Volume 2 – Arco 9

Capítulo 90: Plano Calculado

Seguindo Nolan, o grupo foi guiado para as alas mais restritas da prefeitura, áreas onde somente funcionários de alta patente ou visitantes autorizados podiam circular. O ar ali já parecia diferente: rarefeito, pesado, impregnado de um silêncio quase sagrado, como se os corredores guardassem segredos demais para permitir conversas banais. 

O caminho os levou a um extenso corredor em descida, ladeado por paredes de pedra polida que refletiam a luz das lamparinas mágicas. A escadaria descia em linhas retas intermináveis, lembrando a todos a prisão de alto nível que haviam visto antes. Quanto mais avançavam, mais o ar se tornava frio, seco, como se o subterrâneo sugasse o calor humano. 

Como a prisão possuía um sistema de autodestruição, para evitar a fuga dos prisioneiros, soterrando-os, imaginaram que algo parecido deveria existir. 

— O que vai ser? — perguntou Kenshiro, sua voz carregada de ironia, não isenta de apreensão. — Vão demolir a prefeitura em cima da gente? 

— Não — respondeu Nolan, firme. Sua expressão não revelava nervosismo, apenas a impaciência de quem já havia repetido aquela explicação para si mesmo inúmeras vezes. — A quantidade de bens que perderíamos seria devastadora, não apenas para Cenara, talvez até para o próprio Império. 

Ele fez uma pausa curta, obrigando todos a manterem a atenção em cada palavra. 

— Por isso, o método que utilizamos aqui é diferente. Eliminamos os intrusos sem causar destruição significativa à estrutura. 

— E qual seria esse método? — perguntou Erina, séria. 

Nolan a olhou rapidamente antes de responder: 

— Não precisam se preocupar. Se houvesse qualquer chance dessa defesa ser usada contra nós, eu jamais teria autorizado este plano. 

Os olhares desconfiados do grupo se cruzaram. Alguns estavam prestes a insistir em mais explicações, mas Nolan se adiantou, encerrando a dúvida com frieza: 

— Porque ninguém sobreviveria. 

Aquelas palavras ecoaram pelo corredor estreito, sufocando todos em silêncio. 

No final do caminho, surgiu a porta do cofre. À primeira vista, parecia nada além de uma parede lisa, sem maçaneta, fenda ou qualquer sinal de abertura. Não havia dobradiças, nem mesmo marcas de encaixe — como se fosse apenas mais um pedaço da construção. 

Nolan, no entanto, aproximou-se dela com familiaridade. Estendeu a mão aberta diante da parede. Símbolos mágicos começaram a cintilar acima de sua pele, linhas douradas que se entrelaçavam como serpentes luminosas. Ao aproximar-se da superfície, as runas reagiram e, lentamente, uma grossa manivela emergiu da pedra, materializando-se como se sempre tivesse estado ali, oculta sob um véu de ilusão. 

— Apenas pessoas autorizadas podem abrir a entrada — explicou Nolan, girando levemente a manivela recém-surgida. — Foi mais eficiente do que chaves ou códigos, que sempre correm o risco de serem esquecidos ou roubados. 

Para os olhos comuns, aquilo ainda era apenas uma parede sólida. Mas para os autorizados, a entrada se revelava como uma verdade secreta. Um truque que unia praticidade e sofisticação mágica. 

A pedra se moveu com suavidade surpreendente, revelando uma sala ampla, iluminada por cristais suspensos no teto. O interior era organizado em fileiras de armários metálicos, cada um marcado por sequências de letras e números, como uma biblioteca de riquezas e segredos. 

O brilho frio dos metais e das runas gravadas nas portas refletia no rosto dos intrusos, criando a sensação de que estavam diante de algo muito maior do que simples cofres. Cada armário poderia conter desde barras de ouro e joias preciosas até armas arcanas ou artefatos capazes de alterar o rumo de guerras inteiras. 

Foi impossível não se lembrarem de Altunet. Kenshiro, Xin e Sebastian trocaram olhares: o cofre daquela cidade ainda era considerado o mais rico de todo o continente, mas Cenara não ficava muito atrás. A imponência da sala subterrânea, com suas centenas de compartimentos mágicos, era prova disso. 

— “A113” — murmurou Nolan, indo direto ao setor designado, como se já tivesse percorrido aquele caminho mil vezes em pensamento. 

Ele parou diante do armário e respirou fundo. 

— Agora vem a parte difícil. 

Fox estreitou os olhos.  

— Por quê? 

— Os cofres de Cenara só podem ser abertos pelo dono do armário. Nenhuma exceção. É essa segurança que atrai comerciantes e nobres estrangeiros para depositarem seus tesouros aqui. 

Ele girou o rosto, observando o grupo um a um antes de continuar: 

— Nem mesmo o Governador ou os responsáveis diretos pelo banco têm esse privilégio. O sistema exige descrições detalhadas dos itens guardados e testemunhas para validar o depósito. Assim, garantimos confiança absoluta. 

Nolan então pousou as mãos na superfície lisa do armário. 

— Este, no entanto, é diferente. O “A113” pertence a Ajax. E não há registros de testemunhas nem descrições de conteúdo. Isso é uma violação de protocolo... o que significa que o pergaminho deve estar aqui. 

Erina deu passo adiante. 

— Mas se o armário é de Ajax, como o metamorfo poderia ter acesso a ele? 

— O metamorfo não apenas copia uma pessoa. Ele se torna essa pessoa — explicou Nolan, sem desviar a atenção da fechadura. — Agora, silêncio. 

No instante em que tocou o metal, uma onda de energia percorreu o ar, como um sopro invisível que arrepiou a pele de todos. Instintivamente, os demais recuaram alguns passos. 

— O que ele está fazendo? — murmurou Kenshiro, em voz baixa, para Vaelis. 

A maga respondeu com paciência, como quem explicava a um aprendiz curioso: 

— Já viu uma chave, não? Os dentes precisam se encaixar perfeitamente na fechadura, caso contrário, não abrem. Aqui é o mesmo princípio. Nolan está tentando replicar a “chave” que só Ajax possui. 

— Mas há tantos armários... — murmurou Erina, franzindo o cenho. — Como ele consegue? 

— Ele estuda a fechadura com cuidado, tentando compreender o formato exato dos “dentes” dessa chave mágica. É um trabalho delicado, complexo. Cada armário é único, a chave é criada no momento em que o compartimento é designado ao dono, e vinculada diretamente a ele. 

Soren, que até então se mantinha em silêncio, não conteve a admiração: 

— O professor Nolan é extraordinário. Não existe outro que pudesse fazer isso. 

— Concordo — disse Vaelis, com firmeza. — Se há alguém capaz de abrir este cofre, sem ser o próprio Ajax, ou o metamorfo, é ele. 

As palavras da dupla de magos, tão confiantes, trouxeram certo alívio ao grupo. Kenshiro e Erina se entreolharam em silêncio, permitindo-se acreditar — ao menos por agora — que o impossível estava, de fato, nas mãos de Nolan. 

E assim permaneceram, imóveis, observando o governador lutar contra a fechadura mágica. 

(...) 

As roupas de Nolan já estavam encharcadas de suor, coladas à pele como se tivesse acabado de sair de um banho frio. Seu rosto estava pálido, os lábios secos, e os olhos semicerrados denunciavam o peso de sua concentração. Cada respiração vinha arfada, quase um soluço. A energia que gastava para analisar a fechadura e moldar uma chave semelhante podia ser comparada ao levantamento de peso — mas um peso que nunca parava de aumentar. 

Cada vez que acertava “um dente” e avançava para o próximo, a carga ficava mais sufocante, esmagando sua mente e o corpo. 

O grupo observava em silêncio absoluto, apenas o som das respirações contidas ecoava pelo cofre. Ninguém sabia em que estágio Nolan estava — se próximo do fim, na metade ou apenas no início daquela tarefa impossível. Apenas viam que ele estava chegando ao limite, e que sua vasta reserva mágica estava se esvaindo como água por entre os dedos. 

Vaelis e Soren trocaram um olhar. Estavam prontos para compartilhar sua própria energia mágica com o mestre, se fosse preciso. 

Erina também desejava ajudar, mas não dominava as técnicas para transferir Mana. Tudo o que podia fazer era observar, impotente. 

Então, um som seco. 

Klik! 

— Eu consegui... — murmurou Nolan, quase não acreditando. 

A alegria que brilhou em seus olhos durou apenas um instante. 

Ao abrir o armário, sua expressão mudou para puro desespero. Não havia pergaminho algum. Apenas um brilho multicolorido, cintilando como vidro partido sob o sol. Eram armadilhas — dezenas — todas prontas para serem liberadas. E Nolan estava perto demais. 

BOO-BAA-CLAK-BOOOM! 

O ar explodiu em calor e estrondos. Nolan mal teve tempo de recuar, mas Vaelis e Soren ergueram as mãos juntos, contendo a fúria dentro do próprio armário. O impacto reverberou pelas paredes, fazendo o chão estremecer sob os pés de todos. 

Nolan caiu de joelhos, tremendo.  

— Isso é ruim... isso é ruim... isso é ruim... — Repetia, sem perceber que acabara de ser salvo. 

— O que foi? — perguntou Fox, a voz tensa. 

— As armadilhas... estavam todas lá dentro. E se eu não fui enviado a uma cela... isso só pode significar que o alarme soou! 

O sangue gelou no rosto de Erina. 

— Então temos que sair daqui o quanto antes! — disse ela, correndo em direção à saída. 

 — Vocês não entendem! A armadilha... ela foi acionada! 

SHHHHHHHRRAAAAAWWWWSSHHHHHH!!! 

O som foi ensurdecedor, como um oceano colapsando sobre eles. Erina olhou para fora e sentiu o pavor lhe percorrer até a raiz dos cabelos. Água. Muita água. Um dilúvio surgia, pronto para engolir tudo. 

Num reflexo instintivo, ela fez o único movimento possível: 

BRAAAMMM!!! 

Fechou a porta do cofre com força e se posicionou contra ela, sustentando-a como se tentasse conter uma muralha com as próprias costas. 

Poucos segundos depois, um impacto brutal retumbou no metal. 

BAAAAAAM!!! 

Erina cambaleou, mas manteve a posição. Água começou a jorrar pelas frestas, cortando o ar em filetes frios que respingavam nos rostos dos demais. O som de correnteza preenchia o ambiente, sufocante. 

— O que foi isso? — perguntou Xin, a voz tensa. 

A resposta veio de Nolan, arrasado: 

 — Acabou... Todos nós morreremos afogados... 

Erina não desgrudava da porta. Sabia que se recuasse, todos seriam engolidos em segundos. Mas, se pudesse, estaria agora sobre Nolan, obrigando-o a agir. 

Fox percebeu essa mensagem sem palavras. 

Ele se aproximou de Nolan, agarrou-lhe pela gola e o ergueu do chão com violência. Seus olhos queimavam de fúria. 

— Escute bem! Foi você quem nos trouxe até aqui por causa desse maldito pergaminho! Então vai encontrá-lo, ou eu juro que mato você antes que a água o faça! 

Nolan sentiu o frio da katana roçar-lhe o pescoço. A lâmina refletia o brilho fraco da luz mágica, como um aviso inevitável. 

Por mais certo que fosse o destino da morte, um instinto primal de sobrevivência gritou dentro dele. 

— T-tá... eu... eu vou tentar! 

Fox o largou no chão.  

— Vocês dois! — disse, apontando para Vaelis e Soren. — Abram os outros armários! O alarme já foi disparado, não há mais razões para tentarem! 

Sem protestar, os dois magos se lançaram à tarefa, abrindo cofres às pressas, arriscando-se a novas armadilhas. Nolan se juntou a eles, desesperado. 

Enquanto isso, os demais se esforçavam em manter a porta fechada ao lado de Erina. 

Ela lançou um olhar rápido a Fox, e um sorriso cansado surgiu em seus lábios. Orgulho. Ele estava agindo exatamente como ela teria feito. 

Sebastian também cruzou o olhar com o Herói do Povo e assentiu, silencioso. 

Fox, embora aliviado, não se permitiu descansar. Sem hesitar, posicionou-se ao lado da cavaleira para ajudar a conter a inundação. 

***

Gurok ainda estava no armário do zelador. 

O som do alarme ecoava pelos corredores, grave e lancinante, como o bramido de uma fera invisível convocando todos às armas. O chão vibrava levemente com cada reverberação, como se a cidade inteira fosse uma fortaleza prestes a se mover. 

Ele não sabia os detalhes do que havia acontecido — apenas duas opções se apresentavam: sair e se reagrupar ou permanecer escondido. 

Mas a decisão lhe foi arrancada quando um arrepio gelado subiu por suas pernas. A água tocava seus pés. 

Num instante, compreendeu: a prefeitura estava sendo inundada. 

O brilho mágico de sua armadura se apagou, indicando que as defesas mágicas haviam cedido diante do dilúvio. Aquilo só confirmava o pior — a água era comum. Nenhum encantamento a deteria. Nenhum escudo o salvaria de morrer como um homem qualquer: afogado, sem ar nos pulmões. 

Ele avaliou a velocidade com que o nível subia. Não havia como alcançar a saída a tempo. O armário estreito se tornaria sua tumba de madeira e ferro, a não ser que seus companheiros viessem resgatá-lo antes que o líquido lhe cobrisse a boca e os olhos. 

Respirou fundo e se recostou contra a parede. Se fosse morrer ali, morreria de pé. 

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