Volume 2 – Arco 9
Capítulo 91: Inundados
No cofre, o caos já tomava conta.
Todos os armários haviam sido abertos. Dinheiro, adornos, armas e ferramentas espalhavam-se pelo chão, alguns objetos já boiando na água que subia depressa, roçando os joelhos. O ar cheirava a ferro e mofo, misturado à umidade sufocante.
Entre papéis, recibos e pergaminhos, nenhum deles era o que buscavam.
Algo interessante, ou decepcionante, podia se perceber pelo conteúdo dos armários: com exceção da armadura de Erina, nenhum dos itens era de alta qualidade ou valor inestimável. Ao que tudo indicava, seus donos sacaram seus bens mais precioso.
Talvez essa fosse a explicação para a prefeitura andar tão movimentada naquele dia.
— Maldição! — bradou Nolan, chutando um monte de moedas que se espalharam pelo piso alagado. Seu rosto, antes pálido de esforço, agora se contorcia em fúria. — Lyner, sua desgraçada! Híbrida, meia mentirosa e meia vagabunda! Sempre esteve do lado de Ajax, do lado do metamorfo!
Kenshiro abriu a boca para protestar, um pensamento o golpeou antes: “E se... o metamorfo a interceptou?” Disse em voz alta.
O silêncio que se seguiu foi mais pesado que o estrondo da água. Todos compreenderam. Fazia sentido — e não havia como provar o contrário.
A desesperança caiu sobre o grupo como mais um peso.
Erina, porém, não se deu ao luxo da reflexão. Seu coração disparava em outro compasso. Gurok. Ele ainda estava sozinho. Cada segundo perdido era uma sentença.
— Sejam rápidos! — ordenou, a voz mais dura do que pretendia.
Os magos começaram a agir. Vaelis e Soren ergueram as mãos, conjurando esferas translúcidas que pulsaram antes de se estabilizar em pequenas bolhas de ar.
— Não podemos criar oxigênio do nada — explicou Soren, com firmeza. — Talvez apenas Kaji...
— Ele não aparece — reclamou Fox, batendo em sua lamparina. — Já tentei chamá-lo, usei as palavras de comando. Quando o alarme soa, todos os serviços são suspensos. E no estábulo, ele é apenas mais um animal. Dormindo.
— Mas ele é um Servo! — disse Xin, a frustração estampada no rosto.
— Mercadoria — respondeu Fox, frio. — E mercadorias seguem contratos.
Vaelis ergueu a voz para cortar o crescente desespero:
— As bolhas têm ar suficiente, mas precisam respirar devagar. Se uma estourar, teremos que revezar.
Todos assentiram.
Erina então ergueu os braços.
— Para trás. A pressão virá com violência.
Eles obedeceram, recuando até o fundo do cofre.
Ela relaxou os músculos por um instante e soltou a porta.
WHOOOOOOOSH!
A corrente a atingiu como uma parede sendo chocada contra ela. Seu corpo foi lançado contra as pedras, e a bolha ao redor de sua cabeça se rompeu de imediato.
Kenshiro avançou, pronto para dividir a sua, mas Erina ergueu a mão, recusando. Primeiro, precisava vestir sua armadura.
Debaixo d’água, cada gesto se tornava mais pesado. Seus olhos brilharam em verde-esmeralda, os cabelos enloireceram num clarão mágico. Utilizava sua magia curativa para auxiliá-la em sua locomoção e regeneração. O poder drenava suas forças, mas era o único caminho.
Quando finalmente sentiu o peso familiar da armadura se formar ao redor de seu corpo, fez um sinal rápido para os demais:
— Avancem.
(...)
Fora do cofre, após atravessarem o longo corredor inundado, o grupo deparou-se com um espetáculo desolador: todo o interior da prefeitura jazia submerso.
A água preenchia cada salão e corredor, transformando o edifício em um aquário colossal. Objetos de madeira, móveis despedaçados e papéis inchados boiavam, rodopiando sem rumo. Havia também fragmentos de vidro e metais retorcidos que vagavam traiçoeiros no espaço, pontiagudos como espinhos à espreita.
Tinham que tomar cuidado para que nenhum daqueles destroços atravessasse as frágeis bolhas de ar que os mantinham vivos. Cada deslocamento era lento e medido, como se estivessem flutuando em um sonho onde a gravidade perdera sentido.
Nolan, visivelmente impaciente, estava prestes a seguir direto para a saída. Seus olhos demonstravam mais preocupação consigo mesmo do que com os demais. Mas Erina não permitiu. Segurou-o pelo braço com firmeza, puxando-o de volta para junto do grupo. O gesto foi tão decidido que Nolan, apesar da contrariedade, não ousou resistir.
Até que resgatassem Gurok, ninguém iria embora.
O problema era que Erina e Kenshiro dividiam uma única bolha. Isso significava que alguém teria de sacrificar a sua para que o orc não se afogasse.
No armário do zelador, Gurok permanecia imóvel, os músculos tensos, lutando contra o desespero de seus próprios pulmões. A pele esverdeada já começava a adquirir um tom arroxeado, denunciando o limite da resistência. Cada segundo era uma tortura.
Sem hesitar, Takashi avançou até ele e entregou sua bolha, pressionando-a contra o rosto do orc.
— Ahhhh! — Gurok inspirou com voracidade, o peito arfando como um fole.
Mas a bolha reduziu-se pela metade, quase todo o ar sendo sugado de uma vez.
Takashi recuou, cerrando os dentes. Salvara a vida do companheiro, mas não conseguira impedir que a irritação lhe subisse ao peito. Era como se o gesto altruísta tivesse sido retribuído com brutalidade.
Enquanto avançavam em direção à saída, começou a se arrepender amargamente. O bafo quente e pesado de Gurok agora era o único ar que tinha para respirar. A cada inspiração, Takashi sentia o estômago se revolver.
(...)
Chegaram à porta principal, a barreira final entre eles e o exterior. Não era uma porta comum: a pressão da água a tornava praticamente intransponível para qualquer pessoa comum. Apenas Erina, reunindo toda a sua energia, conseguiu forçá-la a ceder. Nolan, por sua vez, poderia lançar um feitiço para neutralizar a pressão, mas o processo seria demorado, e o grupo não tinha tempo.
O esforço foi recompensado, e a pesada estrutura rangeu, abrindo-se lentamente. Contudo, ao contrário do esperado, a enxurrada não se escoou para fora. A água permanecia represada dentro da prefeitura, como se obedecesse a uma lei estranha. Logo perceberam: uma barreira mágica selava o edifício, aprisionando o dilúvio e impedindo que transbordasse.
Erina manteve a porta aberta com ambas as mãos, sustentando o peso invisível que ameaçava esmagá-la.
Nolan foi o primeiro a passar, sem pedir permissão ou sequer olhar para trás. Em seguida vieram Gurok e Takashi. Depois os demais atravessavam, um a um.
Kenshiro e Erina pretendiam sair juntos por último, mas Erina não resistiu.
Seu corpo, exausto pelo esforço e pela magia utilizada, cedeu de repente. Não era falta de ar — era o desgaste de quem havia dado mais do que tinha. Desmaiou nos braços da correnteza, mas a porta, por sorte, permaneceu aberta.
Kenshiro, desesperado, tentara mover sua esposa do lugar, entretanto a armadura pesada a impedia. Sem muitas escolhas, respirou todo o ar que restava em sua bolha para fazer seu maior esforço.
Seus olhos tornaram-se amarelos, ainda que por um instante, e com um forte empurrão, jogara-a para fora da prefeitura junto de si mesmo.
Restaram apenas Zhen e Xin.
Desde o retorno do mercado, poucas palavras haviam sido trocadas entre eles. Agora, naquele silêncio abafado pela água, a distância parecia ainda maior. O ambiente ao redor — espesso, de tonalidade turva e sombria — criava a ilusão de que estavam sozinhos em um mundo à parte. E sempre que o acaso os deixava a sós, sentimentos estranhos vinham à tona, misturando desconforto, curiosidade e uma inquietação difícil de definir.
Zhen estava prestes a cruzar a porta quando sentiu um leve toque em suas costas. Ao se virar, encontrou Xin, os olhos fixos nele com uma intensidade rara.
Ela moveu as mãos rapidamente, desculpando-se em Signês.
Zhen arqueou a sobrancelha, intrigado. Poupando ar, sinalizou de volta: por que isso agora?
Xin não soube se explicar. Limitou-se a afirmar que não estava suportando o peso de sua consciência ao tratá-lo de maneira tão rude e cruel; queria aproveitar aquela oportunidade para reconciliar-se.
Um sorriso escapou no rosto de Zhen, não de deboche, mas de rendição.
Já havia desistido de tentar decifrar a mente dela. Xin era como um enigma vivo: contraditória, teimosa, difícil, quase sempre irritada, mas de alguma forma carente e surpreendentemente amável.
Aceitá-la assim, em toda a sua confusão, parecia ser a única forma de estar perto dela.
Percebendo a doçura momentânea no olhar dela, decidiu arriscar. Levou a mão até o rosto dela, tocando-o com delicadeza. O calor do contato contrastou com o frio da água ao redor.
— Xin, eu... — começou, a voz abafada pela água.
Mas não teve tempo de concluir.
Puxou-a bruscamente para próximo de si, no entanto, Xin não sentiu encostar-se nele. Fora levada para o lado de fora da prefeitura.
BAAM!
A porta fechou-se com violência logo atrás dela.
— Xin?! — Kenshiro a encarou. Erina ainda estava desacordada no chão; exatamente como caíra, ficou. — O que aconteceu? E o Zhen?!
Xin, atordoada pela velocidade com que atravessara a barreira, demorou a recuperar os sentidos. Ao erguer os olhos, viu os companheiros formando um círculo em volta dela. Todos pareciam tensos, atentos a algo. Erina jazia ao seu lado, imóvel, e Kenshiro tentava, em vão, despertá-la. Mais adiante, Fox estava ocupado, murmurando palavras que Xin não conseguiu compreender de imediato.
Seu coração disparou.
“Onde está Zhen?”
O pânico tomou conta quando percebeu: ele não estava ali.
Virou-se rapidamente, a única coisa que encontrou foi a porta fechada, selando o abismo que os separava.
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