Volume 2 – Arco 7

Capítulo 73: Companheiros

— Está bem! — disse Fox, tomando a dianteira e erguendo uma das mãos para sinalizar ao grupo que o seguisse. — Tampem os narizes, se necessário. O cheiro de enxofre é capaz de virar o estômago até de um guerreiro acostumado ao campo de batalha.  

A advertência era verdadeira. O ar ali já não era o mesmo que o da base do vulcão; mais pesado, mais denso, como se fosse tecido por partículas invisíveis que queimavam suavemente a garganta a cada respiração.  

Com Fox guiando a marcha firme, a dupla de magos encontrou tempo e espaço para se aproximar de Erina e Kenshiro, que caminhavam lado a lado. O clima, apesar da preocupação latente com a vila desaparecida, acabou abrindo margem para um diálogo inesperado.  

— É verdade... — começou Vaelis, inclinando a cabeça com curiosidade genuína —, que você é uma Waltz?  

Erina hesitou por um instante, não porque tivesse vergonha, porque a pergunta a puxava de volta a memórias que nunca conseguia deixar totalmente enterradas.

Ainda assim, respondeu com firmeza: — Sim. É sim.  

— Os verdadeiros? — acrescentou Soren, de maneira quase tímida, como se estivesse ousando atravessar uma barreira invisível. — A linhagem do próprio Vitar?  

— “Vitar”? — repetiu Erina, curiosa.

— Vitar foi o criador dessa vertente. — Orgulhosa, Vaelis assumiu a explicação, com a voz carregada em tom didático que lhe era natural. — Tal qual Tesla, Froster e Ignar foram de seus elementos. Os nomes desses pioneiros se tornaram, ao mesmo tempo, títulos de respeito e uma forma de nos categorizar. Carregamos esses nomes para honrar suas criações, e também para que ninguém esqueça suas descobertas.  

— Então meu nome seria... Erina Vitar? — arriscou ela, como se experimentasse uma identidade estranha em sua própria boca.  

Vaelis riu levemente e balançou a cabeça.  

— Não, não. Apenas se tivesse se tornado parte da Academia. O nome é um título que se conquista, não um fardo que se recebe.  

— E se sua família não tivesse partido... — murmurou Soren, quase como se não tivesse percebido que estava pensando em voz alta.  

Erina imediatamente ergueu o olhar.  

— “Partido”? O que houve? — perguntou, agora interessada de verdade.  

Vaelis suspirou, percebendo que não havia como escapar da explicação.  

— Não sei os detalhes — disse com honestidade. — Mas logo após a Academia chegar ao espaço, Vitar foi um dos primeiros a abandoná-la e a retirar seu código da instituição. Seu nome passou a ser considerado quase um insulto por gerações. Ainda assim, sua importância era tão imensa que não pudemos apagá-lo dos registros.  

— Sua família mudou o nome para Waltz. — Prosseguiu Soren, aproveitando a pausa de sua amiga para tentar interagir mais. — Reconquistaram prestígio, renome, fama... mas sempre em ciclos. Apareciam com força e depois desapareciam como uma chama instável.  

— Seu pai, em especial, brilhou como poucos. —Acrescentou Vaelis. — Até nós, da Academia, recebíamos notícias de seus feitos. Mas então, vocês sumiram novamente.  

— Até encontrarmos você em Shenxi... — concluiu Soren, sem ousar encará-la diretamente.  

A pergunta ficou suspensa no ar. O silêncio que se seguiu pareceu exigir uma resposta.  

Erina sentiu o peso da memória escorrer por suas costas. Parte dela queria calar-se, manter o que era íntimo selado. Mas outra parte, a que desejava manter Vaelis e Soren próximos como aliados confiáveis, decidiu se abrir — ao menos em parte.  

— Minha família foi traída pelos próprios guardas. — A voz dela saiu firme, mas seus olhos revelavam a dor. — Queriam nos vender, escravizar, não importa. Mataram minha mãe e... e meu pai. Eu fui a única a restar.  

Soren arregalou os olhos. Vaelis, por sua vez, estreitou-os em concentração.  

— Mas... como escapou? — perguntou ele.  

— Eu não escapei. — Erina desviou o olhar. — Eles não queriam a mim. Queriam meu pai vivo.  

A contradição ficou no ar, e os dois magos se entreolharam confusos.  

— Mas... você disse que ele morreu... — insistiu Vaelis.  

A dificuldade de contar sua própria história caiu sobre ela como um peso que sufocava. Antes que pudesse tropeçar mais nas palavras, Kenshiro interveio, com um tom firme e protetor:  

— O que vocês precisam saber é simples: Erina sobreviveu. Foi encontrada pelo meu tio, e desde então dividimos a mesma casa. O resto não importa.  

— E-entendo... — disse Soren, encolhendo os ombros, sentindo-se um intruso.  

O grupo retomou o silêncio. Mas Vaelis, sempre mais ousada, decidiu quebrá-lo de maneira provocativa:  

— Então foi amor à primeira vista? — sorriu de canto, olhando maliciosamente para o casal. — Não os julgo. Imagino Erina linda até mesmo quando criança. E você, Kenshiro... devia ser o único homem disponível para ela.  

— O que está insinuando?! — Virou-se de imediato, ofendido.

Vaelis ergueu as mãos, teatral.  

— Nada. Só que é triste que alguém com a beleza dela tenha se contentado com alguém como você...  

Aproveitou-se da deixa para se inclinar na direção de Erina e sussurrar alto o bastante para todos ouvirem:  

— Ou será que Kenshiro é tão habilidoso assim... com a espada?

O silêncio que seguiu foi quebrado apenas pela vermelhidão que subiu ao rosto do casal. Erina queimava de vergonha, Kenshiro de raiva.  

Soren, coitado, preferiria se jogar na boca do vulcão do que continuar naquela cena.  

Ei, vocês! — disse Fox, ríspido. — Chega de bobagens. Temos companhia.  

No topo do Teyocan, a cratera se abria como a boca de um gigante faminto. O espaço amplo era cercado de marcas e símbolos antigos, gravados na pedra, usados nos rituais de sacrifício. O ar vibrava com uma energia opressora. Não era apenas o calor do magma; era como se incontáveis espíritos de vítimas ainda pairassem ali, observando, exigindo atenção.  

— Como será que Zhen se sentiria num lugar desses? — murmurou Kenshiro, tentando quebrar a estranheza.  

— Ou estaria no auge de sua força... ou completamente vulnerável — respondeu Erina, mantendo os olhos fixos no ambiente. — É difícil prever como um monge reage a energias tão carregadas.  

E então, todos o viram.  

Perto da beira da cratera, exatamente no ponto em que os antigos jogavam suas vítimas, um homem encapuzado entoava palavras antigas, arcanas, em um idioma quase impossível de compreender.  

“O vulkánus poténs sopítus, dómus mílium animárum tíbi oblátarum, prékor ut euíguiles ak uéram tu-am uim uastatrícem revéles. Konsêde ut íllae ánimae liberéntur atke solvántur, ut ígnis túus et magmát-a tu-a per hank térram efundántur. Águe líbere, iúksta uoluntátem tu-am ípsam. ”  

O cântico seguia em círculos, um mantra interminável. A cada repetição, o vulcão parecia estremecer mais, como se estivesse sendo despertado pela evocação. O chão vibrava, e fissuras pequenas liberavam filetes de fumaça e lava.  

Fox estreitou os olhos. Precisava agir. Mas sabia que qualquer erro — atacar o homem, interromper o ritual à força, até mesmo chamar atenção — poderia ser o estopim. O vulcão poderia explodir imediatamente, não apenas ceifando suas vidas, mas também condenando todos os habitantes da misteriosa vila de Yollan.  

Ele teria que decidir sua abordagem com cuidado.

***

Depois do fracasso da conversa que tiveram, Xin e Zhen seguiram lado a lado, cada um preso em seus próprios pensamentos, ambos mantendo o foco na busca por Yollan.  

 A floresta estava cada vez mais silenciosa, os animais tinha de fato abandonado a região diante do perigo iminente do vulcão. O chão úmido exalava o cheiro forte de folhas apodrecidas e fumaça distante.  

Até que...  

— Zhen! — exclamou Xin, apontando para frente.  

— Sim, eu já vi! — respondeu ele, os olhos brilhando com súbito alívio.  

Eles correram até o que parecia uma cerca de madeira recém-erguida. Ao se aproximarem, o quadro da vila revelou-se diante deles.  

Yollan não era uma vila qualquer. O tamanho de suas ruas, o número de casas e a amplitude das construções lembravam Shenxi em escala similar. Suas edificações eram feitas de madeira reforçada e pedra, e haviam sido pintadas em tons marrons e verdes para se camuflarem na floresta, como se toda a comunidade respirasse em sincronia com a natureza. O disfarce era tão eficaz que, não fosse a cerca inacabada, teriam passado direto sem perceber.  

Mas o que mais chamava atenção era o silêncio. Não havia uma única voz, um único passo, nem mesmo o mugido de um animal. O vazio pesava no ar.  

— Onde estão todos? — murmurou Zhen, franzindo a testa.  

— Devem ter ido embora ao perceber o perigo do vulcão — respondeu Xin, tentando racionalizar. — Levaram até os animais consigo...  

Zhen, no entanto, não parecia convencido. Ele fechou os olhos por um instante, inspirando profundamente. Seu peito se expandiu e sua postura mudou, como se todo o seu corpo se tornasse uma antena. O ar da vila estava impregnado de algo denso, invisível, sufocante.  

Ele não precisava de palavras para reconhecer. Era dor.  

Seu espírito reagia com violência àquele lugar. Sentia como se centenas de vozes invisíveis sussurrassem ao seu redor, carregando o peso de lágrimas e memórias interrompidas. A marca do sofrimento estava entranhada nas paredes, nas ruas, no próprio solo.  

Para alguém comum, aquele ar seria apenas estranho. Mas para um sensitivo, era como mergulhar em um rio gelado e sombrio.  

Zhen, que desde o nascimento possuía essa conexão espiritual e a treinara ao extremo junto, sentia cada ferida invisível gravada naquele espaço. Seus olhos assumiram o mesmo tom dourado que os de seu pai, refletindo luz própria.  

A serenidade tomou conta de seu semblante. 

— Xin, não se afaste de mim — Sua voz soava calma e firme, carregada de urgência. 

— O que houve? — perguntou ela, atenta ao menor gesto.  

— Eu não sei ao certo... Mas sinto dor. Lágrimas. E morte.  

As palavras caíram como pedras no peito de Xin.  

Zhen caminhou pela rua deserta, os passos ecoando como tambores em um templo abandonado. O silêncio parecia gritar.  

— Acha que pode ter sido... a Varelith? — arriscou Xin.  

— Difícil dizer — respondeu ele, sem olhar para ela. — Não sinto sua presença diretamente. Mas como ela manipula fantoches, talvez nem mesmo neste estado eu pudesse reconhecê-la.  

— Então as pessoas foram enterradas fora da vila? Como em Shenxi?  

Zhen balançou a cabeça.

— Não... As mortes não ocorreram aqui, diretamente. Eu sinto a morte espalhada por toda a região. É como se o próprio ar estivesse contaminado.  

De repente, ele parou bruscamente e ergueu a mão, sinalizando que Xin permanecesse em alerta.  

Ela o encarou em silêncio, questionando apenas com os olhos.  

Zhen não respondeu. Sua atenção se voltou para uma construção à direita — uma taverna de fachada robusta, mas com portas fechadas e reforçadas por móveis improvisados.  

Sem hesitar, ele concentrou sua energia.  

DOOOM—KRRRRRSHHHH!  

Com um único chute, a porta e as barricadas voaram para dentro, despedaçadas como se fossem feitas de papel. A força do impacto fez a madeira rachar até o teto.  

Xin levou a mão ao chicote, o coração acelerado. Ver Zhen em seu estado elevado era ao mesmo tempo inspirador e assustador — a calma de um monge mesclada à força de um guerreiro.  

— Alguém está aqui — disse ele, a voz grave, sem hostilidade.  

Xin ficou tensa. — Pode ser Varelith...  

— Não. — Ele a acalmou, sem desviar o olhar. — Alguém frágil.  

Passando pela pequena bancada onde os copos ainda estavam alinhados como se aguardassem clientes que nunca voltariam, Zhen abaixou-se diante de um alçapão mal oculto atrás do balcão.  

Sua voz ecoou, firme, sem espaço para dúvidas:  — Sei que está aí embaixo. Saia devagar, com as mãos onde eu possa ver.  

O silêncio respondeu por alguns segundos, pesado, quase desesperador.  

— Se não fizer o que estou mandando, vou ter que tirar você à força.  

— Está bem, está bem... — respondeu uma voz feminina, embargada, próxima ao soluço.  

Criiiaaakkk...  

O alçapão se abriu lentamente, revelando uma jovem mulher. O avental amarrotado e a sujeira nas mãos denunciavam sua função: provavelmente uma garçonete da taverna.  

Ela tremia dos pés à cabeça, ao ver Zhen, a tensão em seus olhos deu lugar a um vislumbre de esperança.  

Zhen ofereceu-lhe a mão com suavidade. Seu sorriso era acolhedor, quase paternal, contrastando com a força destrutiva que exibira segundos antes.  

— Permita-me ajudá-la. — Ele a ergueu com cuidado. — Agora, diga: o que aconteceu aqui?  

A jovem o olhou com os olhos marejados. — Vocês... não estão com ele, estão?  

O tom de pavor na voz dela bastou para que Xin relaxasse. Não era inimiga.  

Mas, ainda assim, algo lhe incomodava. O jeito como a jovem olhava para Zhen, como se fosse um salvador enviado pelos deuses, a deixou desconfortável. Era admiração pura — algo que Xin evitava admitir, mas também começava a sentir.  

Observando-o ali, com os olhos dourados, a postura imponente e a aura de serenidade, Zhen parecia mais do que um monge. Parecia um herói em ascensão, um reflexo do homem que fora seu pai.  

E, talvez, pensou Xin em silêncio, o tempo dos sentimentos negativos entre eles estivesse, de fato, chegando ao fim. 

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