Volume 2 – Arco 6
Capítulo 67: Cinzas
O portal se fechou logo atrás deles.
Sabiam, com uma clareza amarga, que não poderiam mais contar com aquele tipo de ajuda.
Ao abrirem os olhos, perceberam que estavam de volta ao cofre.
Os demais membros do grupo já haviam seguido adiante, mas o que encontraram ali os fez parar no primeiro passo.
— O que é isso? — perguntou Erina, assustada.
Havia um balde logo à frente, repleto de uma mistura escura de água e sangue. Ao lado, duas lonas estendidas no chão, também tingidas pelo mesmo vermelho escurecido, agora seco em parte.
— É... eu sei — disse Zhen, com a serenidade de quem se forçou a aceitar algo doloroso. — Foi o melhor que conseguimos. Precisávamos de um lugar onde pudéssemos tratá-los, onde ficassem próximos, seguros… e longe dos olhos dos curiosos.
— Três dias, não é? — murmurou Kenshiro, passando os olhos pelo ambiente, tentando imaginar o que se passara ali. — Não deve ter sido fácil...
— Vocês devem ter sentido muito medo — acrescentou Erina, com um tom mais baixo, como se falasse consigo mesma.
— Nem tanto — respondeu Zhen, com honestidade. — Por alguma razão… irracional, talvez… tínhamos certeza de que vocês iriam despertar. Mas... não aconteceu como esperávamos.
O casal ficou em silêncio. Seus olhares varreram lentamente o cofre, como se tentassem reconstruir os dias que haviam perdido. Três dias de ausência, de fragilidade. Três dias em que suas vidas custaram tantas outras.
Instintivamente, suas mãos se encontraram. As mesmas mãos que permaneceram unidas durante todo aquele tempo.
— Por favor — pediu Zhen, com gentileza —, vamos continuar.
Atravessaram a porta do cofre, que permanecia derretida. Dali chegaram à ampla sala do Governador, onde uma sacada escancarava a vista da cidade abaixo — ou o que restava dela.
Tudo havia sido reduzido a cinzas.
As casas, antes numerosas, eram agora sombras de madeira queimada. O vento já levara a maior parte das pilhas, mas as cinzas pairavam no ar, turvando o céu e cobrindo tudo com um manto cinzento.
Eles hesitaram ao respirar. Não sabiam se o que flutuava era apenas o que restava das construções — ou das pessoas.
Do alto, viram Fox conversando com Kaji. Ambos ainda estavam na ilha, já que a ponte de pedra fora destruída — um esforço para atrasar os inimigos.
Kaji brilhou subitamente em sua armadura. O brilho dourado percorreu seu corpo até que ele se dividiu em fragmentos de luz, moldando-se em uma ponte simples, estreita, mas suficiente.
Logo em seguida, Gurok surgiu, conduzindo lentamente a carruagem pela ponte improvisada.
— Vamos — disse Zhen. — Ou teremos que nadar para acompanhá-los.
O casal nada respondeu. Seguiram em silêncio até deixarem a prefeitura.
Logo notaram que Xin havia ficado para trás.
Ela permanecia imóvel diante de uma pequena pilha de cinzas. Catatônica. Como se sua alma estivesse presa ali.
Erina se aproximou em silêncio, pousando a mão com delicadeza sobre o ombro da amiga.
— Era aqui que ficava a casa da minha tia — murmurou Xin. — Mas... eu não consigo lembrar onde ficava a casa dos meus pais...
Seus olhos buscaram ao redor, como se esperassem que uma das casas ainda estivesse de pé. Como se a memória pudesse reconstruí-las por um milagre.
Takashi também estava por perto, observando à distância. Não queria deixá-la sozinha. Aos poucos, se aproximou de Zhen e Kenshiro.
— Acham mesmo que as pessoas tiveram o mesmo destino das casas? — perguntou ele, num tom hesitante.
— Isso, ou se tornaram Renascidos — respondeu Sebastian, aproximando-se com as mãos às costas. — Os corpos precisam ser tratados com respeito quando morrem. Ou lutam para continuar existindo.
A resposta vinda de um morto-vivo tinha um peso inesperado, fazia sentido.
Erina se ajoelhou diante de Xin e segurou seu rosto com ternura, forçando a amiga a encará-la.
