorar a rua que antes fora cena de festas. Ele gritou, suplicou, e ironicamente, ao final, tornou-se o Renascido. Marcado, carregando a culpa pelo massacre que, no fim, o tornou um bode expiatório entre os vivos. 

Quanto às crianças da cidade, àquelas que nada pediram senão um pão e um teto, eu e outras das minhas filhas as recolhemos. Levamos-nas para um lugar seguro, um orfanato distante, em outra cidade onde a inocência pudesse ter um destino menos cruel. 

Desde aquele dia, Anastasia me seguiu com devoção. Cresceu sob meu nome, aprendeu a tocar as sombras e a refinar a lâmina que eu lhe dei. 

Houve apenas uma vez em que ela me desobedeceu: o temor da própria morte, súbito e humano, a impediu de obedecer quando eu ordenei que me permitisse assumir seu corpo.

Eu não a culpo — poucos suportam a iminência do fim sem hesitar. Mas asseguro que seus assassinos pagarão pelo que fizeram. 

Kenshiro e Erina pagarão por terem tirado Anastasia de mim.

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