Volume 2 – Arco 9

Capítulo 96: Sintonia

O corpo de Kenshiro já não era visível no céu. Não sabiam quão longe havia sido lançado; não tinham a menor pista de onde poderia ter aterrissado. 

Depois do grito único — um eco de desespero e vazio —, o que ficou foi um silêncio pesado, envergonhado.

Vergonha por não terem detido Ajax. Vergonha por permitirem a tragédia. Vergonha por aquela dor não ter sido a sua. 

— Ele conseguiu se mover, mesmo com o feitiço? — A voz grave de Ajax cortou o silêncio e devolveu todos ao que restava do campo de batalha, ou ao campo de execução. — Qual era o nome daquele sujeito? 

— Kenshiro Torison! — respondeu Takashi, rangendo os dentes; a palavra saiu entre luto e ira, como se fosse um açoite. 

— “Kenshiro Torison”. — Ajax deixou as sílabas caírem como um veredito. Preparou o martelo, erguendo-o num arco lento, ritualmente implacável. — Guie seus companheiros no pós-morte. 

O martelo desceu como um meteoro: rápido, inevitável, projetado para arrancar tudo num único golpe. 

GÓOOONG!!! 

O som reverberou pelos ossos de todos. 

— O QUÊ?!

Erina levantou o escudo num reflexo desesperado, prendendo o golpe acima da cabeça. A pancada não fora detida — apenas desviada —, e a força do impacto percorreu-lhe os braços, os ombros, o pescoço. 

— Que pergaminho defeituoso! — Ajax berrou, recuando apenas o suficiente para readquirir força e erguer o martelo de novo. 

GÓOOONG!!! 

GÓOOONG!!! 

GÓOOONG!!! 

Cada novo golpe fazia Erina dobrar-se um pouco mais.

Segurava o escudo com as duas mãos até sentirem os tendões latejar. Sua magia curativa pulsava em torno dela, tecendo remendos invisíveis; porém, já não era mais capaz de anestesiar a dor. Sentia cada sensação física da ossatura sendo chacoalhada. Ondas de choque dançavam pelo seu corpo — microfissuras que se alargavam em dentes de dor —, ossos que trincavam, cartilagens gemendo. 

Takashi observava; sua visão tremia entre o medo e a impotência. Erina, sua Capitã, estava ali — pequena figura de resistência — empenhada em protegê-lo.

— Eu preciso... — Erina murmurou, as palavras saindo com os olhos cerrados, lágrimas quentes que se misturavam ao sangue em seus lábios. — ...chegar até ele a tempo — Falava mais para si do que para Takashi. A convicção tremia, mas não cessava. — Ou ele morrerá... 

— MORRAM LOGO! — A voz de Ajax explodiu, um comando cruel e sem compaixão. 

Ele golpearia Erina quantas vezes fosse necessário.

Cada impacto era um teste: até que ponto a capitã resistiria erguendo aquele escudo, até quando seu corpo suportaria o conserto mágico e a dor? Se continuasse, se mantivesse aquele ritmo de marteladas, se não houvesse intervenção — Ajax conseguiria. Conseguiria reduzir Erina a nada sob o metal, até que o escudo não fosse mais proteção, e sim o instrumento de sua própria destruição. 

O martelo foi erguido outra vez. A respiração coletiva se bloqueou. O destino pairava, cruel e simples, sobre a cabeça de todos. 

Por um instante, houve uma pausa entre os golpes. 

Erina, ainda de joelhos, ergueu levemente o escudo para espiar. Seus olhos se arregalaram ao ver que Ajax não se movia mais — o martelo permanecia suspenso, como se a cena tivesse congelado. Mas não era feitiço: por trás dele, uma sombra gigantesca o mantinha preso. 

— Gurok! — A voz dela rompeu o silêncio, misto de alívio e surpresa. 

— Sua aberração esverdeada! — rosnou Ajax, tentando virar o pescoço. — Como resistiu à paralisia?! 

O orc exibiu os dentes num sorriso largo, um brilho de triunfo iluminando-lhe o rosto suado. — Quando você tirou os olhos de mim, minha armadura recuperou sua proteção. Nada me toca, nem mesmo esse pergaminho miserável. 

O sorriso de Gurok cresceu ainda mais ao sentir a fúria de Ajax. Os músculos se retesavam, veias saltando nos braços enquanto ele segurava o martelo com toda a força. O orc queria a revanche; agora que compreendia a extensão dos poderes anulantes do imperial, a luta não seria a mesma. 

— Nolan! Quanto tempo mais?! — gritou Erina, sem ousar baixar totalmente o escudo. 

À frente de Ajax, uma névoa fina dançava no ar. Ele julgou ser apenas poeira levantada pelo impacto dos golpes, mas por trás dela Nolan já trabalhava em silêncio, livre da paralisia. Seus dedos riscavam símbolos incandescentes no ar com precisão cirúrgica. 

— Só um segundo! — respondeu, quase sem desviar os olhos do trabalho.

O último selo brilhou, e ele o lançou ao chão. Uma onda mágica expandiu-se como um sopro invisível, cobrindo todo o campo. Os músculos de cada um vibraram ao serem libertados da paralisia do pergaminho. 

— NÃÃÃOOOO! — O rugido de Ajax sacudiu o espaço, selvagem, desesperado. 

Sua força redobrou contra Gurok. Os dois colossos se chocaram, cada um tentando sobrepujar o outro, e o orc rangeu os dentes sob a pressão crescente. 

— Erina, Takashi! Movam-se! — berrou, segurando Ajax apenas o tempo suficiente. 

BAAAM!!! 

O martelo escapou de seu controle e caiu como um raio, rachando o solo onde os dois segundos antes ainda estavam. Terra e pedra se ergueram em estilhaços. 

Takashi caiu rolando para o lado, sentindo o coração martelar. Virou-se, ofegante, procurando a capitã. 

— Erina, você... 

Mas ela já não estava ali.

Sua armadura repousava abandonada, como se esperasse que alguém a vestisse, as placas de metal refletindo a poeira dourada ainda suspensa no ar. Despida do peso, sua silhueta parecia ainda menor, mais veloz, correndo determinada na direção em que Kenshiro havia sido arremessado. 

— Erina! — Sebastian disparou atrás dela, a capa esvoaçando como uma sombra em perseguição.

Seu coração se apertava: sabia que os sentimentos da cavaleira podiam arrastá-la para um destino ainda mais cruel. 

Sem seus principais líderes — Fox, Kenshiro, Erina e até mesmo Sebastian, cada um afastado ou impossibilitado —, o grupo restante agora se via diante de Ajax sozinho. O novo líder, o antigo vice-líder, a antiga capitã e o confidente não estavam ali para guiá-los. Restava apenas encarar o herói imperial com as próprias forças. 

Liberto do aperto de Gurok e tomado pela frustração de ter sido contido, Ajax girou o martelo numa curva ampla, mirando o orc. 

O impacto foi brutal. Gurok ergueu os braços em defesa, o choque o arrastou para trás, sulcando o chão sob seus pés. A armadura ressoou como um sino, manteve-se firme, absorvendo o golpe. Ainda protegido pelas suas características arcanas, o orc sabia que precisava aproveitar cada segundo daquela vantagem. 

Ele não hesitou. Avançou com toda a sua massa, agarrando Ajax pelos ombros e desferindo-lhe uma cabeçada. 

O crânio do imperial se abriu em sangue. Ajax nem piscou. Não cambaleou, não demonstrou dor — apenas uma frieza quase sobre-humana. Como uma máquina, estendeu a mão e segurou a cabeça de Gurok, pronto para devolver o golpe. 

ZWHIP! 

Uma flecha cortou o ar e atravessou-lhe o olho esquerdo, a ponta detendo-se a poucos centímetros do rosto de Gurok. 

O paladino recuou de súbito, assustado. Por um instante, acreditou que a luta estava vencida. O herói tinha sido alvejado no ponto mais frágil. 

Atrás de Ajax, Takashi permanecia com o arco tensionado, a respiração acelerada. Seu coração quase não acreditava que o disparo havia atingido o alvo. Um tiro perfeito, um golpe fatal... fácil demais. 

O alívio não durou. 

O corpo de Ajax girou lentamente, revelando o rosto ensanguentado. O olho flechado não lhe arrancara a vida. Ele encarava o arqueiro com um brilho cruel. 

— Astuto você... — disse, quase apreciativo. 

Com as próprias mãos, partiu a ponta da flecha, puxando o restante pela nuca. O orifício pulsante se fechou diante deles. Em segundos, não restava ferida. Nem cicatriz. O olho estava intacto, como se nada tivesse acontecido. 

— Admito que nem eu sabia que sobreviveria a isso — Ajax sorriu, encantado com a descoberta. — O poder da Essência é mesmo algo aterrorizante! 

Então, abriu os braços e os juntou numa palma imensa. 

O som reverberou como um trovão.

Uma onda de choque invisível atravessou o campo e atingiu Takashi antes que pudesse reagir. O impacto o ergueu do chão como se fosse um boneco, lançando-o para trás. Mas não era apenas ar ou força bruta: o golpe carregava energia, esmagando-lhe o corpo por dentro. 

AGHHhh! — O grito saiu junto com um jorro de sangue pela boca. 

Takashi caiu de joelhos, tossindo, a visão turva. Cada órgão latejava como se tivesse sido atingido individualmente. 

Ajax o observava com um sorriso sádico, satisfeito com a arma recém-descoberta.

— Interessante... — murmurou. — Eu mesmo acabo de inventar uma nova forma de matar. 

Não percebeu a presença do pequeno monge sob si — apenas sentiu o impacto do soco subindo contra seu queixo. 
O golpe não chegou a erguê-lo do chão, mas fora o que mais o feriu até então. Sua mandíbula estalou e um gosto metálico de sangue espalhou-se em sua boca. 

— Não é o único capaz de utilizar a Essência! — bradou Zhen, saltando logo em seguida e golpeando a testa de Ajax com a ponta dos dedos. 

A princípio, parecia apenas um toque contra a pele endurecida. Ajax sentiu como se uma lança ardente tivesse atravessado sua cabeça. Cambaleou por um instante, lutando para não perder os sentidos. 

“Esse sujeito… é mesmo perigoso!” 

Forçando-se a manter o foco, encarou os olhos do monge. Estavam vibrantes, tom alaranjado flamejante. Zhen ardia em fúria, transbordando sua raiva em golpes precisos, cada um mais pesado que o anterior. Sua Essência misturada aos seus sentimentos, impulsionando suas forças.

Tentou esmagá-lo com um abraço, foi contido quando Gurok o agarrou por trás, travando-lhe os braços com força bruta. 

Zhen aproveitou o espaço aberto. Explodiu em uma sequência de socos, como se treinasse em um boneco de madeira. Só que, a cada impacto, Ajax sentia a armadura ceder como se fosse sua própria carne. O ar era arrancado de seus pulmões com cada estalo. 

Antes que pudesse erguer as pernas para chutá-los para longe, um som agudo cortou o campo. 

SHHHHRRRRKKKHHH! 

O gelo subiu veloz, prendendo-lhe as pernas ao chão. Vaelis concentrava cada gota de Mana que restava, enquanto Soren compartilhava sua energia para alimentar sua colega. O ar tornou-se frio, o vapor se erguendo em ondas. Ajax sentiu a dor gélida rasgar suas pernas, como se lâminas congeladas perfurassem seus músculos. 

Ainda tinha a cabeça livre. Preparou-se para esmagar Gurok com uma cabeçada de sua nuca. 

SWHIP! 

Seu pescoço foi laçado por um chicote, puxado ao lado com violência. Xin cravou os pés no solo, músculos tensos, tentando arrancar-lhe a vida com cada puxão silencioso. Sua fúria não tinha voz, apenas a selvageria do gesto. 

E antes que pudesse reagir, duas flechas cortaram o ar. 

THWIP! THWIP! 

Os projéteis cravaram-se em seus olhos, cegando-o. Ajax urrou, a dor explodindo em sua mente. 

Todos estavam unidos, cada golpe carregado de desespero e vingança. Um após o outro, atacavam sem hesitar, forçando o grande herói a tomar alguma atitude, ou seria derrotado. 

Mesmo que não quisesse admitir, Ajax percebia: estava levando a pior contra aquele bando de sobreviventes. Um grupo de renegados, enfraquecidos e quebrados, estava vencendo o grande General. 

Aquilo já não o divertia mais. 

— Tirem suas mãos de mim… Tirem suas mãos de mim. Tirem suas mãos de MIM!

Os corpos dos imperiais tombados começaram a brilhar em dourado, como tochas vivas, antes de voltarem à cor pálida da morte. De cada cadáver erguiam-se pequenas esferas douradas, atraídas como mariposas até Ajax. 

Cada esfera absorvida o tornava mais pesado, mais sólido, mais indestrutível. Quando a última desapareceu dentro dele, o som dos socos de Zhen deixou de ser carne contra carne e passou a soar como punhos contra aço. Seus nós dos dedos ardiam. 

TIREM SUAS MÃOS DE MIM! 

Ajax ergueu o pé, quebrando o gelo que o prendia, como se nem existisse, e o desceu contra o solo. O impacto sacudiu o campo inteiro, rachando o chão. O restante do gelo que o prendia estilhaçou-se. O tremor derrubou Xin, soltando-lhe o chicote do pescoço. 

Livre, Ajax arremeteu a cabeça para trás. O crânio encontrou o rosto de Gurok. O estalo seco ecoou quando o nariz do orc se partiu, lançando-o cambaleante para trás, os olhos turvos de dor. 

As flechas cravadas em seus olhos foram arrancadas de um só puxão. Outras duas vieram em seguida, zunindo pelo ar — pararam na superfície endurecida, ricocheteando como se tivessem atingido placas de ferro. Nem mesmo sua visão fora comprometida. 

Restava apenas Zhen. 

O monge não recuou. Plantou os pés no chão e aguardou. O peito arfava, seu olhar queimava em chamas alaranjadas. 

Ajax ergueu o punho, cada músculo pulsando como um açoite prestes a cair.

Zhen ergueu o próprio braço, preparando-se para responder na mesma medida. 

Seria um choque direto. Essência contra Essência.

De um lado, o General que roubava força dos mortos.

Do outro, o discípulo de Budai, confiando apenas em sua própria Essência.

O silêncio pesado antecedeu o impacto inevitável. 

Impressionante! — Uma voz ecoou, clara e conhecida, cortando o campo como um raio. — Eu não poderia estar mais orgulhoso de vocês. 

— E eu digo o mesmo. 

Todos se voltaram. Kenshiro e Erina haviam retornado. 

Sebastian, exausto e pálido como um cadáver em vida, havia carregado os dois até ali. 

Ajax encarou-os com frieza.

— Sobreviveu, então. 

— Na verdade, não. — Kenshiro abriu um sorriso infantil, quase zombeteiro. 

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