Volume 2 – Arco 9

Capítulo 87: Conspirações II

A prisão estava mergulhada em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo som distante da água pingando das pedras frias. O ar era úmido, carregado do cheiro de ferrugem e mofo.  

Todos olhavam fixamente para Nolan, que permanecia imóvel, com uma expressão neutra que mais confundia do que tranquilizava. A expectativa de explicações pairava no ar, ele seguia calado, como se pesasse cada palavra antes de pronunciá-la. 

— O que você está dizendo? — exigiu Fox, a voz firme, marcada pela irritação. — Não foi isso o que combinamos. 

O governador ergueu os olhos lentamente e os cravou nos de Fox. O olhar profundo e calculista fez o Herói estremecer, mesmo que por um breve instante. 

Ah, sim — disse por fim, com uma calma quase provocadora. — Acontece que relatei toda a situação ao Império. Sobre Ajax... e, principalmente, sobre o metamorfo. A Inteligência imperial chegou à conclusão de que, devido aos acontecimentos recentes e à mudança repentina de comportamento do herói imperial, o metamorfo e Ajax são, na verdade, a mesma pessoa. 

Um murmúrio de inquietação percorreu o grupo. Preocupação, medo e incredulidade se refletiram em seus rostos. 

— Que se dane isso! — rosnou Surtr, o jovem general remanescente, cerrando os punhos. — E quanto ao nosso acordo, governador? 

— Cuidado com a língua! — repreendeu Skadi, lançando lhe um olhar severo. Mas sua expressão também endureceu ao encarar Nolan. — Ainda assim... é verdade. Já se passaram três dias, e estamos ficando impacientes. 

Nolan suspirou, cruzando as mãos atrás das costas. 

— Eu sei. Não precisam se preocupar. O destacamento já está a caminho. 

— Destacamento? — Fox estreitou os olhos. — O que está acontecendo aqui? 

Surtr e Skadi trocaram olhares breves com Nolan, como se discutissem em silêncio quem revelaria a verdade. O governador foi o primeiro a ceder. 

— Esses dois me procuraram no dia em que estava partindo da cidade em busca de ajuda. Vieram em uma missão de resgate... atrás de outro general. Como as informações sobre os Remanescentes ainda são escassas, consegui ocultar suas identidades. Aos olhos do Império, são apenas criminosos perigosos. Se soubessem que são generais, já estariam mortos. 

— E por que, então, ajudá-los? — perguntou Erina, a desconfiança evidente em sua voz. — Não são inimigos? 

— Esse general... — Nolan hesitou por um instante, como se escolhesse as palavras. — Digamos que é um amigo em comum. 

— Simples assim? — Fox o encarou com frieza. 

— Simples assim. 

Um silêncio tenso se instalou entre herói e governador. Seus olhares travaram como lâminas, e o ar da prisão pareceu ainda mais denso. 

— E quanto ao destacamento? — insistiu Fox. 

— É uma força especial do Império — respondeu Skadi, sua voz carregada de desprezo. — A mesma que raptou nosso companheiro. 

— É difícil acreditar que ele ainda esteja vivo — murmurou Surtr, o olhar duro. — Mas talvez, com a devida... persuasão... eles nos digam onde ele está. 

— O Império os enviou como medida de segurança — completou Nolan. — Caso falhássemos em lidar com o metamorfo. O que precisamos agora é... 

THUDD–SHHHK! 

O som metálico cortou o ar como um trovão. Num piscar de olhos, Kenshiro havia sacado sua espada, prendendo Nolan contra a parede com a lâmina rente ao seu pescoço. O brilho frio do aço refletiu na pele suada do governador. 

— Maldito! — rugiu o espadachim, os olhos inflamados de fúria. — Você planejou isso desde o início, não é?! 

— Kenshiro, controle-se! — Fox ergueu a voz, tentando impor autoridade. 

Mas Kenshiro não lhe deu ouvidos. Seu corpo tremia de raiva, e a espada pressionava cada vez mais contra a pele de Nolan, arrancando-lhe um filete de sangue. 

— O que mais esconde de nós? — cuspiu ele. — O que acontecerá conosco depois que recuperarmos sua cidade? 

— Espere! — implorou Nolan, a respiração entrecortada. — Acalme-se, por favor! 

— Nada de truques! — Kenshiro avançou um pouco mais, a lâmina firme. — Convença-me a arriscar a minha vida, a vida da minha esposa e de todos os meus homens por causa do Império. Eu exijo. Convença-me! 

