Volume 2 – Arco 8

Capítulo 80: Subsídio

A primeira visão de Cenara era sempre arrebatadora, quase esmagadora em sua imponência.

Ao atravessar os portões de pedra clara, altos como montanhas e polidos como se cada centímetro fosse constantemente lustrado pelas mãos de servos invisíveis, o viajante se via lançado em um espetáculo de ordem e grandeza. As ruas largas, pavimentadas com blocos lisos que refletiam o sol como espelhos discretos, pareciam ter sido desenhadas não para o conforto humano, mas para a glória de uma ideia: a de que o Império moldava o mundo segundo sua vontade. 

Os arcos de entrada erguiam-se como sentinelas eternas, sustentados por colunas que mesclavam solidez e arte — formas geométricas simples, calculadas até no menor detalhe, uma elegância que denunciava a ambição de quem as ergueu. Não havia excessos, também não havia vazio. Tudo parecia pesado de intenção. 

Logo adiante, as avenidas se abriam em linhas retas, como veias perfeitamente traçadas em um corpo colossal. Não existiam curvas inúteis, não havia desordem. O olhar era guiado, os passos eram conduzidos, e por instinto o viajante sentia que a cidade fora pensada não apenas para ser habitada, mas para impor disciplina a todos os que nela transitassem. 

As casas, dispostas em fileiras simétricas, exibiam fachadas de pedra clara ornadas com bronze discreto. As janelas, alinhadas com precisão quase militar, refletiam uma uniformidade que beirava o absoluto. Sobre elas, telhados de cerâmica avermelhada formavam um mar homogêneo, interrompido aqui e ali por chaminés que soltavam plumas de fumaça leve, lembrando a todos que, apesar da perfeição, ali havia vida. 

Nos cruzamentos, fontes de mármore interrompiam a rigidez das linhas retas. Cada uma trazia uma escultura — heróis de guerras passadas, deuses de culturas que o Império havia englobado, reis que foram derrotados, cujos rostos agora serviam de adorno. Da boca das estátuas, jorrava água fresca em bacias circulares, cintilando ao sol. O som da água não era mero acaso: estava ali para suavizar o passo dos viajantes e dar a sensação de que a cidade os recebia com generosidade. 

E, no entanto, não havia gritos de mercadores ou cores berrantes de barracas improvisadas.

Cenara não era um mercado, mas um corredor de poder.

Grandes hospedarias dominavam as esquinas, erguidas como fortalezas do descanso. Seus portões davam para pátios internos, adornados com colunatas e mosaicos que retratavam mapas de rotas marítimas, constelações e símbolos de povos distantes. Algumas dessas hospedarias eram tão monumentais que poderiam ser confundidas com palácios, sua função era clara: abrigar os que vinham de longe, colher o ouro que traziam e devolvê-los fortalecidos para a estrada.

Ali, nas salas iluminadas por tochas e lamparinas de óleo, acordos eram selados em silêncio, e rumores corriam mais rápido que o vinho servido nas jarras. 

Era nesse instante, nesse respirar da cidade, que o viajante compreendia sua essência. Cenara não existia para reter riquezas, mas para fazê-las passar por suas ruas. E no simples ato de passar, o tributo era cobrado. O mármore das praças, o dourado das estátuas, a solidez das muralhas — tudo era pago pelo imposto inevitável que transformava o fluxo em permanência, o movimento em poder. 

O grupo, recém-saído do portão, caminhava em silêncio, absorvendo aquela imponência. Até mesmo os mais calejados, acostumados a palácios e fortalezas, estavam hipnotizados. Foi Kenshiro quem primeiro quebrou a fascinação, estreitando os olhos ao perceber algo curioso: as patrulhas que rondavam as avenidas os cumprimentavam de maneira cordial, como fariam a simples visitantes. 

— Eles… não me reconheceram? — murmurou Kenshiro, a incredulidade em sua voz quebrando o silêncio que os envolvia. 

Nolan ergueu o queixo, ofendido, não pela dúvida do espadachim, e sim pelo que ela insinuava. 

— Não subestime a minha guarda, senhor espadachim — respondeu com firmeza. — Se não fosse pelos seus medalhões, nunca teriam permitido sequer que nos aproximássemos dos portões, muito menos atravessá-los. Eu tenho orgulho da disciplina deles… E não se esqueça, mesmo com o Herói do Povo do nosso lado, ninguém entraria em Cenara sem ser devidamente autorizado. 

Kenshiro o encarou, surpreso.

— O que quer dizer com isso? 

— Os medalhões… são mágicos. Eles alteraram a aparência de vocês — respondeu Soren, a voz vacilante, ainda marcada pela fraqueza da recuperação, carregada de timidez respeitosa.

A revelação fez Erina erguer as sobrancelhas, a curiosidade brilhando em seus olhos.

— E como nós parecemos, então? 

Vaelis, que até então caminhava distraída, fez um gesto com a mão, quase impaciente.

— Não temos como saber. Esse feitiço funciona apenas para os “de fora”. É algo incomum. Normalmente, ilusões desse tipo afetam a todos, inclusive quem as carrega. Mais uma prova, aliás, da genialidade de Nolan. 

Nolan lançou-lhe um olhar severo, mas Vaelis apenas sorriu de canto.

— Me bajular não vai fazer com que eu pegue leve com você, Froster. 

Ah, não se preocupe — respondeu Vaelis, erguendo as mãos em rendição fingida. — Só quis lembrá-los de algo importante: até o nosso chato favorito também está sob efeito do medalhão. Caso não tenham notado. 

O grupo ainda seguia pelos arredores dos muros, onde as vias largas se abriam como grandes anéis que cercavam a cidade. Ali, as estradas eram projetadas para permitir o tráfego constante de carruagens — largas o suficiente para que três delas passassem lado a lado sem dificuldade. O barulho dos cascos sobre a pedra se misturava ao burburinho da multidão, vendedores ambulantes anunciando suas mercadorias e o cheiro de especiarias, suor e fumaça de forja pairando no ar. 

Apesar da tentação de adentrar as ruas estreitas que levavam ao coração da cidade, a carruagem do grupo não podia atravessar por elas; ficava-lhes apenas o caminho exterior, circulando próximo às muralhas. 

— O que estamos fazendo? — perguntou Xin, a expressão curiosa e os olhos atentos, como se cada detalhe fosse um convite à descoberta. Ela parecia inquieta, quase tentada a saltar e explorar sozinha os labirintos de pedra dourada. 

— Queremos um estábulo especial — respondeu Fox, cruzando os braços com firmeza. — Não podemos simplesmente deixar nossas montarias elementais em qualquer lugar. Infelizmente, não poderemos ficar junto de Kaji... exceto se... 

Ele parou de repente. O olhar endurecido suavizou-se por um instante, como se uma ideia tivesse lhe atravessado a mente com a força de uma faísca. 

— Nolan, onde posso encontrar uma loja de artefatos arcanos e mágicos? — perguntou, repentinamente animado. 

O mago, ainda ocupado em vigiar a multidão com desconfiança, ergueu uma sobrancelha. 

— Siga os pisos azulados. 

— Obrigado. Você cuida do resto, não cuida? — Fox não esperou resposta. Saltou da carruagem com agilidade, quase desaparecendo no mesmo instante ao se misturar ao fluxo de pessoas. A voz dele ecoou enquanto corria entre a multidão: — Me esperem no estábulo! 

Nolan bufou, puxando as rédeas com força e sacudindo a cabeça. 

— O que será agora? — resmungou, ainda que seu tom carregasse mais resignação do que real surpresa. 

Anastasia, que aproveitava o espaço recém-aberto para se ajeitar melhor no assento, inclinou-se para a frente, curiosa: 

— Senhor Nolan? Poderia me explicar como funciona sua cidade? 

O mago virou-se lentamente para ela, os olhos semicerrados. 

— “Minha cidade”? — repetiu, desconfiado. A lembrança recente do metamorfo, do caos que quase custara sua vida e de como sua identidade fora comprometida voltou-lhe à mente como uma sombra sufocante. Os dedos se moveram discretamente em direção a um dos pergaminhos guardados sob sua túnica, pronto para conjurar uma magia de proteção se necessário. — Sabe que eu sou o Governador? 

A garota manteve-se calma, com a cabeça levemente inclinada, como quem pondera cada detalhe. 

— Nolan não é o nome do Governador de Cenara? — disse com naturalidade. — E, considerando que você usa um medalhão para ocultar sua verdadeira identidade... apenas deduzi o restante. 

Houve um breve silêncio. O mago inspirou fundo, lutando contra o ímpeto de reagir de forma mais dura. Por fim, suspirou, abaixando a cabeça em rendição. 

— Droga... todos vocês são uns boca-abertas! Não conseguem manter descrição nenhuma? — resmungou, mais para si do que para o grupo. 

Anastasia, porém, não desviou o olhar. Esperava pacientemente pela explicação, o que forçou Nolan a ceder. 

— Está bem, está bem... — disse por fim, cedendo ao peso do silêncio. — É simples. As cores dos pisos levam a lugares específicos. Azul: magia e arcano. Verde: comida e itens pessoais. Vermelho: ferramentas, armas e armaduras. E Amarelo: hospedaria. 

Takashi franziu a testa, olhando ao redor. 

— Mas o piso da cidade toda é amarelo. 

— Justamente — Nolan sorriu de lado, como quem aprecia a surpresa nos outros. — Isso significa que qualquer casa que não se destaque pelo azul, verde ou vermelho é uma hospedagem. 

Zhen, curioso, ergueu a voz: 

— Mas... e os moradores locais? Onde vivem? 

— Todas as casas — respondeu Nolan, com a calma de quem já repetira aquilo inúmeras vezes —, possuem ao menos um ou dois quartos para alugar. Essa é a principal fonte de renda da cidade. O imposto recolhido pelos produtos e hóspedes vai direto para a Capital. 

— E para aqueles que não conseguem alugar? Como sobrevivem? — perguntou Gurok, cruzando os braços com expressão séria. 

O mago virou-se para ele, claramente impaciente. 

— Talvez vocês não entendam muito bem como funciona o sistema econômico do Império... não deviam ter aprendido isso na escola? 

O silêncio caiu pesado entre eles. Um a um, os olhares se encontraram, e a troca de expressões dizia tudo: a maioria do grupo nunca tivera acesso à educação formal. 

Somente Kenshiro, que em sua juventude passara por uma academia, conhecia a fundo conceitos de política, estratégia e economia. Os demais haviam aprendido o que podiam — alguns com mestres ocasionais, outros apenas pela experiência crua da vida. 

Nolan, percebendo que não valia a pena prosseguir, agradeceu mentalmente aos céus quando finalmente avistou, entre arcos de pedra e correntes de ferro, o estábulo que buscava. 

— Cadete, faça-me um favor e explique esses conceitos no meu lugar — disse ele, já descendo da carruagem e indo ao encontro dos donos do estábulo. 

O grupo saltou junto, formando um círculo natural ao redor de Kenshiro. Todos voltaram-se para ele, como se a simples presença do espadachim fosse suficiente para iluminar dúvidas tão densas. Kenshiro, respirando fundo, ajeitou a postura e começou sua explicação. 

O espadachim, embora não se sentisse desconfortável em oferecer explicações — não importava quantos o estivessem ouvindo —, não pôde evitar a estranheza da situação. Estava acostumado a ser aquele que escutava, não quem expunha teorias e discursos.

Durante os tempos de academia, era quase sempre sua falecida amiga quem assumia essa função. Ela explicava, ele absorvia. Agora, cabia-lhe preencher o silêncio e repassar o que aprendera, ainda que não fosse dotado da mesma clareza didática dela. 

Respirou fundo, ajeitou-se contra a parede fria da muralha e fechou os olhos. Cruzou os braços, como se esse gesto lhe desse a firmeza de que precisava, e começou a falar, deixando as lembranças de antigos professores ecoarem em sua mente. 

— Existem algumas cidades que são importantes demais para o Império deixá-las por conta própria — iniciou com voz pausada, quase cerimonial. — Ainda que todas recebam uma determinada fatia dos lucros gerais para manter seus exércitos e bancar seus próprios investimentos, cidades como Cenara sempre recebem mais do que as outras. 

Abriu lentamente os olhos, encarando o vazio à frente, como se buscasse nas sombras a memória exata de uma lição. 

— Não apenas por gerarem lucros exorbitantes para o Império, mas porque são cidades que não podem, em hipótese alguma, enfrentar crises. Se Cenara sofrer prejuízos constantes, não levará muito tempo até que todo o comércio imperial desabe como um castelo de cartas. 

Houve um silêncio breve, no qual apenas o som abafado da rua, e os passos daqueles que por ali passavam podiam ser ouvidos. Kenshiro manteve a posição ereta, lembrando-se de professores que caminhavam entre colunas, declamando fórmulas e estratégias. 

— Mesmo que seja necessário o Império injetar mais recursos em Cenara do que recebe em retorno, eles não têm escolha. É semelhante a manter uma cidade de fronteira abastecida de tropas e suprimentos; não o fazer poderia gerar consequências catastróficas, tanto imediatas quanto prolongadas. 

Sua voz se tornou mais grave, carregada de lembrança amarga: 

— Foi exatamente esse erro que custou as fronteiras com os Remanescentes. Acreditaram que um ataque era impossível. O resultado: inúmeras cidades e vilas foram devastadas. Até hoje, as fronteiras não se recuperaram. 

As palavras ainda pairavam no ar quando Nolan entrou, surgindo na soleira da porta no instante em que Kenshiro concluía a explicação. O mago ouviu o suficiente para emenda: 

— E, portanto — disse, como se quisesse tomar para si a continuidade do raciocínio e, ao mesmo tempo, responder à dúvida de Gurok —, Cenara recebe dinheiro suficiente para alugar todos os quartos da cidade por exatamente um mês. Assim, nossos cidadãos não morrem de fome, pois recebem uma quantia mínima, e, caso decidam alugar seus quartos, podem garantir uma renda extra. 

Kenshiro arqueou levemente a sobrancelha e descruzou os braços. 

— Não é um estilo de economia convencional. O Império geralmente não se preocupa com o bem-estar de seus cidadãos, apenas com os impostos que recolhe. 

Nolan franziu o cenho, sua voz se elevando com uma indignação mal contida: 

— Não me compare com outros governadores! O imposto que cobro é exigência do próprio Império. Mas em troca lutei por direitos que antes eles não tinham. 

Kenshiro o observou por alguns instantes em silêncio, como quem estudava uma peça de xadrez antes de movê-la. Sua resposta, seca, veio como uma lâmina. 

— Esse privilégio não vem de você, mas da cidade. Tem certeza de que o metamorfo não é, na verdade, um agente imperial tentando substituí-lo? 

O golpe verbal surtiu efeito.

Por um instante, Nolan ficou imóvel, como se o chão tivesse se aberto sob seus pés. A ideia de uma conspiração interna, de uma traição planejada com aval do próprio Império, pesou sobre sua mente como uma sombra. Seus lábios tremeram, e a preocupação com sua família deu lugar a algo mais profundo: o medo de ser descartado. 

Kenshiro percebeu o impacto de suas palavras tarde demais. Surpreso, descruzou os braços e se afastou da parede, tentando suavizar o peso da provocação. 

Foi então que uma voz cortou a tensão. 

— Finalmente encontrei vocês! — anunciou Fox, entrando com passos largos e despreocupados. — O que está acontecendo? 

Nolan endireitou-se, afastando a paranoia com um gesto brusco, como quem espanta uma mosca invisível. 

— Nada — respondeu rápido, mudando de assunto. — O que você trouxe? 

Um sorriso se abriu no rosto de Fox enquanto ele puxava algo de baixo da manta que carregava. Ergueu o objeto com orgulho, exibindo-o como um troféu. 

— Isto! 

Era uma pequena lamparina rústica, do tipo que se poderia encher com vagalumes e prender à cintura. Seu metal estava gasto, o vidro arranhado, mas Fox a apresentava como se fosse uma relíquia valiosa. 

Nolan suspirou fundo, já prevendo a decepção. 

— E quanto isso custou? 

Fox encolheu os ombros e respondeu com um sorriso ainda mais aberto: 

— Quatro mil e quinhentas. 

Por um instante, o silêncio reinou. Todos se entreolharam, e, como se partilhassem o mesmo pensamento, deixaram escapar a resposta em uníssono: 

— Você é um idiota. 

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