Volume 2 – Arco 9

Capítulo 86: Falecimento

Kenshiro despertou.

Não havia som. Nem calor, nem frio. Nem chão, nem céu.

Apenas o vazio.

Um nada cinzento o engolia por todos os lados, sufocante em sua neutralidade. Não havia horizonte, nem limites, apenas uma vastidão imóvel e sem vida. A sensação não era nova. Pelo contrário, era estranhamente familiar, como se estivesse regressando a um lugar onde nunca deveria ter estado — e, ainda assim, uma nostalgia dolorosa o invadia.

Como podia sentir saudade de um espaço que sequer existia?

O acinzentado se estendia infinito, sem começo nem fim, e Kenshiro percebeu-se de pé, embora não tivesse lembrança de se erguer. O corpo parecia leve demais, frágil, como se bastasse um sopro para se desfazer.

Era diferente da última vez, ele sabia disso.

Diferente… e mais sombrio.

Mas havia uma constante. Algo que precisava estar ali, ou sua sanidade se romperia de vez.

— Bem-vindo de novo — A voz veio atrás dele, firme e serena. 

Kenshiro não se assustou. Apenas girou lentamente e o encontrou: seu reflexo, sentado no vazio. O mesmo rosto, o mesmo olhar, o mesmo silêncio inquietante. Alívio e desconforto misturaram-se em seu peito. 

Ele se posicionou diante da cópia, dobrando os joelhos para imitá-la. Os dois ficaram frente a frente, como imagens num espelho. 

— Parece que você esteve me esperando — disse Kenshiro, com a voz áspera. 

— E eu estava — respondeu o reflexo, sem hesitar. 

— Muito tempo? 

— Depende do ponto de vista. 

— Há quanto tempo você está aqui? 

— O mesmo que você. 

Kenshiro franziu o cenho, irritado. 

— Eu acabei de chegar. Foram só alguns segundos até eu lembrar o que é este lugar. 

— E eu já sabia. Por isso esperei você. 

Houve um silêncio denso. Kenshiro respirou fundo, tentando compreender a lógica distorcida. 

— É como se você fosse uma versão melhorada de mim. 

— E eu sou. 

A resposta não o ofendeu. Pelo contrário, despertou uma esperança incômoda — talvez, enfim, tivesse respostas. 

— Você é… eu do futuro? 

— Não. 

— Do passado, então? 

— Também não. 

— O que você é, afinal? 

— Nós somos Kenshiro. Simples assim. 

O vazio ao redor pareceu vibrar em eco com aquelas palavras. 

Talvez não houvesse resposta alguma. 

— Quer mesmo continuar tentando descobrir quem nós somos — disse o reflexo, com um meio sorriso cansado — ou prefere continuar de onde paramos da última vez? 

— Não — A negativa de Kenshiro foi imediata, quase instintiva. 

O reflexo arqueou as sobrancelhas, surpreso. Pela primeira vez, levantou-se por primeiro. 

— Posso ver — A voz dele soou baixa, quase reverente. — Parece que você descobriu a resposta sozinho, enfim. 

Kenshiro também tentou se erguer por completo, mas no instante em que apoiou os pés, o corpo fraquejou. As pernas cederam e ele quase tombou, não fosse seu reflexo segurá-lo pelo braço com firmeza. 

— Não faça isso — disse o outro, segurando-o ereto. — Não se esforce. 

Foi então que o vazio tremeu. O cinza uniforme começou a escurecer, como se um véu de sombras caísse sobre tudo. Kenshiro percebeu, com um arrepio, que antes este lugar era completamente branco. 

— O que está acontecendo? — perguntou, a voz embargada. 

— Nós morremos de novo, obviamente. 

A resposta foi fria demais, mas impossível de contestar. 

— Mas por que está diferente? Por que não é igual à última vez? 

— Porque está mais difícil de retornar — O reflexo o fitou com olhos sérios. — Erina não está conseguindo nos trazer de volta. 

Um peso esmagador tomou o peito de Kenshiro. A respiração acelerou, descontrolada. Ele levou instintivamente a mão à boca — e sentiu o gosto metálico, amargo. Quando olhou para si mesmo, estremeceu: sua carne estava dilacerada, e dos ossos, poucos ainda estavam intactos. 

— Não foi uma morte limpa, como da última vez — O reflexo desviou o olhar, quase em lamento. Deu alguns passos para trás, voltando a sua posição. — Se este espaço escurecer demais, talvez nós morramos de vez. 

— Mas… da última vez conseguimos! — Kenshiro explodiu, a voz trêmula. 

— Da última vez, nós voltamos porque estávamos sintonizados. Voltamos a ser um só, e isso permitiu que Erina nos chamasse de volta. 

— Então vamos fazer isso de novo! — gritou, desesperado. 

— Não será tão fácil desta vez. 

— Por que não?! 

— Porque agora você sabe — O reflexo se aproximou, encarando-o com firmeza. — Tentará ao máximo nos unir outra vez, e isso não será verdadeiro. 

O desespero tomou conta dele. O suor escorria pela fronte, os punhos apertaram os cabelos como se quisessem arrancá-los. 

— O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço…?! 

— Primeiro, tente se acalmar — O reflexo aproximou novamente, próximo o bastante para abraçá-lo. — Não pense no que acontece se falhar. Apenas concentre-se no agora. 

Mas Kenshiro não o escutava. O tremor do vazio ecoava em sua respiração ofegante. 

Então, de súbito... 

PAH! 

O reflexo lhe deu um tapa, seco, direto no rosto. 

Kenshiro encarou-o, ainda perplexo, a mão repousando na própria face como se quisesse confirmar o que sentira. 

— Por acaso… isso doeu? — perguntou, a voz baixa, quase desconfiada. 

Levou os dedos à bochecha, esperando sentir calor, ardência, qualquer coisa. Mas a pele estava intocada; não havia inchaço, nem vermelhidão. 

— Não existe dor aqui — O reflexo falou com uma calma absoluta, quase impessoal. — Nada daqui é real. 

Kenshiro abriu a boca, hesitante. 

 — Mas… como…? 

— Olhe para si novamente. 

Ele obedeceu. E quando baixou os olhos para o próprio corpo, o choque o fez prender a respiração. Os ossos expostos, as lacerações e o sangue que escorria de sua boca — tudo havia desaparecido. Estava inteiro. O corpo estava perfeito, como se nada tivesse acontecido. 

— O que é isso? — murmurou. — O que estamos fazendo aqui? 

— Aqui é o “limbo” — A voz do reflexo ecoou firme, como se cada palavra fosse uma sentença. — Mas não é exatamente um lugar. É um estado. E a razão de estarmos aqui… é simples: precisamos voltar à sintonia. 

Kenshiro estreitou os olhos. 

 — Você fala com muita certeza. Como se soubesse de tudo. 

O reflexo inclinou levemente a cabeça, sem demonstrar arrogância, apenas convicção. 

 — Essa é a minha função. Eu não sei de tudo… mas tenho certeza de todas as coisas que nós sabemos. 

O silêncio caiu pesado. Kenshiro inspirou fundo, como se reunisse coragem para a pergunta que, mais do que todas, queimava dentro dele. 

— Quem… quem é você, de fato? 

O reflexo sustentou o olhar. Demorou alguns segundos, como se quisesse garantir que Kenshiro estivesse atento, que não houvesse espaço para desviar do peso daquela resposta. 

— Eu sou Kenshiro. 

— E quem sou eu, então? 

— Você também é Kenshiro. Nós somos Kenshiro. 

— Você não está respondendo minhas perguntas… 

— Então por que insiste? — devolveu o reflexo, com simplicidade desconcertante. 

— Porque eu quero saber! — Kenshiro explodiu, dando um passo à frente, obrigando seu reflexo a recuar. 

Sua voz manteve a serenidade. 

 — Você já sabe. Só não aceita. Procura uma outra verdade… porque admitir a real pode te destruir. 

As palavras ecoaram no vazio. Kenshiro não respondeu de imediato. O instinto dizia que o reflexo não era seu inimigo, e por isso se forçou a silenciar. Resolveu acreditar, ao menos por ora, e mudar a linha de suas perguntas. 

— Se… 

— Não tenha pressa — O reflexo o interrompeu suavemente. — O tempo não passa aqui. 