— Xin… olhe para mim. Nós precisamos ir.
Xin não respondeu, seus olhos encontraram os de Erina. E naquele breve contato, mesmo confusa e ferida, ela cedeu. Estendeu a mão. Deixou-se guiar.
Assim, o grupo atravessou a ponte de Kaji em silêncio.
Ninguém comentou nada. Apenas observavam os arredores, mergulhados em suas próprias culpas e reflexões. Todos sabiam — direta ou indiretamente — que as mortes daquelas pessoas estavam ligadas a eles.
Ao chegar ao outro lado, Kaji retomou sua forma original, apenas para se transformar mais uma vez, agora num corcel flamejante, pronto para puxar a carruagem.
Nenhuma adaga os esperava na porta. Nenhuma barreira mágica. Nenhum aviso.
A Passagem estava livre.
— Onde está o Fox? — perguntou Kenshiro, olhando ao redor.
— Ei! — gritou Vaelis, alguns metros adiante. — Vocês vão querer ver isso aqui!
O grupo apressou o passo até alcançar a maga de gelo. Ali, não apenas encontraram Fox e a armadura negra de Erina, se depararam com o destino da população de Shenxi.
Diante deles, estendia-se um vasto cemitério improvisado.
Eram covas simples, rasas, sem lápides, nomes ou qualquer sinal de identidade. Apenas montículos de terra. Um esforço desesperado e silencioso para impedir que voltassem como Renascidos.
Fox permanecia de pé entre as sepulturas, imóvel, o olhar perdido. Nunca em sua vida vira tantas mortes de uma só vez — e aquilo parecia pesar sobre ele com força inédita. Pela primeira vez, compreendia, em sua essência, o tipo de inimigo que enfrentariam.
O grupo se aproximou.
— Onde está Nolan? — perguntou Erina.
— Ele não... teve paciência de esperar vocês — respondeu Fox, sem tirar os olhos das covas. — Seguiu direto pela estrada e pediu que o alcancemos no caminho.
— Por que não o impediu? Ou o repreendeu? — questionou Takashi, num tom mais ríspido.
— Nolan não é meu subordinado — respondeu apenas. Então se virou, caminhando em direção à carruagem. — Levem o tempo que precisarem. Estarei um pouco adiante.
Fox partiu, e um a um os membros do grupo se alinharam em direção às covas.
Reuniram as mãos espalmadas, em gesto de oração, e baixaram as cabeças.
Cada um orou por algo diferente.
Alguns pediam paz aos mortos. Outros, perdão por não terem os salvado. E havia quem jurasse vingança — por todos aqueles que jamais voltariam.
Nenhum deles era religioso. Talvez nem acreditassem que suas palavras seriam ouvidas. Mas rezavam assim mesmo, para aliviar o fardo em suas consciências, nem que fosse por um instante.
Vaelis e Soren também prestaram seus respeitos. Permaneceriam ali até que o primeiro dos veteranos deixasse o lugar.
Gurok, Sebastian e Takashi foram os primeiros a se erguer, satisfeitos com o que haviam dito — ou conseguido suportar. Vaelis e Soren os acompanharam até a carruagem, em silêncio.
Foi então que Xin notou algo.
Erina e Kenshiro ainda estavam ali, imóveis. A prece deles parecia mais longa. Ou talvez suas consciências fossem as mais pesadas.
— Está tudo bem? — perguntou ela, num tom cuidadoso.
— Sim... só preciso de um tempo — respondeu Erina, sem erguer os olhos.
Xin assentiu e começou a se afastar. Zhen, atento, decidiu acompanhá-la.
Quando estavam longe o suficiente do restante do grupo, ela se deteve subitamente.
Virou-se e o encarou com uma expressão dura, carregada de rancor contido.
— Pare com isso.
— Isso o quê? — perguntou Zhen, surpreso, como se só agora notasse que a seguia.
— Isso. Ficar me acompanhando como se eu precisasse de proteção! Eu não quero ser protegida. E com certeza, não quero a sua proteção.
As palavras feriram. Zhen engoliu em seco e deu um passo para trás. Era a resposta que ela queria.
Xin, satisfeita por ele entender o recado, virou-se e continuou seu caminho.
