Volume 2 – Arco 8
Capítulo 78: Vislumbre
As estrelas jaziam imóveis no firmamento, como joias esquecidas em um cofre de veludo negro. No entanto, sobre Cenara, sua beleza estava apagada, quase invisível, engolida pelo brilho constante das centenas de luminárias que serpenteavam as ruas da cidade. Um clarão artificial que, embora servisse como símbolo de ordem e vigilância, tornava o céu noturno pálido, vazio de mistério.
Era uma contradição evidente: manter as ruas iluminadas quando o toque de recolher havia sido imposto. Mas fazia parte da estratégia imperial. Com a claridade constante, qualquer silhueta em movimento denunciava-se de imediato, fosse ladrão, espião, desertor ou apenas um infeliz em busca de refúgio. Apenas duas justificativas podiam manter alguém fora de casa àquela hora: era um alvo a ser eliminado ou possuía a permissão dos guardas.
Os apaixonados, que sonhavam com encontros secretos sob a proteção da escuridão, estavam condenados a se esconder como criminosos.
Naquela noite em particular, as ruas tinham um silêncio pesado, como de uma cidade abandonada há décadas. Portas trancadas, janelas fechadas, cortinas puxadas. O vento deslizava sobre as pedras e levava consigo um frio úmido que entrava nos ossos. A ausência dos guardas, contudo, era a peça mais estranha desse tabuleiro. Nenhum passo metálico ecoava entre os becos, nenhum tinir de lança, nenhum comando de voz.
Talvez a resposta estivesse diante de todos: a enorme torre de vigia próxima ao portão principal jazia em ruínas. Um amontoado de pedras retorcidas e vigas de ferro partidos, espalhados em todas as direções. Fora atingida por algo que cruzara os céus com tamanha velocidade que nem as sentinelas teriam tempo de soar o alarme; se estivessem em seus postos.
Um ataque? Era a conclusão óbvia.
Uma catapulta, talvez, ou um trabuco lançado do exterior. Mas bastava um olhar além dos muros para dissipar a dúvida: não havia exército, não havia máquinas de cerco, não havia movimento algum no horizonte. O projétil devastador viera do próprio coração da cidade, não de fora dela.
E o mais perturbador: mesmo com a destruição, os gritos e a poeira erguendo-se no ar, as janelas permaneceram fechadas. Nenhum morador ousou espiar, como se estivessem surdos ao caos. E, de fato, estavam.
Um feitiço simples, cruel, estendia-se sobre toda a população. Nenhum som das ruas alcançava os ouvidos dos cidadãos em suas casas. Era uma magia antiga, usada pelo Império sempre que desejava "limpar" as cidades — não apenas de ladrões ou vagabundos, mas também invasores, indesejados, devedores e desertores. Aqueles que maculavam a ideia de uma raça “pura” e perfeita eram arrancados como ervas daninhas em silêncio, sem que as famílias ao lado sequer percebessem.
Essa magia, discreta e eficiente, moldara gerações inteiras de imperiais. Cegos, surdos, condicionados a acreditar que tudo estava em perfeita ordem, mesmo quando o sangue escorria pelas pedras sob seus pés.
E assim permaneceria.
***
Das sombras surgiu uma figura em movimento. Uma mulher corria pela rua principal, sozinha, desprotegida, sem armadura, sem espada, apenas a própria vida sustentando seus passos. O ritmo urgente de suas passadas fazia seu corpo mover-se com naturalidade crua, revelando tanto a beleza quanto a vulnerabilidade de alguém que sabia que não podia parar. Seus cabelos se soltavam como fios dourados ao vento, chicoteando-lhe o rosto.
E não corria em vão.
Atrás dela, a escuridão se movia de forma distinta do vento, como se tivesse vontade própria. Uma sombra, mais veloz do que parecia possível, deslizando de beco em beco, mantendo-a ao alcance. Parecia ser isso que a fazia acelerar, como se a cada esquina estivesse a um passo de ser engolida.
A sombra, então, ganhou contornos. Não era apenas ausência de luz — era um homem. Jovem, ainda que a noite parecesse pesar sobre seus ombros. Suas roupas, outrora nobres, estavam em frangalhos; as tonalidades escuras misturavam-se ao sangue ressecado e à poeira. Mas era seu rosto que traía a verdade: os caninos expostos, finos e letais, cintilavam sob a claridade mágica das ruas.
Um vampiro.
O brilho em seus olhos não era apenas de fome ou ferocidade, mas de pavor. Pavor idêntico ao da jovem que corria à frente. Ambos corriam juntos, embora um parecesse carregar a marca de predador, e a outra a presa.
Naquele instante, Cenara — com suas ruas ordenadas e silentes — tornava-se palco de algo que seus cidadãos jamais saberiam. Um confronto escondido sob a máscara de perfeição que o Império tanto se orgulhava em manter.
— Erina! — gritou Sebastian, a voz embargada pelo alívio e pelo desespero ao mesmo tempo. Finalmente, conseguira alcançá-la.
A jovem cavaleira não se virou. Seus olhos estavam fixos nos escombros da torre destruída, como se cada pedra caída fosse uma lâmina cravada em seu peito. Sem armadura, sem escudo, despida das proteções que sempre a definiam, parecia mais vulnerável do que jamais estivera.
— Erina, me escuta... — insistiu Sebastian, tentando manter o fôlego enquanto a acompanhava. — Precisa... precisa desacelerar um pouco. Está queimando energia rápido demais. Se continuar assim... não vai conseguir...
As palavras morreram na garganta. Ele não teve coragem de terminar a sentença.
As lágrimas já escorriam pelo rosto de Erina. Gotas quentes e silenciosas que se misturavam ao suor, caindo para trás a cada passo frenético. Ela não chorava de fraqueza, mas de negação — como se correr fosse sua última forma de gritar que ainda havia esperança.
Sebastian, por um instante, sentiu-se apenas um espectador, impotente diante da dor dela. Era como assistir um destino já escrito, sem poder arrancar uma única linha do pergaminho cruel. Então, tomou a única decisão possível naquele momento.
— Venha aqui!
Num movimento firme, pegou-a em seus braços. Agradeceu por não precisar carregar o peso da armadura que ela costumava usar. Apertou-a contra o peito e disparou em direção à torre. Suas pernas moviam-se com toda a velocidade que possuíam — e, ainda assim, ele sabia: era mais lento do que ela se estivesse sozinha.
Erina, mesmo sem recorrer ao Impulso, era capaz de superar um corredor humano. Se havia deixado escudo e armadura para trás, era porque calculava cada fôlego, cada resquício de energia, como se soubesse que precisaria de tudo em breve.
Quando chegaram aos escombros, o choque os atravessou. O lugar estava devastado, mas vazio. Nada daquilo que procuravam estava à vista.
Sebastian soltou-a do colo, e ela caiu de joelhos sobre as pedras, as mãos tremendo.
— Ele pode estar apenas soterrado... — disse o vampiro, tentando agarrar-se a qualquer fio de esperança. — Vamos encontrá-lo!
Atirou-se sobre os destroços, afastando pedras menores com a pressa nervosa de quem varre pó com as próprias mãos. Ao lado dele, Erina ergueu blocos imensos de pedra, pedaços da torre que pareciam pesar mais do que seu corpo. Suas unhas quebravam, seus músculos tremiam, mas ela não parava.
A cada segundo perdido, a agonia crescia. A chance de fracasso aumentava como uma sombra sufocante.
— Ele não está aqui! — gritou Erina, a voz embargada, quase infantil. — Eu não consigo... eu não sinto ele! Talvez... talvez tenha caído do outro lado, ou... mais distante!
Já estava pronta para saltar além dos muros quando Sebastian a agarrou pela saia, puxando-a de volta com brutalidade.
— Não, Erina! — rugiu. — Ele está aqui! Temos que continuar procurando...
— Mas... eu não o sinto! — soluçou ela.
— Ele morreu, Erina! — explodiu Sebastian, e dessa vez não conteve as lágrimas. — Seja pelo impacto daquela monstruosidade, seja pela torre que desabou sobre ele... ele morreu!
As pernas da jovem cederam. Caiu de joelhos entre as pedras, o corpo inteiro tremendo. Seus olhos, arregalados, recusavam-se a aceitar o que os ouvidos escutavam.
Sebastian aproximou-se e segurou suas mãos com força.
— Não... não, não, não... — repetia, como se as palavras pudessem refazer a realidade.
— Ele morreu... — sussurrou ela, a voz quebrada.
— Você já fez isso antes — insistiu Sebastian, quase implorando.
— Ele morreu...
— Vai conseguir de novo. Eu sei que vai!
— Meu Kenshiro... morreu...
PAAH!
O som ecoou como um trovão abafado. A mão de Sebastian, vermelha, tremia depois de atingir o rosto dela. As bochechas de Erina queimaram, mas não tanto quanto a vergonha dele por ter chegado a esse ponto.
— Minha Capitã... — disse com um tom firme, quase militar. — Precisa me escutar agora! Você consegue me sentir? — Levou a mão ao peito.
Erina balançou a cabeça, negando. Não havia vida ali, nenhum eco de alma.
— Exatamente! — ele respondeu, voz erguida. — E isso me faz menos vivo? Vai dizer que não existo?!
— Sebastian, não é a mesma coisa...
— Meu coração ainda bate. Minha mente ainda pensa. Mesmo sem uma alma, estou aqui, diante de você! — bradou ele, ajoelhando-se diante dela e forçando-a a encará-lo nos olhos.
— Kenshiro é o homem mais teimoso que já conheci. Voltou dos mortos sem coração e sem cabeça! E você, Erina, vai trazê-lo de volta. Mesmo que tenhamos que juntar pedaço por pedaço de seu corpo, ele voltará!
Os olhos dela vacilaram, marejados, como se quisessem acreditar.
— Como... você pode ter tanta certeza...?
Sebastian cerrou os punhos, voltando a cavar os escombros.
— Talvez eu não tenha alma, mas aprendi a reconhecer uma. E a de vocês dois é única. São almas gêmeas, Erina. Kenshiro só vai partir quando você se for. Então, se não quiser trazê-lo de volta... — fitou-a com dureza — recomendo que se mate.
O vampiro não ousou acrescentar mais nada. Fechou os olhos e continuou a afastar pedras, torcendo, rezando por algo em que ele mesmo não acreditava por completo.
Então ouviu o som.
O arrastar de rochas, um grunhido feroz, músculos se contraindo. Quando abriu os olhos, viu Erina erguendo um enorme bloco de pedra, com os dentes cerrados e o corpo inteiro em esforço.
Ela voltara a procurar. Voltava a acreditar.
E, com isso, Sebastian permitiu-se respirar outra vez.
Pouco tempo depois…
— Sebastian! Eu o encontrei!
O grito desesperado ecoou pelos escombros, trazendo um instante de esperança. Entre pedras quebradas e vigas retorcidas, retiraram o corpo de Kenshiro, com todo o cuidado possível. O som dos destroços arrastados ainda reverberava em seus ouvidos, como se cada fragmento carregasse o peso da tragédia.
Tentaram limpá-lo como podiam, afastando a poeira, o sangue coagulado e os estilhaços que se prendiam às suas feridas. Não podiam permitir que restos de sujeira penetrassem em seu corpo quando a cura fosse realizada. Mas, conforme os olhares pousavam sobre ele, tornava-se impossível negar a extensão do desastre.
Grande parte dos ossos estavam quebrados; as pernas e braços pendiam em ângulos impossíveis. Sua carne fora rasgada e deformada pelo impacto, e até mesmo o rosto — outrora firme e severo — encontrava-se irreconhecível. Erina precisou cobri-lo com uma toalha improvisada para suportar olhar para o homem que amava.
E a verdade pesava, esmagadora. Kenshiro estava morto.
Ao menos, não haviam precisado juntar seus pedaços. Isso, por mais cruel que soasse, já era um alívio.
Erina, com as mãos trêmulas, fechou os olhos.
O ar parecia rarefeito quando a jovem deixou sua energia mágica transbordar. Um brilho esverdeado começou a envolver seu corpo, espalhando-se ao redor em ondas intensas, fortes o bastante para eclipsar a claridade das lâmpadas artificiais das ruas. A aura pulsava como um coração descompassado, cada vez mais densa, mais violenta, mais desesperada.
Toda aquela energia convergiu em um único ponto. Um único corpo.
Quando Erina abriu os olhos, as lágrimas já escorriam em rios incontroláveis.
— Não está funcionando! — O grito rompeu em desespero, sua voz embargada pelo choro. — Droga! Por que não está funcionando?!
— Tente de novo… — disse Sebastian, embora sua voz soasse apagada, quase um sussurro. Não havia firmeza, apenas a fragilidade de quem já não tinha fé.
— Eu… eu estou tentando…
— Pense em como foi da última vez. O que você sentiu. Suas preces, seu coração. Qualquer coisa.
Àquela altura, Sebastian já não falava como soldado ou companheiro, mas como alguém que, contra a razão, torcia por um milagre.
Erina hesitou, os lábios trêmulos. Contra sua própria vontade, retirou o pano que cobria o rosto de Kenshiro. A visão atingiu-a como uma lâmina. Seu corpo estremecia, e as lágrimas pingavam incessantes, caindo sobre o rosto inerte dele.
Ela o segurou contra o peito, enlaçando-o com a fragilidade de quem sabia que aquele abraço talvez fosse o último.
— Perdão por pedir novamente… — sussurrou, falando com o cadáver, como se a alma dele ainda pudesse ouvi-la. — Mas eu preciso de você. Eu não consigo… eu não consigo continuar sem você. Por favor… não me abandone. Eu preciso de você para seguir em frente…
Nenhuma mudança. Nenhum sinal. Apenas o frio corpo em seus braços.
Sebastian fechou os olhos, incapaz de assistir por mais tempo. Seu coração já aceitava a perda, ainda que sangrasse por dentro. Preparava-se para suas próprias preces, um adeus silencioso ao vice-líder que tanto respeitava.
Mas então, uma voz suave, quase como um sussurro de vento, rompeu o luto.
— Não chore, meu amor…
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