Volume 2 – Arco 8
Capítulo 85: Reforma
Cenara era uma cidade grande demais, famosa demais, movimentada demais para se dar ao luxo de manter uma prisão comum, escondida em algum canto isolado. Aqui, até os prisioneiros faziam parte da engrenagem econômica: eram força de trabalho, eram moeda de troca, eram exemplos expostos para que ninguém ousasse trair a ordem estabelecida.
Assim como todas as mercadorias que transitavam pelos portões, os condenados também estavam presentes, visíveis, e precisavam ser contidos, vigiados e, em muitos casos, quebrados.
A solução encontrada fora brutal e engenhosa: não havia uma prisão afastada — a prisão estava dentro dos próprios muros da cidade.
Diversas entradas espalhavam-se pelas muralhas, cada uma conduzindo a um setor distinto, de acordo com a categoria e o grau de periculosidade dos prisioneiros. Cada entrada possuía seu destacamento próprio de guardas, cada setor sua disciplina e regime. Mas a pior de todas, a mais temida, era a prisão de nível máximo: a única cuja entrada ainda se mantinha visível na muralha, que se prolongava verticalmente para o subsolo, descendo como raízes envenenadas por baixo da cidade.
Havia um detalhe terrível em seu projeto. Se necessário, bastava soterrar a entrada com pedras e terras, e todos os encarcerados seriam deixados lá embaixo para morrer — não em fuga, não em combate, asfixiados, engolidos pelo peso implacável da própria muralha que jurava contê-los.
Era por isso que o grupo não podia sequer ser visto. Um único olhar lançado por um guarda, um alerta dado no momento errado, e a missão não apenas falharia — poderia enterrar para sempre a família de Nolan junto com dezenas de outros infelizes.
Por essa razão, decidiram reduzir o número de infiltrados. Ficariam de fora os menos discretos, ou aqueles cujo poder chamaria atenção demais. Erina, Gurok, Kaji, Soren e Vaelis foram deixados em retaguarda. O próprio Nolan deveria ter ficado, mas era impossível convencê-lo a abandonar a chance de salvar esposa e filha.
Esperaram. O silêncio da madrugada foi chegando devagar, engolindo o burburinho dos mercados, as canções das tavernas, o arrastar dos passos dos bêbados. Quando finalmente o toque de recolher ecoou pelas ruas, eles já estavam posicionados. Ocultos nos telhados baixos das casas próximas às muralhas, observavam de cima o vaivém ritmado das patrulhas.
— Por favor — disse Nolan, a voz baixa, carregada de angústia —, eu peço que não matem ninguém. São apenas homens, cumprindo seu dever… inocentes.
Fox arqueou a sobrancelha, os olhos semicerrados como navalhas no escuro.
— Vai colocar a vida desses soldados acima da sua família?
Nolan se engasgou com a resposta. Não havia palavras que equilibrassem aquela balança.
— Faremos o que for possível — interveio Kenshiro, a voz firme, branda.
Sebastian, que até então estudava os movimentos dos guardas, quebrou o silêncio:
— Acho que encontrei uma abertura. Um padrão na patrulha… Se agirmos no momento certo, poderemos nocauteá-los sem levantar alarme. Mas precisaremos incapacitá-los. Me preocupa o que acontecerá quando outros soldados notarem a ausência deles.
— Não existe mesmo outro jeito? — murmurou Nolan, apertando sua túnica.
— De fazer na surdina? Não — respondeu Sebastian, a expressão dura.
Nolan respirou fundo, a sombra de um plano surgindo em seus olhos.
— Eu tive uma ideia. Vamos prosseguir com o plano do vampiro.
Não houve discussão. Cada um se deslocou para a beirada de um telhado, escolhendo o guarda que deveria interceptar. A tensão fez o ar parecer mais denso. O momento era tão preciso que não necessitava de sinal algum: quando um dos inimigos estivesse próximo o suficiente para ser capturado, todos os outros também estariam.
E então saltaram.
Sombras despencando do alto, caindo sobre as patrulhas como predadores noturnos. O choque foi seco, rápido, sufocado. Nenhum grito ecoou, apenas o som de corpos tombando, inconscientes antes mesmo de compreenderem que haviam sido atacados.
Fox limpou a poeira das luvas, olhando em direção a Nolan.
— E agora?
Nolan já puxava da manta pequenos pergaminhos dobrados, cada um marcado com runas estranhas. Com gestos rápidos, abriu-os e os lançou contra os guardas caídos.
O efeito foi imediato e perturbador: os pergaminhos pareciam ganhar vida própria, voando como serpentes de papel até grudarem no peito de cada soldado. Num piscar de olhos, desapareceram dentro deles.
E, lentamente, os corpos começaram a se erguer.
Os soldados levantaram-se como marionetes bem treinadas. Suas armas voltaram para as mãos, suas pernas seguiram o mesmo compasso da patrulha. Mas seus olhos… seus olhos estavam abertos e ao mesmo tempo mortos. Opacos, sem brilho, sem foco, como se olhassem através do mundo.
— O que você fez com eles? — perguntou Xin.
— Ainda estão desmaiados. Apenas os fiz seguir patrulhando… num “modo constante”. Como bonecos.
Um calafrio percorreu o grupo. Não era a primeira vez que viam magia, mas a extensão das habilidades daquele homem era inquietante. Se ele podia fazer aquilo com guardas, o que mais poderia moldar à sua vontade?
— Rezemos para que ninguém tente puxar conversa com eles — murmurou Fox, frio como aço. — Para dentro, agora.
Sem mais palavras, atravessaram a pequena porta na muralha.
Do lado de dentro, Lyner tomou a dianteira.
— Devemos nos preocupar com guardas aqui dentro? — perguntou Kenshiro, atento às sombras.
— Geralmente não — respondeu Lyner, sem diminuir o passo. — O plano de soterramento já é o bastante para manter os prisioneiros dóceis. Mas fiquem alertas.
O corredor se alongava em linhas de pedra úmida até se transformar em uma escadaria que os conduziu cada vez mais fundo. O ar tornava-se pesado, frio, e o silêncio só era quebrado pelo eco de suas próprias botas.
Enfim, chegaram ao setor das celas destinadas aos prisioneiros especiais. Quase todas estavam vazias, e o ambiente transmitia uma sensação de abandono.
— Acho que o lugar não anda muito popular — comentou Kenshiro, em tom sarcástico. — Talvez precise rever sua estratégia de negócios, antes que vá à falência.
Nolan soltou um suspiro grave.
— Não é mais comum o Império transportar prisioneiros de cidade em cidade. Agora eles apodrecem em suas próprias celas. Houve um tempo em que carroças inteiras eram enviadas para as Geleiras, e Cenara era apenas uma parada na peregrinação interminável.
— Sim, até chegarem aos Remanescentes — completou Fox. — Um reino criado apenas para servir de prisão… Não é de se surpreender que se rebelaram contra o Império. A estratégia nunca foi boa.
— Vocês falam como se soubessem da verdade absoluta — rebateu Lyner, sem olhar para trás. — Não posso opinar sobre o ataque dos Remanescentes, mas diria que eles são tão civilizados quanto os nobres imperiais.
— Você fala como se fosse simpatizante deles — provocou Kenshiro.
— "Simpatia" — respondeu Lyner, firme. — É exatamente isso que sinto. Uma qualidade rara entre os humanos.
Kenshiro arqueou a sobrancelha.
— E sente simpatia por assassinos e criminosos?
— A prisão de Aleksandr, o reino dos Remanescentes, não foi criado apenas para assassinos, estupradores e ladrões de fortunas — disse ela, em tom cortante. — Também para batedores de carteira, ladrões de comida, e, sobretudo, para aqueles que ousavam não simpatizar com o Império. Consegue imaginar qual desses grupos era a maioria, senhor espadachim?
Houve uma pausa, carregada.
— É difícil imaginar pessoas assim tornando-se assassinos sanguinários, capazes de destruir vilas inteiras… — ela continuou. — Mas algo nessa história não fecha. E, com todo respeito, a humanidade tem o péssimo hábito de contar os fatos apenas pelo lado que lhes convém.
O silêncio caiu sobre o grupo. Ninguém teve coragem de contrariá-la. A verdade, afinal, só pertencia àqueles que haviam presenciado aqueles dias.
— Chegamos — anunciou Lyner, apontando com o queixo para uma porta colossal de ferro.
GRRRRNNNKKK-KLAAANGK-KRRRHHH…
As engrenagens rangeram quando ela puxou a alavanca, e a porta subiu até o teto com um estrondo.
Nolan não esperou. Atravessou a entrada às pressas e encontrou o que tanto buscava: sua família.
Duas figuras femininas jaziam no chão, mãe e filha, adormecidas e encolhidas sob uma coberta rala que mal as protegia do frio da pedra.
— Meninas! — chamou ele, a voz embargada. — Estão bem?
A mulher ergueu os olhos marejados, ainda sonolentos.
— Nolan? Querido… é você mesmo?
— Papai?! — exclamou a menina, despertando de súbito.
— Sim, sou eu! — Nolan se ajoelhou, abraçando-as com força. — Eu vou tirá-las daqui, agora.
Elas não prestaram atenção no grupo que observava à porta. O mundo delas havia se resumido àquele reencontro.
Com as mãos trêmulas, Nolan retirou um pergaminho enrolado do manto e o lançou ao chão. O papel brilhou, expandindo-se em um círculo de energia que se abriu em um portal, semelhante ao da AMA.
Fox ergueu o queixo, curioso.
— Para onde pretende ir?
— À Capital — respondeu Nolan, decidido. — Preciso denunciar o metamorfo e expor tudo que Ajax fez. Tenho certeza de que a justiça será feita.
Fox assentiu e estendeu a mão.
— Boa sorte.
Nolan apertou sua mão com firmeza.
— E a você também, Herói do Povo.
Sem mais demora, ele conduziu esposa e filha para dentro do portal. Em instantes, os três desapareceram na luz cintilante, deixando apenas o eco do feitiço no ar gelado da prisão.
O grupo estava pronto para partir quando, ao atravessarem o corredor de pedras úmidas, ladeado por celas vazias e enferrujadas, Xin notou algo estranho. No silêncio frio do lugar, apenas uma das celas ainda não estava deserta.
Ela parou, puxando levemente a manga da roupa de Zhen e apontou para a sombra imóvel atrás das grades.
— Quem está preso? — perguntou.
Lyner estreitou os olhos, surpresa.
— Estranho… não deveria haver ninguém aqui.
O grupo se aproximou, passos ecoando pelo chão áspero, até que uma voz soou de dentro da cela, clara e provocativa:
— Nolan! Quanto tempo teremos que ficar aqui?
A voz era masculina, jovial, rebelde, carregada de impaciência.
— Acalme-se, irmão! Ele virá logo. Tenho certeza — Quase ao mesmo tempo, uma segunda voz respondeu, feminina, calma e serena, em contraste absoluto.
— Se você diz, mana… mas ao menos ele podia ter dado um jeito de mandar uma comida decente! — resmungou o rapaz, com tom insolente.
O grupo trocou olhares tensos.
— Eles parecem conhecer Nolan — murmurou Sebastian, franzindo o cenho.
— Mas ele não nos relatou nada sobre isso — retrucou Fox, desconfiado.
Lyner cruzou os braços, avaliando.
— Nolan pode vir libertá-los depois. Talvez seja melhor deixá-los aqui. Vamos. Vou tirá-los daqui...
Ela já se virava para conduzir o grupo de volta ao caminho, quando percebeu que Fox permanecera imóvel. Seus olhos fixos na grande porta de ferro da cela denunciavam um incômodo maior.
GRRRRNNNKKK-KLAAANGK-KRRRHHH…
— O que está fazendo?! — exclamou Lyner, erguendo a voz.
Fox não respondeu. Deu um passo à frente, atravessando a entrada sombria da cela, como se fosse atraído por uma força irresistível.
Um a um, os demais o seguiram, tomados pela mesma mistura de inquietação e curiosidade. Quando finalmente se viram diante do interior da prisão, todos congelaram.
Dois jovens estavam acorrentados. As correntes que prendiam seus tornozelos não eram comuns — o brilho púrpura do metal denunciava seu caráter anti-mágico, feito para subjugar seres que jamais poderiam ser contidos por grilhões normais.
Apesar das correntes, a presença deles dominava o espaço.
O primeiro a falar foi o rapaz, um sorriso irônico curvando os lábios.
— Parece que temos visitas, Skadi.
— Não começa, Surtr — respondeu a irmã, com a mesma calma cortante de antes.
Ele riu, um riso leve e provocativo.
— Vamos, aproximem-se! Não é todo dia que podem ver dois generais dos Remanescentes, não é?
O impacto das palavras os atingiu de imediato. O grupo trocou olhares de choque.
Eram gêmeos — e tão jovens que poderiam facilmente ser confundidos com adolescentes comuns. Mas havia neles algo inegociável: uma aura de comando que pesava no ar como gelo no peito.
A jovem, chamada Skadi, vestia um manto branco, de tecido puro e limpo, destoando do ambiente gélido e sujo da cela. A claridade de sua pele parecia refletir o frio em cada detalhe, e seus longos cabelos prateados escorriam pelos ombros como neve derretida. O rosto, de feições suaves e quase angelicais, contrastava com a dureza dos grilhões. Nos olhos cristalinos — frios, quase translúcidos — havia uma serenidade que não pertencia a uma garota daquela idade. Ela parecia uma aparição, um fragmento etéreo do próprio inverno.
Já seu irmão era o reflexo invertido. Surtr possuía os mesmos traços perfeitos, a mesma juventude límpida, mas envolto em trevas. As vestes negras absorviam a pouca luz da cela, enquanto seus cabelos claros brilhavam como uma lua pálida em meio à escuridão. Seus olhos, idênticos em forma aos da irmã, ardiam com intensidade sombria — uma chama gelada, paradoxal, que parecia ameaçar romper o próprio gelo que os cercava.
Juntos, acorrentados lado a lado, eram como um quadro de simetria impossível: branco e negro, neve e sombra, silêncio e provocação. As correntes não diminuíam sua imponência — pelo contrário, reforçavam a sensação de que, se estavam presos, era apenas porque o mundo temia o que fariam em liberdade.
Generais não deveriam ter rostos tão jovens. Nem olhos tão antigos.
O silêncio pesado que se seguiu foi interrompido por um clarão súbito. Um portal surgiu no espaço da cela vizinha, o mesmo onde a família de Nolan aguardava. O ar vibrou, distorcendo-se até que a figura familiar atravessasse o véu.
Nolan havia retornado.
Fox foi o primeiro a avançar um passo, a voz carregada de incômodo.
— Nolan… o que faz aqui? Quem são eles?
O mago abriu os braços, como se recebesse o grupo em sua própria casa.
— Pequenas mudanças de planos, meu caro Herói. — Um sorriso cínico cruzou-lhe os lábios. — Parece que teremos que retomar Cenara… de Ajax.
— O quê?! — a incredulidade explodiu na voz de todos ao mesmo tempo.
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