Zhen ficou parado por um instante, depois retomou o passo, agora mantendo uma distância segura.
(...)
— Meu amor — disse Kenshiro com suavidade —, acho que já é a hora.
— Eu sei — respondeu Erina, a voz baixa, contida. — Por favor, vá na frente. Preciso vestir a armadura.
— Não quer minha ajuda?
— Eu consigo sozinha. Vá na frente, para não nos perdermos. Tudo bem?
— Tudo bem...
Kenshiro assentiu, não sem hesitação. Deu alguns passos, afastando-se devagar, como se esperasse que ela o chamasse de volta. Quando a distância aumentou, sentiu o vazio ao seu redor crescer. Sem a presença firme da esposa ao lado, os pensamentos voltaram — pesados, amargos.
Reviu cada palavra dita na AMA. Lembrou-se do tom ríspido, das acusações veladas. Não a culpara diretamente, é verdade, mas o peso da frustração havia recaído sobre ela. E se Erina tivesse entendido tudo errado? E se tivesse absorvido mais do que ele dissera?
Parou. Respirou fundo. Voltou.
Encontrou Erina já vestida, ajoelhada no chão, os ombros tremendo sob o peso da armadura. As lágrimas escorriam em silêncio. Ela não o percebeu se aproximar até que ele a chamou, com uma voz quase sussurrada: — Erina...?
Assustada, tentou limpar o rosto às pressas, como se pudesse apagar a dor com as costas da mão.
— Me desculpa... Eu não queria que me visse assim... — Soluçou, a respiração entrecortada.
Kenshiro ajoelhou-se ao lado dela e a envolveu em um abraço, ainda que o aço da armadura impedisse o contato direto. Era como se Erina tivesse criado uma barreira: não queria consolo, apenas a solitude de sua dor. Kenshiro a conhecia bem demais para respeitar esse muro.
— Não faça isso consigo mesma — disse ele, firme, com ternura. — Não faça isso comigo. Fale comigo. Deixe-me ajudar a carregar isso.
Erina hesitou.
Então, a voz dela saiu frágil, desesperada: — Me diga... por favor... me diga que não teria feito diferença... que mesmo se estivéssemos acordados, o resultado seria o mesmo... Me diga isso...
Ele segurou seu rosto com as mãos, limpando-lhe as lágrimas com os polegares. Seus olhos encontraram os dela, fixos, sinceros, duros.
— Não. Se estivéssemos acordados... todas essas pessoas estariam vivas.
As palavras caíram como pedras. Erina desmoronou mais uma vez, as lágrimas correndo com ainda mais força.
— Não, amor... por favor, isso não...
— Me escuta — interrompeu ele, sua voz agora carregada de força. — É certo sofrer por essas mortes. Não estivemos lá. Não pudemos salvá-los. Mas haverá uma próxima vez. Quando reencontrarmos Varelith, vamos lutar. E vamos vencê-la.
— Como pode ter tanta certeza? — sussurrou Erina, a voz tremendo.
— Eu só sinto — respondeu ele, com convicção. — Você ainda acredita em mim?
Ela assentiu, devagar.
— Nunca mais — prometeu Kenshiro. — Nunca mais deixaremos que uma tragédia assim se repita. Eu sei que você não permitirá.
Aos poucos, o choro foi cedendo lugar ao silêncio. Erina se inclinou, abraçando-o com força. Ele retribuiu, apertando-a contra si, apesar do aço entre eles. Estava aliviado por ter conseguido acalmá-la. Mas por dentro, algo quebrava em silêncio.
Seu rosto mantinha a serenidade — seus olhos revelavam o vazio. Kenshiro sabia que havia errado. Ao descarregar suas frustrações nela, quebrara parte da confiança que Erina depositava em si mesma. E agora, faria o que fosse preciso para reconstruí-la.
Mesmo que isso significasse esconder tudo dentro de si.
Guardaria suas dúvidas. Suas angústias. Suas próprias dores.
Enquanto Erina fosse o pilar do grupo, a muralha diante das adversidades, ele seria o dela. Forte, constante, confiável.
Mas... quem seria o porto seguro de Kenshiro?
Até quando suportaria o peso de sua dor... e da dor daqueles que amava?
E se um dia... esse peso o mudasse?
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