Volume 2 – Arco 9

Capítulo 89: Burocracia Tediosa

Alguns dias se arrastaram desde a partida de Lyner, e cada hora parecia pesar mais do que a anterior. O grupo vivia em um estado de tensão constante, como se todos estivessem presos em uma corda esticada prestes a se romper. 

Havia motivos de sobra para isso. 

Os irmãos gêmeos — generais dos Remanescentes e ainda prisioneiros — permaneciam como uma ameaça latente. Bastaria um instante de descuido, uma fagulha de provocação, e eles poderiam libertar-se das correntes, espalhando caos e colocando todos em risco. Ninguém sabia se teriam força suficiente para contê-los, ou sequer se seria possível fazê-lo sem pagar um preço alto. A simples presença deles era como carregar fogo vivo dentro de um odre de óleo. 

O cenário político não era menos sombrio. O destacamento imperial se aproximava a cada dia de Cenara. E, como nada fora feito para expor ou neutralizar o metamorfo, Kenshiro ainda podia ser visto como um traidor do Império. Isso significava que, a qualquer momento, poderiam bater à porta não para oferecer auxílio, mas para prendê-lo — ou pior. 

Havia ainda a sombra crescente do próprio inimigo. Quanto mais tempo se passava sem agir, mais chances o metamorfo teria de fortalecer-se, expandir sua influência ou até concretizar a ameaça de criar o pergaminho que buscavam. A inércia era um veneno: cada dia parado na cidade representava um passo atrás em sua jornada. 

Ansiedade, medo, desconfiança, agonia, estresse. Uma mescla corrosiva de sentimentos se acumulava, e cada membro do grupo reagia à sua maneira. 

Takashi, inquieto como sempre, encontrou consolo em disciplina. Criou um mapa mental da cidade, memorizando cada rua, cada viela e cada telhado. Para testar-se, vendou os olhos e passou a atravessar os telhados de Cenara, movendo-se como uma sombra guiada apenas pela lembrança dos caminhos. Sua precisão quase parecia arrogância, mas na verdade era necessidade: precisava provar a si mesmo que ainda tinha controle em meio ao caos. 

Xin se aproximara de Zhen em silêncio. Seus gestos, porém, não buscavam conforto ou proximidade; estavam carregados de uma intenção simples e precisa: afastar Anastasia dele. A jovem, talvez percebendo o movimento ou apenas seguindo seu instinto, recuou alguns passos e acabou ficando perto de Sebastian. 

Contudo, a aproximação não significou reaproximação.  Xin voltara a tratá-lo com a mesma frieza de antes, mantendo a distância como se um muro invisível tivesse se erguido entre os dois. O olhar que lançava a Sebastian não carregava mais a gratidão ou o afeto do passado, apenas indiferença. 

Gurok tentava ocupar suas mãos para não enlouquecer. Recolhia materiais, afiava lâminas, reforçava armaduras, revisava os equipamentos do grupo com paciência de ferreiro. Mas nenhum adversário, nenhum artesão local, havia se mostrado à altura de desafiá-lo. O gigante permanecia em frustração silenciosa: um guerreiro sem inimigos, um mestre sem rivais. 

Os magos, ao contrário, encontraram algum alívio. Em suas andanças, descobriram artefatos capazes de ampliar seus vínculos com a Mana. Como gesto de cuidado — e talvez como um raro sinal de afeto — presentearam cada companheiro com uma aliança e um pingente encantados. Pequenos objetos, mas carregados de poder e simbolismo: uma forma de dizer que, mesmo em meio à incerteza, estavam juntos. 

Fox e Nolan, entretanto, mantinham o silêncio. O que haviam feito em sua ausência, não compartilharam. Suas expressões, contudo, denunciavam segredos pesados. 

Já Anastasia, desde a revelação que tivera com Sebastian, passara a agir de outra forma. Não era mais apenas a jovem funcionária de uma hospedaria, mas alguém que decidira se tornar parte do grupo, ainda que à margem. Ajudava em tudo o que podia: distribuía água, anotava pedidos, guardava segredos. Sabia que jamais poderia acompanhá-los — era fraca demais para os padrões deles —, tentava aproveitar cada instante. Era uma presença discreta, porém constante, e muitos começavam a vê-la com novos olhos. 

E então, quando até Kenshiro e Erina já se encontravam cansados de esperar, um movimento súbito trouxe vida ao quarto silencioso. 

Pela janela aberta, um pequeno gato escuro saltou para dentro, com os olhos brilhando de uma inteligência nada natural. Sua voz soou quase zombeteira: 

— Esperaram muito? 

A transformação foi imediata: o corpo felino alongou-se, moldou-se, e em instantes diante deles estava novamente a figura feminina de Lyner, tão enigmática quanto da última vez. 

Ela sorriu, mantendo o mesmo tom despreocupado, como se não tivesse consciência da tensão que deixara para trás: 

— Espero que tenham aproveitado a cidade durante a minha ausência. 

Nolan deu um passo à frente, direto, sem paciência para enigmas. 

— Onde está? 

Lyner ergueu os olhos, o sorriso se estreitando numa linha quase séria. 

— “A113.” 

***

Já haviam dado início ao plano. 

Durante os dias de espera, haviam discutido, revisado e recapitulado cada detalhe inúmeras vezes. Não era um esquema mirabolante, tampouco impossível de executar. Não havia espaço para perfeccionismos: bastaria o cuidado mínimo, e as chances de sucesso já seriam razoáveis. 

Erina insistira em levar apenas os essenciais para dentro da prefeitura — infiltrar muita gente seria um risco desnecessário. Fox, porém, não suportava a ideia de deixar parte do grupo de fora. Sua convicção era clara: dividir-se significava fraqueza. Por isso, insistiu que todos, sem exceção, participassem. 

Assim, durante o dia, cada um entraria no prédio como se fosse apenas mais um cidadão comum, cada qual com um motivo diferente e razoável. 

Erina, por exemplo, aproveitou para guardar sua armadura no cofre da prefeitura. Bastou preencher alguns formulários, assinar uma papelada sem fim e fornecer um nome falso com dados igualmente inventados. Talvez em alguns dias alguém descobrisse as irregularidades, mas até lá ela já estaria longe. 

Depois, bastou seguir o mesmo rumo que Kenshiro, Fox, Xin, Zhen, Sebastian e Takashi: todos de porte esguio, discretos o suficiente para se misturar à multidão. Procuraram um ponto afastado, um corredor escuro ou uma sala desocupada, qualquer lugar que os afastasse dos olhares curiosos. 

Os magos tiveram ainda menos dificuldades. Bastou manterem-se juntos, murmurar algumas palavras em uníssono e, sob o véu de uma ilusão compartilhada, desapareceram da percepção dos demais. Não havia truque mais eficaz do que simplesmente não ser visto. 

O problema, como de costume, foi Gurok. 

Um orc de sua estatura não passava despercebido nem que se cobrisse com dez mantos. Guardar sua armadura? Esqueçam. O processo exigiria pilhas de documentos e entrevistas intermináveis, e já na primeira sessão ele perdera a paciência. Desistira de qualquer burocracia e mantivera a armadura colada ao corpo. 

Mas o pior não era isso: não havia lugar em toda a prefeitura capaz de esconder alguém como ele. Mesmo atrás de uma parede, sua silhueta denunciava sua presença. E a respiração, profunda e ruidosa, mais lembrava o soar de uma trombeta de guerra do que um simples fôlego. 

No fim, a única opção fora encolher-se no armário do zelador. Ali, apertado entre vassouras empoeiradas, baldes amassados e frascos de produtos de limpeza com cheiro forte, o orc aguardava. A cada movimento seu, os cabides rangiam e as prateleiras tremiam. 

Kaji, por sua vez, descansava na lamparina que Fox carregava consigo. O elemental precisou apagar sua chama, deixando a estrutura de vidro fria e apagada para não chamar atenção. Voltaria à vida apenas quando fosse convocado. 

(...) 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

O tempo corria devagar demais. 

A burocracia da prefeitura tinha algo de torturante. Cada carimbo batido, cada assinatura arrastada, cada formulário revisado parecia prolongar as horas ao infinito. Não era apenas tedioso: era como se o tempo se invertesse, como se regredisse e zombasse deles. Estavam presos na engrenagem de uma máquina enferrujada que só produzia lentidão. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

Chegava a um ponto em que até mesmo os atrasos alheios se tornavam motivo de comemoração. Quando um cliente esquecia um documento e precisava recomeçar o processo, o grupo quase vibrava em silêncio, como se tivesse vencido uma batalha. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

O silêncio absoluto tornava a espera ainda mais sufocante. Nem mesmo podiam recorrer ao Signês — o menor gesto, o menor movimento, poderia atrair olhos indesejados. A imobilidade era sua camuflagem. Ali, descobriam o mais cruel teste de resistência: não contra monstros ou espadas, mas contra o próprio tédio e o risco de enlouquecer. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

Nhéééé... 

A maçaneta girou com um rangido lento, e a porta do armário se abriu. 

Gurok, tão mergulhado em seus próprios pensamentos, não notara o perigo. Do outro lado, surgiu o zelador. Um senhor idoso, de visão fraca, mas não cega. 

E, ao se deparar com um orc em armadura completa espremido entre vassouras, o homem arregalou os olhos como se houvesse visto um espectro. Sua boca se abriu em choque, mas nenhum som saiu. 

O olhar do velho percorreu cada detalhe: os ombros largos, o brilho metálico da armadura platinada, os músculos tensos, e finalmente o rosto de Gurok, onde os caninos se projetavam ameaçadores. 

O zelador sabia muito bem qual era seu dever. Como agente público, deveria relatar imediatamente aquela anomalia a seus superiores. Porém, o medo o imobilizou. Cada batida de seu coração parecia um tambor ecoando em seus ouvidos. 

Do outro lado, Gurok também não sabia como reagir. Poderia calar o homem ali mesmo, mas matar um inocente não era algo que desejasse carregar. Incapacitá-lo? Com sua força, não havia garantias de que não acabaria esmagando o pobre velho. 

Por um instante, ambos permaneceram imóveis, como se o tempo tivesse congelado dentro daquele armário. 

Então, com a voz trêmula, o zelador murmurou: 

— A-acho... acho que vou tirar uma folga hoje... 

Nhéééé... 

E, como se estivesse em transe, virou-se e foi embora. Não falou com ninguém, não tocou em nada, não olhou para trás. 

Deixou Gurok novamente sozinho, cercado por vassouras e odores fortes de sabão. 

Tik-tak. 

Tik-tak. 

(...) 

Tik-tak 

Tik-tak 

DÓÓNG! 

DÓÓNG! 

DÓÓNG! 

Finalmente. 

O som grave do sino ecoou pelas paredes de pedra, atravessando corredores, salas e janelas como um anúncio solene: a noite havia caído sobre Cenara. A última batida parecia vibrar no ar, e com ela, o prédio mergulhou em um silêncio profundo. Um a um, os últimos funcionários da prefeitura recolheram seus pertences, apagaram lamparinas e partiram. Quando o ranger da última porta se fechou, outra vida despertou ali dentro. 

As armadilhas mágicas espalhadas pelo chão ganharam vida, acendendo-se em runas incandescentes que serpentearam pelos corredores. Cada cor pulsava como um coração maligno: 

Azul, o frio absoluto do gelo. 

Vermelho, o calor sufocante do fogo e da pólvora. 

Amarelo, a rigidez elétrica da paralisia. 

Verde, o abraço venenoso das raízes e toxinas. 

Roxo, portais traiçoeiros que levavam à prisão — ou alarmes que clamariam pelo despertar da guarda. 

Ilusões desfeitas, silhuetas emergindo das sombras, figuras escorrendo dos tetos: todos estavam ali, exceto Gurok. 

— Vamos acabar logo com isso — disse Nolan, sua voz firme, impaciente. — Direto para o cofre. 

Para cada cor, uma técnica diferente precisa ser utilizada para desarmá-la. Nolan era um especialista, conseguia desativar todas sem qualquer dificuldade ou demora.  Soren e Vaelis, por outro lado, tinham problemas para remover aquelas que não eram seus respectivos elementos. 

Enquanto todos seguiam Nolan, Erina não se moveu. O brilho roxo de uma das runas refletia em seu rosto como uma chama inquieta. 

— Ainda falta Gurok — retrucou, firme. — Precisamos encontrá-lo. 

— O orc? — Nolan arqueou a sobrancelha, descrente. — Provavelmente foi levado por um portal. Ele sabe se cuidar. O tempo é precioso. 

A mente de Erina latejava. As imagens possíveis do paladino perdido, ou pior, caído em alguma armadilha, eram insuportáveis. Mais que um companheiro, Gurok era uma vida sob sua responsabilidade. E o simples pensamento de abandoná-lo queimava como ferro em brasa contra sua pele. 

Sem mais delongas, deu um passo decidido na direção oposta à de Nolan, seu pé pairando sobre uma das runas roxas. 

— O que pensa que está fazendo?! — Nolan virou-se de súbito, a incredulidade e a raiva misturadas em sua voz. 

— Vamos procurá-lo. 

— Você enlouqueceu? Nem mesmo eu sei se essa runa é um portal ou um alarme! Está disposta a arruinar o plano inteiro por causa de um orc?! 

Os olhos de Erina faiscaram, tão duros quanto o aço de uma espada. 

— Se for um alarme, no pior dos casos, apenas teremos barulho. Já suportamos coisa pior. Mas se for um portal, e Gurok estiver preso do outro lado, não o deixarei para trás. 

— E a cidade? — Nolan gritou, tentando encontrar um argumento que a detivesse. 

— A cidade não é minha responsabilidade! — retrucou ela, a voz quebrando o silêncio pesado do corredor. — Diferente das minhas crianças. 

Seu pé desceu lentamente, roçando o brilho roxo da runa. Todos prenderam a respiração. Ninguém ousou intervir. Erina já não era a líder do grupo, mas sua presença ainda impunha autoridade. Nenhum deles, nem mesmo Kenshiro, teria coragem de contradizê-la. Fox permaneceu calado, observando como se estivesse testando não apenas a decisão dela, mas o rumo que o grupo tomaria a partir dali. 

Nolan cerrou os punhos, cedeu. 

— Está bem! — cuspiu, irritado. — Mas vocês — apontou para Soren e Vaelis —, espero que comecem a desarmar essas armadilhas com mais velocidade! 

O pé de Erina recuou, e o grupo seguiu Nolan pelos corredores, até onde acreditavam que o orc pudesse estar. 

(...) 

Não demorou muito até o encontrarem. 

O armário do zelador parecia pequeno demais para a presença de Gurok, mas lá estava ele, espremido entre vassouras, baldes e frascos de óleo. O mais estranho, porém, não era a cena ridícula de um orc gigante tentando se esconder em um cubículo — e sim a armadura. A couraça platinada brilhava como se tivesse luz própria, irradiando uma aura arcana que quase pulsava no ar. 

Nolan ficou pálido. 

— Mas que droga! — A raiva em sua voz era tão aparenta quanto a mudança de seu rosto. — Por que ninguém me contou que essa armadura era Arcana?! 

— Precisava? — retrucou Fox, calmo, quase debochado. 

— “Precisava”?! — Nolan perdeu a paciência. — Estamos invadindo uma prefeitura abarrotada de armadilhas mágicas, onde o cofre guarda talvez armas capazes de devastar cidades inteiras, e você me pergunta se precisava? 

Erina cruzou os braços, encarando-o sem demonstrar o menor abalo. 

— E qual é o problema? 

— O problema — Nolan gesticulava nervosamente —, é que a presença dele é um imã para as armadilhas. Sua armadura pode protegê-lo, mas cada passo que der será como acender uma tocha em meio a um barril de pólvora! 

Kenshiro coçou a testa. 

— Não podemos simplesmente desativar as armadilhas? 

Nolan deu uma risada curta, sem humor. 

— Vocês têm ideia da quantidade de runas escondidas neste lugar? É um milagre nenhuma ter disparado até agora só com ele parado aqui! Aposto que nem consideraram necessário proteger a despensa do zelador... 

— Então vamos deixá-lo? — Erina avançou um passo, indignada. 

— O que você sugere? — Nolan rebateu, pronto para explodir. 

Antes que a discussão escalasse, Gurok levantou a voz, calma, firme: 

— Eu posso esperar. 

Todos se voltaram para ele, surpresos. 

— Não foi tão ruim ficar aqui. Na verdade... até tirei um cochilo. — O orc sorriu, abrindo as presas em um gesto quase inocente. — Orcs dormem em qualquer lugar. Este armário é tão bom quanto qualquer cama. Ha! Ha! Ha! 

— Tem certeza? — perguntou Erina, ainda relutante. 

— Tenho. Vocês precisam seguir em frente. Eu vou ficar bem. 

Ela reconheceu a mentira nos olhos dele. Sabia que a espera seria um tormento, que o silêncio devoraria cada minuto como se fosse uma eternidade. Mas também sabia que não havia outro caminho. O altruísmo de Gurok era uma chama pura, dessas que raramente existiam fora das lendas. Uma chama que ninguém jamais elogiaria pelo simples fato de que nascia em um corpo de orc. 

Com o coração pesado, ela assentiu. 

O grupo partiu. E Gurok ficou para trás, condenado a enfrentar sozinho a longa monotonia da escuridão, apenas o som de sua respiração preenchendo o espaço sufocante do armário. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora