Volume 2 – Arco 8

Capítulo 84: Bichano

Todos ainda estavam incrédulos com o gato em questão, como se o simples fato de um felino servir de contato fosse por si só uma afronta à lógica. O silêncio pairava no quarto, quebrado apenas pelo estalar discreto da madeira da lareira e pelo som abafado da cidade lá fora. 

— Por acaso você aprendeu a falar com animais? — perguntou Xin, erguendo uma sobrancelha, ainda confusa. 

— Todos nós falamos, na realidade — respondeu Nolan com um sorriso provocador, o tom brincalhão em contraste com o espanto dos demais. 

Fox, de braços cruzados, franziu o cenho.

— Isso não era bem o que eu estava imaginando... — murmurou, dividido entre ficar impressionado ou simplesmente desapontado. 

— Até você? — perguntou Sebastian, arregalando os olhos para Fox, como se buscasse confirmar se aquilo era mesmo sério. 

— E se... — Soren, de súbito, ergueu um dedo, com a expressão de quem tivera uma ideia brilhante. — Nolan poderia usar um feitiço para ler as memórias do gato. Talvez assim conseguisse ver toda a cidade por onde ele passou. 

Vaelis inclinou-se para frente, desconfiada.

— Mas como isso funcionaria exatamente? — retrucou. — Duvido que o gato soubesse que precisava procurar por alguém. Ele devia estar apenas vagando, livre e curioso, como qualquer animal. 

— Talvez o bichano seja adestrado — arriscou Takashi, encolhendo os ombros, sem saber se estava sendo irônico ou se acreditava mesmo nisso. 

De repente, uma voz suave, quase etérea, ecoou pelo cômodo, cortando a sequência de especulações: 

— Chega dessas bobagens. 

O gato, que até então permanecia à janela, moveu-se com elegância repentina. Saltou para dentro do quarto, as patas suspensas no ar como se deslizassem por um instante no vazio. 

E então, diante dos olhos arregalados de todos, a transformação aconteceu.

O pelo se desfez em fiapos de luz, a estrutura felina retorceu-se e se reconfigurou, ossos alongando-se e músculos ajustando-se a novas proporções. Antes que suas patas tocassem o chão, o animal já havia se tornado outra coisa: um jovem. 

— Imaginava que fosse demorar mais alguns dias, Governador — disse o menino, com naturalidade desconcertante. 

— Também é bom ver você, Lynar — respondeu Nolan, como se aquilo fosse a coisa mais comum do mundo. 

Se o contato de Nolan ser um gato já havia sido surpreendente, a revelação de Lynar ser um Híbrido deixou o grupo em choque absoluto. 

À primeira vista, ele parecia apenas um jovem frágil, quase adolescente. A pele era clara e lisa, sem marcas do tempo, e o corpo esguio possuía proporções harmoniosas demais, como se tivesse sido desenhado para confundir o olhar. Seu rosto tinha traços delicados: nariz fino, boca pequena, cabelos longos que caíam em mechas soltas até os ombros, ocultando-lhe parcialmente as orelhas. 

Mas bastava encarar seus olhos para que a ilusão se desfizesse. Havia neles o brilho cortante de um predador. As pupilas verticais refletiam a luz da lareira de forma antinatural, lembrando o olhar atento de uma fera à espreita. Seu movimento também não deixava dúvidas: cada gesto era calculado, fluido e silencioso, como se até mesmo o ar fosse cúmplice de sua presença. 

Entre os fios desgrenhados que deslizavam sobre os ombros, revelavam-se, vez ou outra, orelhas felinas, pontiagudas e inquietas, mexendo-se ao menor ruído. Atrás dele, um rabo comprido, coberto por pelos curtos e escuros, agitava-se em leves balanços, denunciando um estado de ânimo que seu rosto, sereno e contido, jamais mostraria. 

As mãos pareciam humanas, escondiam garras retraídas, que cintilavam perigosamente quando expostas — armas discretas, mortais. Todo o conjunto parecia moldado para se aproximar de uma forma humana, embora nunca fosse capaz de ocultar por completo a verdade. 

Havia, porém, algo ainda mais perturbador: Lynar não possuía marcas de sexualidade. Seu corpo trazia uma neutralidade perfeita, sem indícios masculinos ou femininos. A ausência de definição não lhe roubava a humanidade, mas a distorcia, tornando-o algo além — um ser que não se encaixava em nenhum molde conhecido, um reflexo quebrado das duas naturezas que carregava. 

Sem pedir permissão, o híbrido fechou a janela com um gesto leve, como se anulasse um feitiço invisível. Em seguida, caminhou até a cama mais próxima e se acomodou ali, sentando-se com as pernas cruzadas, como um visitante que chegava para ficar. 

O silêncio voltou ao quarto, mas desta vez era outro — pesado, denso, carregado pelo impacto daquilo que todos acabavam de testemunhar. 

— Podemos ir direto ao assunto ou alguém deseja debater sobre outra coisa antes? — perguntou Lynar, sua voz calma ecoando no ambiente, carregando uma firmeza que não permitia dispersões. 

O silêncio que se seguiu durou apenas um instante, até que Nolan, incapaz de se conter, tomou a frente com urgência: 

— Onde está minha família? — Sua voz embargada denunciava a ansiedade contida. — Minha esposa, minha filha... onde elas estão? 

Lynar inclinou ligeiramente a cabeça, como se a pergunta fosse óbvia demais. 

— Não precisava de mim para descobrir isso... — respondeu, sem emoção. — Estão na prisão, é claro. 

O coração de Nolan pareceu se apertar, e ele deu um passo à frente, insistindo: 

— Sim, mas onde? Qual a cela? Diga-me com clareza. 

O olhar de Lynar, frio como pedra, não vacilou. 

— Foram tratadas como criminosas especiais — Sua fala saiu lenta, quase pesada. — Estão no pior nível possível. 

A expressão de Nolan se contraiu. O maxilar tenso, os lábios comprimidos, os olhos faiscando de frustração. Ele fechou os punhos, conteve o impulso de explodir. 

— Elas estão bem — completou Lynar, e pela primeira vez sua neutralidade soou como uma lâmina contra o desespero do outro. — Ajax jamais faria mal a elas. Provavelmente estão recebendo comida melhor que a dos prisioneiros comuns. 

— Elas não deveriam estar lá! — vociferou Nolan, a voz ecoando pelo salão. — Minha família não é uma isca! 

Lynar não se alterou. Apenas ergueu o queixo ligeiramente, como um professor repreendendo um aluno. 

— Acalme-se, Governador. Está descontando sua raiva na pessoa errada. 

Respirando fundo, Nolan levou a mão à testa, como se tentasse conter a pressão que lhe latejava na mente.

— Tem razão... — Sua voz saiu quebrada. — Eu sinto muito, Lynar. 

O outro apenas inclinou a cabeça, indiferente. 

— Não por isso. 

O ambiente permanecia carregado, e foi Erina quem se aproximou, interrompendo o peso que ameaçava se prolongar. 

— Com licença. — Sua postura firme contrastava com a delicadeza de sua voz. — Agora que estamos todos reunidos, não seria hora de contar sobre o que realmente está acontecendo? 

Lynar a encarou por um instante, o olhar felino avaliando suas intenções. 

— Querem a versão resumida ou a completa, com todos os detalhes? 

— Resumo — respondeu Kenshiro, direto. 

Lynar suspirou levemente, sua cauda oscilando atrás dele como um pêndulo de impaciência. 

— Pois bem... — Começou, o tom agora mais sombrio. — Descobrimos a existência do metamorfo logo nos primeiros dias de sua chegada à cidade. Nolan confiou a mim a missão de encontrá-lo... e falhei. Nem meus sentidos mais aguçados eram capazes de detectar alguém que podia se transformar em outra pessoa. 

— Ela não estava apenas trocando de aparência? — interrompeu Gurok, franzindo o cenho. 

— Não — Lynar respondeu de pronto, com gravidade. — Esse metamorfo não imita apenas o exterior. Ele se torna uma cópia quase perfeita, carregando memórias, sentimentos e até parte da essência de suas vítimas. Claro, não é algo completo. Se fosse, teria parado ao se copiar de seu primeiro benfeitor. Mas, mesmo assim, foi capaz de matar pessoas de maneiras doentias... pais, filhos, cônjuges... executando-os como se fossem estranhos, mesmo guardando um resquício de amor por eles. 

Um silêncio desconfortável recaiu sobre o grupo. A ideia era perturbadora, e ninguém ousou comentar de imediato. 

— Volte ao assunto principal. — A voz de Kenshiro rompeu a tensão, firme e impaciente. 

O rabo de Lynar balançou uma vez, lenta e pesadamente, denunciando sua irritação pelo tom do espadachim. Ainda assim, prosseguiu: 

— Como eu disse... por conta dos meus fracassos, o metamorfo chegou longe demais. A ponto de se transformar no próprio Governador — Seus olhos deslizaram na direção de Nolan, mas sem culpa, apenas constatando os fatos. — E quase tomou controle do pergaminho mais poderoso desta cidade. 

Houve um breve murmúrio entre os presentes, Lynar não parou. 

— Esse pergaminho guarda um feitiço paralisante, capaz de deter uma cidade inteira, praticamente petrificando cada cidadão. Embora só possa ser usado uma única vez, caso o metamorfo consiga dominá-lo, poderá replicar sua fórmula indefinidamente. Imaginem o que isso significa. 

A sala mergulhou em silêncio, o peso das palavras pairando como uma sombra. 

Foi Vaelis quem se atreveu a quebrá-lo, sua voz respeitosa, firme: 

— Com todo respeito ao professor, nenhum feitiço é perfeito. Deve haver uma falha, uma brecha... alguma forma de resistir à paralisia. 

Nolan respirou fundo e finalmente interveio, sua expressão sombria: 

— É verdade. Mas nem eu sei ao certo as propriedades completas desse feitiço. Nunca tive tempo para estudá-lo profundamente. Nunca pensei que fosse necessário... ou que representasse tamanho perigo. 

— E quem seria esse Ajax? — perguntou Takashi, a voz carregada de um incômodo que ele próprio não sabia definir. Havia algo na forma como o nome ecoava, como se fosse um presságio. 

— Ajax é um herói imperial — respondeu Lyner, endireitando o corpo e deixando que uma nota de respeito transparecesse em sua voz. Até mesmo sua cauda, que até então balançava distraída, parou por um instante, rígida. — Um verdadeiro veterano de batalhas. Já devia ter se aposentado há muito tempo, mas recusa-se a abandonar o serviço. E não pensem que é apenas um velho persistente... Ele não deixou nenhum inimigo vivo para difamá-lo ou revelar sua verdadeira força. 

Um breve silêncio se instalou na carruagem, pesado, como se todos sentissem a sombra de alguém que não estava ali. 

— Esperamos ele partir ou aguardamos a situação com o metamorfo se acalmar? — perguntou Zhen, franzindo o cenho. 

— Admito que o metamorfo parece ter desaparecido da cidade assim que soube da presença de Ajax — explicou Lyner, passando os dedos pelas próprias vestes como se organizasse o pensamento. — Mas o Herói não irá abandonar Cenara. Ele foi designado como seu protetor. 

Sebastian arqueou uma sobrancelha, surpreso:

— Por quê? Ele seria muito mais útil como general em campanha, não acha? 

— Ele é o Juiz desta cidade — interveio Gurok, sua voz grave soando como um trovão abafado. — Exatamente como foi Lucan no passado. Essa é a razão pela qual Cenara se mantém organizada e quase livre de crimes. 

— Exato — confirmou Lyner, seus olhos estreitando-se e o rabo voltando a balançar, agora com interesse visível. — Não imaginava que vocês conhecessem os antigos Juízes, ainda mais se tratando de um orc. Com todo respeito, claro. 

Gurok deixou escapar um resmungo antes de responder, sem se abalar:  — Sou morador de Altunet, uma cidade-livre. 

Ah... — Lyner assentiu, como se tivesse recebido uma revelação. — As cidades-livres ainda preservam costumes antigos, de antes do Império. Eu deveria me mudar para uma delas um dia... — Percebendo que o assunto desviava a atenção dos demais, rapidamente retomou o tom prático. — Como Ajax não irá partir, teremos de agir com cautela. Precisamos garantir que não chamaremos sua atenção. Do contrário... — Passou lentamente uma de suas unhas afiadas sob o próprio pescoço, completando a frase sem palavras. 

Fox, com os braços cruzados e expressão fechada, encarou Nolan diretamente: — E qual é o plano, Nolan?

— Retirar minha família da prisão. Somente isso importa — responder o Governador, sem titubear, com firmesa quase obstinada.

— E nós? Ficamos para lidar com Ajax e o metamorfo? — perguntou Erina.

— O metamorfo desapareceu — garantiu Nolan, ainda que sua voz deixasse entrever uma centelha de dúvida. — E ficará tudo bem desde que Ajax não perceba sua presença. Tenho certeza de que Lyner poderá tirá-los da cidade sem levantar suspeitas. 

O híbrido exibiu um sorriso enviesado e, para reforçar a confiança, piscou um olho na direção do grupo. 

— E assim — Completou Fox, o tom frio e calculista — nossas obrigações com você estarão encerradas. Depois disso, estaremos livres para seguir nosso próprio caminho. 

Um silêncio se instalou novamente, desta vez carregado de determinação. Kenshiro foi quem quebrou a tensão, sua voz grave ecoando como uma promessa:

— E quando começamos? 

— Agora — respondeu Nolan, sem hesitar. 

Estavam todos prontos para partir do quarto quando, de repente, viram Lyner sofrer uma mutação diante de seus olhos. 

A transformação foi silenciosa, quase discreta, impossível de ignorar. Ossos se moveram sob a pele como engrenagens vivas, músculos se reajustaram, e a carne moldou-se em novas proporções. Quando a metamorfose cessou, já não era o mesmo homem que haviam conhecido até então. 

À primeira vista, sua nova forma parecia a de uma jovem mulher. Os traços eram delicados, de uma beleza que chegava a ser incômoda, como se alguém tivesse tentado esculpir a ideia de feminilidade sem conhecer de fato todos os detalhes que a tornam natural. A pele era pálida e quase translúcida, impecável demais — sem cicatrizes, sem marcas, sem o calor típico da carne humana. 

O corpo era esguio, de curvas suaves mas incompletas. Não havia seios, apenas uma vaga sugestão de volume; a ausência de mamilos e de genitália traía o disfarce, revelando a estranheza de uma silhueta que lembrava mais uma estátua viva do que uma mulher de verdade. Era belo, mas perturbador, como se faltasse algo essencial para que aquela imagem pudesse convencer plenamente. 

O rosto, em contraste, era de uma perfeição quase sobrenatural. Olhos grandes, de pupilas felinas, fitavam o ambiente com um brilho inquietante, refletindo a luz como a de um animal noturno. O nariz era pequeno e fino, harmonioso; os lábios, delicados, guardavam um sorriso enigmático que ameaçava se formar, mas nunca chegava a existir por completo. Os cabelos longos, lisos, caíam como uma cortina sedosa, em certos momentos deixavam escapar o que tentavam esconder: orelhas felinas, que se moviam involuntariamente, denunciando a farsa. 

Atrás dela, um rabo longo e flexível serpenteava no ar com movimentos hipnóticos, revelando emoções que o rosto não deixava transparecer. Era como se o corpo dissesse uma coisa, o instinto animal gritasse outra. As mãos — finas, femininas — possuíam um detalhe incômodo: unhas alongadas que, ao simples movimento, revelavam-se como garras prontas para rasgar. 

Havia algo de fascinante e, ao mesmo tempo, assustador naquela forma. Era um reflexo do feminino, mas desprovido daquilo que tornava uma mulher humana: nem sensualidade plena, nem fragilidade, apenas a ilusão de feminilidade. Não era um corpo que pertencia, mas sim um corpo criado para imitar. 

— Desta forma eu me torno mais furtiva — explicou Lyner, a voz soando levemente diferente, mais suave, ainda carregando um eco estranho, como se não fosse inteiramente natural. 

Os híbridos eram conhecidos por sua capacidade de remodelar o próprio corpo, alternando entre gêneros e aparências. Ainda assim, era a primeira vez que o grupo presenciava tal mudança com seus próprios olhos. Para Lyner, parecia algo trivial — quase como trocar de roupa — para eles, a cena permanecia gravada com um misto de fascínio e desconforto. 

Erina, após alguns instantes de silêncio, tomou a palavra.

— E como deveríamos chamar você? Ele ou ela? — perguntou, o tom carregado de cautela. Não queria soar desrespeitosa,  também não sabia como navegar naquele território. 

Lyner inclinou levemente a cabeça, o rabo oscilando atrás dela como se saboreasse a dúvida da cavaleira.

— Será fácil para vocês — respondeu, serena. — Nesta forma, sou ela. Na anterior, sou ele. 

Não houve mais discussão. O grupo apenas assentiu em silêncio, aceitando a resposta. 

Sem mais contratempos, seguiram para fora, levando consigo a estranha sensação de que haviam testemunhado algo que desafiava sua compreensão do que significava ser humano. 

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