Seus olhos ardiam como os de um predador prestes a matar. A atmosfera no cárcere tornou-se sufocante. Ninguém ousava mover um músculo. 

— Eles vão retirar você da lista de procurados! — disparou Nolan, quase sem ar. 

Kenshiro o soltou de súbito. Nolan deslizou pela parede, tossindo e levando a mão ao pescoço ensanguentado. O alívio durou apenas um instante. 

A lâmina voltou a erguer-se diante de seu rosto. 

— Acha mesmo que só isso compensa o risco? — Kenshiro cuspiu as palavras, com um sorriso de desdém. — Acha que sou tão ingênuo a ponto de acreditar nas mentiras deles? Me diga... me diga agora! 

— Kenshiro... 

A voz de Erina soou baixa, carregada de ternura e firmeza. Bastou para alcançar a mente em chamas do espadachim. Sua respiração ofegante desacelerou. Com relutância, ele recuou a lâmina e deu um passo atrás, afastando-se de Nolan. 

— Ainda que seja apenas uma possibilidade — continuou Erina, a voz firme, suavizada pela esperança —, se você deixar de ser um homem procurado, poderíamos atravessar as cidades imperiais sem chamar atenção. Isso nos pouparia tempo... e riscos desnecessários. 

Kenshiro a fitou, como quem luta entre a lógica e a desconfiança. 

— E você acha que damos conta? — Sua voz grave carregava a dúvida de um soldado acostumado a encarar o impossível. — Contra um herói imperial? 

Erina não respondeu de imediato.  

O silêncio dela se estendeu por alguns segundos, forçando Kenshiro a virar-se por completo e encará-la nos olhos. Naquela troca de olhares, não havia espaço para máscaras. Ele aguardava, ansioso, como se a resposta dela fosse um peso a mais ou a menos em sua consciência. 

Ela inspirou fundo, e então respondeu com simplicidade, mas com toda a sinceridade que carregava: 

— Sim. 

Foi o bastante.  

Kenshiro desviou o olhar, recuou um passo e, enfim, guardou sua espada de volta à bainha. 

Com o espadachim mais calmo, a tensão que envenenava o ar começou a se dissolver, dando espaço a novas palavras. 

— Nolan — disse Fox, retomando o controle da situação. — Aqui não é o lugar para discutirmos. Precisamos voltar à hospedaria. 

— E a gente?! — interrompeu Surtr, com impaciência evidente. 

Nolan suspirou, o olhar pesado, como se carregasse um fardo que não poderia dividir. 

— Minha família foi mantida aqui em segredo, todos os guardas da cidade sabem quem vocês são “criminosos especiais”. Se eu os libertar agora, a cidade será posta em quarentena. Eles irão de porta em porta, e não sobrará esconderijo para ninguém. 

Surtr virou o rosto, irritado, incapaz de rebater. A mandíbula cerrada denunciava sua frustração. 

Skadi, mais contida, apenas respirou fundo antes de falar, com ironia amarga na voz: 

— Tudo bem. Mas assim que derrotarem o metamorfo, espero que nos liberte. Invente a desculpa que quiser: que somos novos heróis imperiais, aventureiros... ou até palhaços de circo. Não me importa. Já estamos cansados de apodrecer aqui. 

— E não é como se estivéssemos realmente presos... — completou Surtr, com um sorriso torto. 

As algemas anti-magia em seus pulsos começaram a reagir. O metal roxo ganhou tons alaranjados, irradiando calor, até liberar pequenas serpentes de fumaça. A pele dele parecia não sentir incômodo algum, como se o fogo fosse parte de si. 

Do outro lado, as algemas de Skadi tomaram a direção oposta: o roxo se cristalizou em azul gélido, estalando como vidro à beira da quebra. O metal grosso e rígido se tornava cada vez mais frágil, como se fosse pó prestes a se desfazer. 

— Está bem, está bem! — exclamou Nolan, erguendo as mãos em um gesto apaziguador, o suor começando a escorrer de sua testa. — Prometo que não ficarão aqui mais do que o necessário. 

— Diga uma data — A voz de Skadi soou como uma lâmina fria. 

Nolan hesitou. Virou-se para Lyner, buscando nele uma resposta, como quem pede socorro. 

— T-três dias... — arriscou Lyner, a voz trêmula, quase ingênua. — É o tempo que preciso para encontrar o pergaminho. Com ele em mãos, poderemos enfrentar Ajax sem problemas. 

As palavras pairaram no ar, pesadas, ao menos concretas. 

Surtr e Skadi se entreolharam e, lentamente, as algemas começaram a perder o brilho. O calor e o frio se dissiparam, devolvendo o ambiente ao equilíbrio. 

— Oito dias — corrigiu Skadi, a expressão dura. — É o máximo que iremos suportar aqui. Depois disso, não importa quem esteja no caminho. — Recostou na parede da cela, exausta. — Agora vão. Está quase na hora da nossa ração, e não quero gastar mais palavras. 

O silêncio voltou a dominar o cárcere. Não haveria mais conversa: fosse pelo tempo apertado, fosse pela falta de disposição dos dois generais. Ainda assim, a maioria desejava respostas — sobre os Remanescentes, sobre os segredos que ainda pairavam como sombras. 

Essas respostas, acreditavam, viriam apenas após derrotar o metamorfo. E, por ora, esse já era motivo suficiente para permanecerem em Cenara. 

(...) 

Voltaram para a hospedaria em completo silêncio. 

Ninguém ousou pronunciar uma palavra no caminho; todos tinham a sensação de que até mesmo uma frase mal colocada poderia acender discussões que ninguém desejava travar naquele momento. 

Ao fecharem a porta do quarto, cercados pelas quatro paredes e pelo abafamento mágico erguido por Kaji, a tensão encontrou algum alívio. Ainda assim, o ar continuava pesado. Foi apenas então que Sebastian tomou a palavra, relatando em detalhes tudo o que acontecera dentro da prisão. 

Cada revelação parecia abrir mais lacunas do que preenchê-las. Dúvidas e perguntas surgiam, todas sem resposta. Os subordinados, reunidos em silêncio, limitavam-se a observar os rostos daqueles que assumiam, naturalmente, a posição de decisão. 

Fox, Nolan, Lyner, Kenshiro e Erina. 

Mesmo sem serem mais reconhecidos como líderes oficiais, ninguém ousou questionar o direito do casal de participar daquela conversa. O peso de suas presenças falava por si só. 

— Onde estaria esse pergaminho? — perguntou Fox, rompendo o silêncio com firmeza. 

— Só existe um lugar possível — respondeu Nolan. — O cofre da cidade. 

— Então já podemos começar? — perguntou Erina, a ansiedade evidente em sua voz. 

— Não! — Nolan foi rápido em responder, erguendo a mão como quem corta a proposta no ar. — Além de a prefeitura estar protegida por armadilhas mágicas de alto nível, cada armário do cofre é encantado individualmente para que apenas alguém com autorização possa abri-lo. 

Erina cruzou os braços, permaneceu em silêncio. 

— Então qual é o plano? — perguntou Fox, direto. 

Lyner se adiantou, olhando para as próprias mãos com um sorriso de quem parecia até se divertir com a situação. 

— Não se preocupem. Não seria a primeira vez que eu invado os cofres da cidade... Entretanto, não menti quando disse que precisaria de alguns dias. Normalmente, eu paro na primeira joia ou artefato de valor que encontro. Mas agora é diferente: terei que analisar todos os compartimentos. E, convenhamos, duvido muito que ele esteja catalogado como “pergaminho poderoso”. 

— Apenas descubra em qual compartimento ele está — disse Nolan, a voz carregada de autoridade. — O resto é por nossa conta. 

Kenshiro, ao lado da esposa, ergueu o olhar. 

— Quantos guardas estamos enfrentando? 

— Guardas? Nenhum, se formos no momento certo — explicou Nolan. — Iremos à noite, quando a cidade estiver adormecida. Mas a prefeitura... está coberta de armadilhas. Centenas delas. Eu, Vaelis e Soren ficaremos responsáveis por desativá-las. Vocês terão que seguir nossos passos com cuidado. Qualquer erro e... 

— Sim, sim. Já dá para imaginar — interrompeu Kenshiro, em tom seco. 

O silêncio caiu novamente. Não havia dúvidas, apenas a compreensão do risco que corriam. 

Foi Lyner quem quebrou a tensão, caminhando até a janela. 

— Nesse caso, é aqui que eu me despeço. 

Ele apoiou um dos pés na beirada, e seu corpo começou a contorcer-se e encolher. Em instantes, a figura humana desapareceu, dando lugar a um gato esguio de pelos escuros. 

A criatura olhou por cima do ombro, as pupilas finas refletindo a luz bruxuleante da lareira acesa. Quando abriu a boca, não foi um miado que ecoou, mas sua voz arrastada e ainda claramente audível, reverberando como um sussurro mágico: 

— Mantenham a janela aberta. 

E com um salto leve, desapareceu na escuridão da noite. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora