Volume 2 – Arco 7
Capítulo 68: Recusa
Kenshiro despertou.
Não havia som, calor, frio, chão e céu.
Apenas o vazio.
Um branco sem começo nem fim o envolvia por todos os lados, sufocante em sua neutralidade. Ele se ergueu devagar, tateando com os olhos um horizonte inexistente, sentindo como se o próprio conceito de gravidade houvesse se esquecido dele. O espaço onde estava era... nada. Um não-lugar.
Não fazia ideia de como fora parar ali. Tampouco conseguia lembrar o que viera antes. Tudo em sua mente parecia estilhaçado, como vidro sob os pés de alguém que correu para salvar o que não podia ser salvo.
Seus lábios se moveram sem controle: — Onde... onde estou?
Não pensou. Disse.
Essa simples diferença o arrepiou.
A resposta veio antes que ele pudesse concluir o pensamento.
— No “limbo”.
Uma voz — familiar e estranhamente próxima.
Kenshiro se virou instintivamente, como se alguém estivesse bem atrás dele.
E, de fato, estava.
Ou quase.
A figura à sua frente era ele.
Mesmas feições, mesma estatura, mesma roupa. Estava sentada sobre o nada, de pernas cruzadas, observando-o com uma serenidade desconcertante — como se já soubesse cada pergunta que ele faria.
— Quem... quem é você? — perguntou.
— Eu sou você, obviamente — respondeu o reflexo, com um tom paciente. Sem ironia. Sem drama.
A resposta deveria soar absurda, mas não soou.
Era isso que o deixava ainda mais inquieto.
Kenshiro hesitou por um momento, depois se sentou também. Imitou a pose com exatidão, como se seguir o reflexo fosse mais seguro do que ignorá-lo.
— Pela sua calma... — começou — parece que sabe de muitas coisas.
— Não mais do que você. Ou melhor, nós.
O silêncio caiu entre eles como um lençol fino. Mas havia uma tensão quase elétrica ali — uma expectativa.
Kenshiro encarou a si mesmo. Pela primeira vez, conseguia se ver com total clareza.
Nenhum espelho, nenhuma superfície d'água ou o reflexo dos olhos de Erina mostrara seu rosto como agora.
Era... estranho.
Não se via como alguém bonito. Tampouco feio. Era só um homem comum, mais marcado do que gostaria. Mais cansado do que admitia. E, ainda assim... mais real do que jamais havia sido.
— Não vai perguntar nada? — Tentou provocar seu reflexo, em busca de qualquer reação fora da neutralidade.
— Não sou eu quem está cheio de dúvidas e com a cabeça feita em pedaços.
— Você disse que sabemos das mesmas coisas.
— E sabemos. Você só não lembra. Ou prefere não lembrar.
Kenshiro franziu a testa.
— Se eu lembrasse de alguma coisa, adoraria saber.
— Então se esforce um pouco — disse o reflexo, com leveza. — É como tentar lembrar de um sonho.
Kenshiro desviou o olhar, cético.
Por fim tentou.
Deixou os olhos perderem o foco.
Sentiu os pensamentos vagarem como folhas levadas por uma correnteza invisível.
Fechar os olhos, no entanto, era impossível — como se temesse que, ao fazer isso, nunca mais os abriria.
E então... flashes.
Ren. Reiji. Kaji.
Sua família.
Treinamento militar.
Anna. Oliver.
Erina.
A Capital. Gideon. Anna.
Monstros. Professores. Casa. Anna.
Morte. Valéria. Erina.
Fogo. Sangue. O carrasco de Valéria.
A cabana. Paz. O invasor.
As imagens o atropelavam, tão rápidas que mal podiam ser compreendidas. Cada nome, cada lembrança arrancava algo de dentro dele.
E sem aviso, ele sentiu.
A dor.
Mesmo com os olhos desfocados, percebeu a mudança. Suas roupas estavam rasgadas. Um buraco profundo se abria no centro do peito. Sangue nenhum saía, a sensação permanecia real.
E quando sua cabeça se desfez — uma súbita mudança de seu reflexo —, Kenshiro arfou e voltou à “realidade”.
O reflexo, no entanto, voltara ao impecável. Roupas limpas. Corpo intacto. Cabeça no lugar.
— Por que está fazendo isso? — questionou Kenshiro, ofegante.
— Isso o quê?
— Me fazer lembrar. Me mostrar...
— Não fui eu quem forçou nada. Você perguntou. E, além do mais — disse com um meio sorriso —, aqui não há “ar”. Você pode prender a respiração o quanto quiser. Não vai fazer diferença.
Kenshiro encarou seu reflexo receoso. Era estranho confiar em si mesmo. Acreditava que podia estar se pregando uma peça. Entretanto, não encontrava motivos para ser travesso consigo mesmo na situação em que se encontrava.
Não tinha nada a perder.
Obedeceu.
Parou de respirar.
Esperou.
E nada aconteceu.
Sentia o corpo quieto. Inerte. Lúcido. Terrivelmente lúcido.
Depois de um tempo indefinido, falou de novo: — Eu... eu estou morto?
O reflexo não respondeu de imediato.
Apenas o observou.
Estava sorrindo — não com escárnio. Uma espécie de melancolia... ou satisfação.
Kenshiro não sabia o que sentir. A morte era um medo distante, agora que a tinha diante de si...
Sentia algo estranho. Como se, entre o pânico e o desespero, houvesse um espaço escondido de alívio.
Uma trégua.
O reflexo respirou fundo, mesmo sem precisar.
— Ainda não — respondeu.
— Mas eu deveria...
O silêncio se partiu como vidro.
Pela primeira vez, o reflexo hesitou.
A resposta de Kenshiro não era a que ele esperava.
Não se encaixava em nenhum cálculo, não seguia a lógica que Kenshiro tomava em suas ações em vida. Era uma quebra.
— É mais teimoso do que aparenta... ou do que acredita ser — murmurou o reflexo.
Kenshiro se levantou devagar, movido por algo que nem ele sabia nomear.
Não havia para onde ir, e ainda assim, buscou um "nada" diferente.
O vazio o cercava, denso como uma presença. Não existia qualquer característica do espaço. E o tempo ainda era um mistério sem qualquer medição.
O pior era saber que não tinha controle algum.
— Não é teimosia — disse ele, de costas, com a voz baixa. — É fraqueza. Ninguém deveria continuar vivo depois de morrer...
O reflexo se ergueu também, encarando-o com olhos levemente estreitos.
— Então é isso que você acha? Que a vida só vale quando é fácil? Que se aparecer uma parede, você deve simplesmente aceitar o fim?
— Algumas coisas não podem ser vencidas. A morte... é uma delas.
— E ainda assim, você está aqui.
O silêncio caiu de novo, mais pesado.
O reflexo avançou um passo. Enquanto Kenshiro não conseguira afastar nem um.
— A questão não é o que pode ou não ser vencido. É: por que você ainda está aqui?
Kenshiro virou o rosto, encarando-se.
Não respondeu.
— Como você mesmo disse... — murmurou por fim — sou teimoso demais.
O reflexo inclinou a cabeça, estudando-o com atenção renovada.
— Teimosia só é virtude quando existe lógica por trás. Se você a morte é um desejo... por que está aqui?
A pergunta veio firme, direta, sem julgamento.
Kenshiro hesitou. Engoliu seco.
— Eu... eu não sei.
O reflexo suspirou. Pela primeira vez.
— Eu sei que não sabe. Eu também não sei. E, ironicamente, essa deveria ser a minha função, não?
Ambos permaneceram em silêncio, encarando-se, estudando-se. Eram a mesma pessoa, ainda assim, diferentes em seus princípios; ainda que trabalhassem juntos constantemente.
— Talvez... — continuou o reflexo com suavidade — possamos descobrir.
Sentaram-se outra vez, em perfeita sincronia.
— Acho que estou disposto a isso — disse Kenshiro, aliviado.
O reflexo assentiu, quase sorrindo.
— Que bom...
E então — veio a ruptura.
Uma onda invisível explodiu ao redor deles. O espaço, até então estático, começou a girar, torcendo-se em ângulos impossíveis, como se o próprio vazio tivesse se tornado um redemoinho. Kenshiro cambaleou. O chão inexistente tremeu. Era como estar dentro de um terremoto mudo, onde tudo rugia sem som.
— O que está acontecendo?! — gritou ele, levando as mãos aos ouvidos, como se isso pudesse protegê-lo.
— É uma pena — disse o reflexo com pesar. Sua voz permanecia calma, apesar do caos ao redor. — Talvez tenhamos mais tempo... na próxima vez.
— “Próxima vez”? — perguntou Kenshiro, lutando para se manter firme, mesmo sem chão sob os pés.
O reflexo levantou-se, deu um passo para trás, e começou a desaparecer como névoa.
— É claro — respondeu. — Você não esperava morrer só uma vez nessa jornada... esperava?
O mundo se rompeu.
E Kenshiro caiu.
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