Kenshiro fechou os olhos, respirando fundo, sentindo parte do peso sair de seus ombros com aquela revelação. Podia pensar. Podia demorar. 

Ele se calou por longos instantes, mergulhando em lembranças, dores e fracassos. Até que, sem conseguir conter-se mais, perguntou: 

— Não há nada mais que eu pudesse fazer? 

O reflexo franziu o cenho. A pergunta estava crua demais. Precisava de mais. 

— Fiz realmente tudo o que estava ao meu alcance? — Kenshiro insistiu, a voz embargando. — Eu não podia ter conseguido um resultado melhor? Evitado mais mortes? Salvado mais pessoas? Impedido tamanha dor? 

— Qual é a resposta que você quer ouvir? — retrucou o reflexo. 

— Eu quero a verdade — A frase saiu carregada de angústia. 

O reflexo voltou a encará-lo nos olhos. Havia brilho neles — não de superioridade, de compaixão. Pequenas lágrimas se acumularam nos cantos dos olhos de Kenshiro, refletindo o vazio ao redor. 

A dúvida não era nova. Era uma ferida antiga que nunca cicatrizara. 

— Sempre é possível alcançar um resultado melhor — A voz do reflexo soou firme, sem julgamento. — Mas só descobrimos isso quando o estrago já está feito. Levando em conta as circunstâncias… você fez tudo que estava ao seu alcance. 

Kenshiro abaixou a cabeça. A verdade não o confortava. Pelo contrário, parecia uma lâmina atravessando-lhe o peito. 

— Quer tanto assim que a culpa que sente seja justificada? — perguntou o reflexo, quase em sussurro. 

— Eu queria… — a voz de Kenshiro se partiu, as palavras escapando como um desabafo que ele nem sabia carregar —, queria ter alguma culpa de fato. Saber que fiz a escolha errada. Porque assim… eu poderia evitar desastres no futuro. Mas… pelo jeito… nem o meu melhor é suficiente. 

— Essa não foi a minha resposta — O reflexo ergueu o tom pela primeira vez, ríspido. — Eu não disse “o seu melhor é insuficiente”. Pelo contrário, nós ainda não conhecemos nossos limites! 

Ele se aproximou mais uma vez de Kenshiro e, com firmeza, segurou-lhe a cabeça com ambas as mãos, obrigando-o a encarar seus olhos. 

— Olhe para mim. Você ainda é jovem. Mal passou dos vinte. E já acredita que é sua responsabilidade salvar o mundo. 

— Mas… é exatamente isso! — Kenshiro replicou, quase em súplica. — Essa responsabilidade foi dada a mim… 

— E não deveria! — cortou o reflexo. — Ninguém da nossa idade deveria carregar esse peso. As vidas perdidas, os desastres que aconteceram… nada disso é culpa sua, Kenshiro. Se você não tivesse tentado, ninguém o teria. 

— Mas… o resultado foi o mesmo que se eu não tivesse estado lá… 

— Você não sabe disso! — o reflexo ergueu a voz, pela primeira vez transparecendo emoção. — É apenas o que você quer acreditar para se punir. Mas eu sei, com toda a certeza que nós possuímos: você ainda está longe do seu potencial máximo. E é exatamente por isso que deve continuar. Nunca desistir. 

As palavras caíram sobre Kenshiro como marteladas. Ele tremeu, hesitou, mas não conseguiu responder de imediato. 

— Você me entendeu? — insistiu o reflexo, apertando-lhe os ombros. 

— Mas… 

— Você me entendeu? 

O silêncio durou um instante eterno. Até que, exausto, Kenshiro assentiu. 

— Eu… entendi. 

E então veio a ruptura. 

O ambiente acinzentado, antes sufocante, começou a se iluminar. O cinza dissolveu-se em branco, e o espaço ao redor dobrou-se e retorceu-se, como se estivesse prestes a engolir a si mesmo. A gravidade, a distância, a forma — nada mais fazia sentido. 

Kenshiro sentiu força. Pela primeira vez, conseguiu se erguer sem ceder. O corpo respondeu. Ele estava inteiro. 

O reflexo recuou um passo, sorrindo levemente. 

— Até a próxima. 

E desapareceu. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora