Volume 2 – Arco 7

Capítulo 77: Passageira

— O que... o que essa... coisa fez? — perguntou Anastasia, sua voz trêmula misturando confusão e medo. 

— Ele... — disse Soren, ofegante, olhando como se não acreditasse no que via — está manipulando a lava. Era ele o... especialista, afinal... 

Desapontado por não ter conseguido terminar o combate, ao mesmo tempo aliviado pelo pesadelo finalmente ter cessado, Soren deixou seu corpo ceder. As pernas falharam debaixo dele e, antes que batesse contra o chão, Vaelis se adiantou e o segurou pelos ombros, amparando-o com um cuidado que revelava a cumplicidade forjada entre eles durante os anos na AMA. 

Fox retirou lentamente o elmo, deixando que o ar, agora frio, da montanha tocasse sua pele suada. Estava exausto. Seu peito subia e descia em ritmo irregular, cada respiração soando como se puxasse ferro derretido para os pulmões.

O brilho que envolvia sua armadura — aquele fulgor que o tornara semelhante a uma estrela — começava a se apagar, esvaindo-se em faíscas que se dissolviam no ar. A temperatura ao redor voltava ao normal, como se a própria montanha respirasse aliviada. 

— Vocês deveriam ter convocado Kaji desde o início para ajudá-los — disse Fox, sua voz carregada, soando quase como um sermão. — Ainda que tivessem alguma chance de vitória por conta própria, foi uma imprudência desnecessária... 

— Eu o chamei — disse Kenshiro em tom grave. — Mas ele não me escutou... 

As mãos de Kaji tremeram por um instante. O elemental jamais havia deixado de ouvir o chamado de um mestre; sua existência estava atrelada a esse vínculo. Porém, pela primeira vez, não pôde responder. Com Fox, o elo fora imediato, como se sempre tivesse existido. Mas com Kenshiro e os Torison... havia silêncio. Um vazio doloroso que ecoava dentro de si. 

Poderia o vínculo com sua antiga família realmente ter se quebrado a esse ponto? Ou fora apenas substituído, apagado pela força de um novo laço? 

— Eu terminei, senhor — disse Kaji enfim, sua voz indiferente, como se o peso do que pensava tivesse sido enterrado sob camadas de sua própria ignorância. 

Sem olhar para trás, começou a descer a escadaria, passos pesados e silenciosos. Ao passar por seus antigos mestres, podia sentir o julgamento nos olhares deles: dúvida, decepção, talvez até tristeza. Mas não teve coragem de encará-los de volta. 

— Acho que é hora de irmos — disse Fox, recolocando o elmo e embainhando a espada, tentando manter a postura de liderança. 

— Não — interrompeu Zhen, sua voz calma, firme. — Ainda sinto as almas dos moradores de Yollan presas aqui. Não podem ser deixadas nesse estado. Precisam descansar em paz. 

— E você sabe como fazer isso? — perguntou Anastasia, esperançosa e insegura. 

— Sim. Mas vou precisar de sua ajuda. 

Ninguém contestou. Todos se calaram e decidiram aguardar. 

— Sinto muito, mas vocês devem ir descendo a escadaria — continuou Zhen, sentando-se no chão, assumindo uma postura de meditação. — Apenas aqueles que tinham laços diretos com essas almas podem permanecer. 

— E quanto a você? — perguntou Xin, arqueando a sobrancelha. 

— Sou um monge. Ter vínculo com almas alheias, com a vida e a morte, é a essência do meu caminho. 

Um a um, o grupo começou a partir, sem saber o quanto tempo o ritual levaria. Vaelis passou Soren para os braços de Erina; a cavaleira era mais forte para carregá-lo com segurança. 

— Tente não demorar — disse Fox, sendo o último a se afastar, antes de sumir na descida. 

O silêncio caiu pesado. Apenas o som distante do borbulhar da lava preenchia o ambiente. 

Zhen respirou fundo, ajustando a postura. Com um gesto sereno, estendeu a mão para Anastasia, que permanecia hesitante em pé. 

— Por favor, sente-se ao meu lado. Vamos começar. 

— Eu... não sei se isso vai funcionar — confessou Anastasia, sua voz carregada de nervosismo. — Nunca fiz nada assim. 

— Não se preocupe. Na verdade, não preciso de sua ajuda no ritual em si. Apenas queria que tivesse a oportunidade de se despedir. 

As palavras trouxeram um alívio imediato à jovem, como se o peso de não ser capaz de cumprir algo tão delicado tivesse se dissolvido. Ela se ajoelhou diante do monge, colocando-se à sua frente. 

— Obrigada... é verdadeiramente um homem gentil. 

— Feche os olhos, se quiser. Consegue senti-los? 

Anastasia respirou fundo e obedeceu. Silêncio. Apenas o vento leve que soprava das encostas do vulcão. Então, como um sussurro dentro do coração, ela sentiu. 

— Sim... não é físico, mas... é como se estivessem aqui, olhando para mim. 

— Então fale com eles. Despeça-se. As palavras não são para que eles lembrem, mas para aliviar a sua própria alma. 

Hesitou. Os lábios tremiam. Mas finalmente encontrou coragem. 

— Eu... sinto muito por não ter estado com vocês quando tudo aconteceu. Eu queria... eu queria ter evitado, mas não consegui... me desculpem... 

O silêncio permaneceu, mas era um silêncio diferente. Mais leve. 

— Terminei — disse ela, abrindo os olhos, ainda úmidos. 

— Tem certeza? 

— Não. Mas... não tenho mais nada a dizer. 

— Está bem. 

CLAP! 

Zhen juntou as mãos em prece, fechando os olhos. 

— Aos que aqui pereceram, injustiçados por uma morte cruel, eu vos digo: o elo de vocês com este mundo já se rompeu. O culpado foi vencido, a justiça foi feita. Ninguém mais virá prestar homenagens ou visitas. Sigam em frente. Para o paraíso, a reencarnação, ou o vazio. Seja o que acreditarem ser a próxima etapa. 

CLAP! CLAP! CLAP! 

O som ecoou pelas pedras da montanha. Anastasia sentiu a mudança no ar, como se a melancolia tivesse sido arrancada de seu peito. A atmosfera parecia mais clara, como um peso que finalmente se desfazia. 

Quando Zhen abriu os olhos, eles já não possuíam aquele brilho espiritual intenso. Eram comuns, humanos, cansados. 

— Para onde eles foram? — perguntou Anastasia, uma fagulha de esperança em sua voz. 

— Não pense sobre isso — respondeu Zhen, levantando-se e oferecendo-lhe a mão. — Você ainda tem uma vida inteira. Quando chegar a sua hora, vai descobrir. 

Ela aceitou a ajuda, e juntos caminharam até a escadaria. 

— Seus olhos... eles mudaram. 

— Não apenas os olhos. Minha força também diminuiu. Minha sabedoria... parte dela se foi com o ritual. 

— Mas ainda assim... continua sendo um homem gentil — disse Anastasia, segurando sua mão com delicadeza. — Obrigada pelo que fez lá em cima. Onde aprendeu aquilo? 

Zhen corou levemente, constrangido. Não havia motivo para esconder sua origem, mas também não sabia como responder sem parecer pretensioso. 

Ah... na verdade... 

— Vocês dois vão ficar trocando confidências ou vão vir logo para a carruagem? — interrompeu Xin, de braços cruzados e expressão severa. 

— Me desculpe! — disse Anastasia rapidamente, soltando a mão de Zhen e se curvando em sinal de respeito. — Eu não tinha visto você aí! 

— Tenho certeza disso — resmungou Xin, subindo alguns degraus. — Agora, por favor. 

Somente quando Anastasia começou a caminhar é que Xin relaxou a postura. 

Zhen, prestes a perguntar por que sua companheira parecia tão rígida, foi interrompido pelo simples gesto de Xin começar a descer as escadas sem sequer olhar para trás. 

Sem alternativas, o monge suspirou e a acompanhou em silêncio. 

(...) 

De volta à carruagem. 

O ranger das rodas sobre o solo irregular se misturava ao trote firme dos cavalos. Kaji a estava colocando de volta à estrada, enquanto os demais conversavam.

Havia uma sensação de alívio no ar: todos estavam juntos novamente, e a jovem sobrevivente agora repousava em segurança entre eles. 

No caminho de volta, Zhen e Xin se encarregaram de contar, em detalhes, tudo o que havia acontecido na taverna abandonada. Relataram os sons estranhos, a fumaça que crescia no horizonte e, por fim, apresentaram a moça de cabelos escuros e olhos marejados. 

— Este é Anastasia — anunciou Zhen, com um gesto simples da mão. — Sobreviveu ao ataque, mas perdeu todos os outros. 

Ela se curvou educadamente, demonstrando um respeito sincero que contrastava com a fragilidade estampada em seu rosto. 

— É um prazer conhecê-los — disse com a voz trêmula, carregada de esforço para soar firme. Seu olhar percorreu cada um deles, como se tentasse catalogar rostos e figuras que pareciam saídos de um conto. — Se me permitem dizer... nunca vi um grupo como o de vocês antes. Um elemental... um herói imperial... um orc, um elfo, magos, e até um monge — Um leve sorriso surgiu, tímido, quase infantil. — Como vocês acabaram juntos, afinal? 

Houve um breve silêncio, como se a pergunta pairasse sobre todos e, de certa forma, expusesse mais do que gostariam. Alguns desviaram o olhar; outros apenas mantiveram-se quietos, cada qual imerso em suas próprias lembranças da jornada. 

Foi então que Fox pigarreou. 

Aham — Chamou a atenção de forma seca, o tom de quem desejava encerrar o assunto antes mesmo que começasse. — Senhorita, por favor, venha sentar-se na frente. Procuramos chegar a Cenara o mais rápido possível. 

Anastasia hesitou por um instante, como se ainda tivesse esperança de ouvir uma resposta ou uma história. Mas, diante da seriedade do pedido, apenas inclinou a cabeça em silêncio. O desapontamento se refletia em seus olhos, não ousou protestar. Não podia exigir nada, não depois de ter sido resgatada.

Ela se levantou, ajeitou a saia simples e seguiu para a parte dianteira da carruagem, acomodando-se ao lado do Herói do Povo. O vento frio tocava-lhe o rosto, afastando as lágrimas que teimavam em voltar. 

De volta em movimento, retornou o silêncio.

O ranger das rodas voltou a ser a trilha única da viagem, acompanhado, de vez em quando, pelo resfolegar dos cavalos. 

Ainda assim, o clima era estranho. A sensação era de que aquela breve parada havia sido um desvio, um momento desconexo, quase sem propósito. A maioria compartilhava da mesma impressão: uma ação necessária, mas que deixava um gosto amargo, como se tivessem dado um passo fora do caminho que realmente importava. 

Exceto para alguns. 

Para Zhen, havia algo na determinação da jovem que o fez refletir sobre a própria sobrevivência. Para Xin, a dor silenciosa da moça era um espelho cruel de perdas passadas.

E assim, a carruagem seguia adiante, carregando corpos cansados, corações inquietos e perguntas não respondidas — na direção de um destino que se tornava cada vez mais inevitável. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora