Volume 2 – Arco 6

Prólogo: Primeiro Encontro

Mais uma vez, o sol nascera — indiferente às tragédias do passado, e cego às mortes que viriam no futuro. 

Tolos crentes acreditavam em presságios. Diziam que o “sol vermelho” era um sinal de sangue, guerra ou desgraça. Mal sabiam eles que o astro jamais mudara de cor. O sol sempre foi o mesmo: imutável, impassível, alheio às dores humanas. Iluminava justos e assassinos com o mesmo brilho, sem jamais se importar. 

Assim como ele, um casal — recém-casado — despertava para mais uma manhã em seu paraíso particular.  

Viviam isolados numa região cercada por cordilheiras altas, lembrando o interior de uma cratera esquecida ou o bojo adormecido de um vulcão extinto. A paisagem era selvagem e bruta. Não havia cidades, estradas, minério valioso ou criaturas mágicas por perto. 

Era um refúgio perfeito: desinteressante para exploradores, sem valor para civilizações, difícil demais para os desesperados. Um buraco no mapa, onde a natureza reinava e os nomes humanos se apagavam como poeira. 

No centro daquela cratera solitária, repousava um lago de águas doces e cristalinas. Era ele quem alimentava o solo fértil, atraía animais e sustentava a vida. À sua margem, cercado por altos pinheiros, havia um chalé rústico — a única construção humana no local. Discreto, quase invisível à distância, só se anunciava pela fumaça fina que subia da chaminé. 

Mas nem mesmo isso afugentava os cervos ou as aves que pastavam por ali. Os animais já haviam aprendido: aquele casal caçava com parcimônia, jamais por esporte ou vaidade. Respeitavam o equilíbrio. 

Tinham se instalado ali havia apenas dois meses, embora o chalé fosse mais antigo. Ainda assim, pareciam pertencer ao lugar. A terra os aceitara — e eles, em troca, aceitaram o isolamento. Pretendiam permanecer ali até o fim de seus dias. 

Se não fosse pela chegada daquele homem. 

Aaaaaahhh... — Kenshiro espreguiçou-se com um bocejo longo, os braços abertos como quem quisesse abraçar o mundo. Acordara após um sono profundo de dez horas.  

— Bom dia, meu amor — murmurou Erina, deitada ao lado. Estava acordada há alguns minutos, aproveitando o silêncio para observar o rosto do marido. Ele parecia tão em paz... 

— Bom dia... — respondeu ele com a voz ainda sonolenta. — Dormiu bem? 

— Não tão bem quanto você, pelo visto — sorriu e tocou-lhe a ponta do nariz com o dedo. — Mas, depois de ontem à noite... seria uma decepção se fosse diferente. 

— É mesmo? — Girou o corpo, posicionando-se sobre ela. Começou a beijar seu pescoço devagar, aspirando o perfume da pele com deleite. Sabia onde tocá-la, seu ponto fraco. — Então deixe-me retribuir... 

Desceu sob o cobertor, como quem mergulha num mundo só seu. 

Eram um casal verdadeiramente apaixonado.  

Dois meses de casamento não haviam esfriado a chama; ao contrário, o fogo seguia intenso, ardendo toda noite e reacendendo a cada manhã. Por isso, seus dias sempre começavam um pouco mais tarde. 

Enquanto isso, na cozinha, Kaji já preparava o café da manhã. O servo elemental era muito mais do que sua função primordial: era amigo e guardião.  

Um banquete tomava forma — frutas frescas, pães dourados, carnes defumadas e chá perfumado.  

Sabia quando devia se manter invisível e quando se fazer presente. 

A vida ali era plena. A natureza provia tudo, e Kaji tornava cada refeição uma celebração. 

Estavam terminando de saborear o café doce de Erina quando as chamas do elemental pararam subitamente. 

— Kaji? — chamou Kenshiro, preocupado. — O que foi, amigo? 

— Alguém se aproxima — murmurou. Sua voz, normalmente animada, carregava tensão. 

O casal se entreolhou. Sabiam o que aquilo podia significar. 

Esperavam que seus inimigos os procurassem. Mas não imaginavam que os encontrariam tão cedo. 

Sem hesitar, pegaram suas espadas. Sabiam que não havia armadura no mundo que os salvariam. Saíram para a varanda da frente e esperaram. 

Não levou muito tempo. 

Entre as árvores, surgiu um homem. Alto. Seus cabelos, brancos como neve, balançavam ao vento. Andava com passos pesados, como quem não tem pressa. O que mais chamava atenção era sua espada — gigantesca, quase antinatural —, presa às costas.  

Kenshiro avançou dois passos, instintivamente protegendo a esposa. 

— Senhor? O que faz aqu- 

SKLUUURSH! 

A lâmina já atravessava seu peito. 

A espada não só o perfurou — arrancou-lhe o coração. Foi arremessado para fora do corpo, cravado na ponta da arma como um troféu de guerra. 

Kenshiro olhou para o próprio assassino. O homem o encarava com olhos de um azul cristalino, belos e frios como o céu noturno. 

SHRAKK! 

O segundo golpe separou sua cabeça do corpo.  

O invasor recuou, e com um giro suave da espada, o sangue foi lançado em espiral, manchando o chão e a parede de madeira. 

— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOO!!! — gritou Erina, num urro rasgado, desesperado. 

Ela correu e segurou o corpo do marido antes que ele tocasse o chão. A cabeça, porém, já tombada para o lado, encarando-a com olhos vazios. 

Coração arrancado. Cabeça decepada. 

Não havia cura para aquilo. 

Ela sabia. 

— Demorei muito para encontrar você — disse o homem, a voz calma, quase educada. — Espero que não me desaponte, Erina Waltz. 

Sua voz parecia nobre. Refinada. Mas não havia honra em seus atos. 

— KAJI! — bradou ela, os olhos ainda molhados. — ATENDA AO MEU CHAMADO! 

O invasor se preparava para dar o golpe final, mas então... 

GRRRRRRUUUUUUMMMM! 

Do solo abaixo dele, Kaji irrompeu em fúria, vestindo sua armadura de combate. Surgiu com a força de um terremoto, agarrando o inimigo com os dois braços.

Ao ver Kenshiro morto, Kaji soltou um urro de dor, fazendo as chamas de seu interior romperem o ar com um apito infernal, tão feroz que ecoou pelas montanhas: WOOOOOOOOOOOOOOOO!!! 

Em seguida, um pilar de fogo subiu aos céus. 

As chamas envolveram Kaji e o invasor. Rodopiavam com tanta força que as folhas voavam como cinzas, e o calor fazia as pedras chorarem. 

Mesmo diante do espetáculo piromaníaco, Erina só tinha olhos para o corpo do marido. Ele começava a esfriar. 

— Não... não, não, não... — balbuciava, o rosto encostado ao peito ensanguentado. — Não me abandone... eu não posso... não sem você... 

Abraçou-o com força. Nenhum feitiço foi conjurado. Não tentou curá-lo. Sabia que era inútil. 

Então, uma única lágrima escapou. Verde — impregnada de dor e desejo. Caiu sobre o peito de Kenshiro. 

Tum-tum, tum-tum, tum-tum. 

— Aaahhh... Por que minha cabeça está tão... leve? — murmurou Kenshiro. 

Erina arregalou os olhos. 

— Você... você está bem! — gritou, abraçando-o de novo com mais força. 

Não se perguntou como. Não naquele momento. Só chorava e agradecia. 

— Então é verdade... 

O casal se virou. O invasor ainda estava ali, em pé, apoiado na própria espada, ileso. 

Erina e Kenshiro trocaram um olhar. Pegaram suas espadas. E partiram para matá-lo. 

Pesar. 

Uma aura azul os envolveu. Era o mesmo azul dos olhos do homem. Congelou seus corpos em pleno movimento. 

Ficaram inclinados para frente, prestes a cair, imóveis como estátuas. 

O invasor levantou um dedo, apontando para o céu. 

Lá estava Kaji. Também paralisado. Preso no ar como uma pintura trágica. 

— Agora vocês veem, não? — disse ele. — Não podem me vencer. 

Era verdade. E isso doía mais do que qualquer corte. 

Quando a fúria em seus olhos se tornou resignação, ele fechou os próprios olhos e disse: — Libertar. 

Os corpos do casal relaxaram. Quase caíram. Mas se firmaram. 

— Agora que estamos todos mais calmos... que tal uma conversa? — disse o homem, com leveza desconcertante. 

Seus olhos não eram mais azuis. Se tornaram castanhos escuros. 

Adentrou ao chalé como se fosse o dono. 

Segundos depois, o corpo de Kaji caiu do céu como uma estrela morta. 

O casal se encarou em silêncio. 

Não havia muito o que fazer. Não podiam vencê-lo, tampouco expulsá-lo. O único caminho era suportar sua presença, ouvir o que tinha a dizer... e torcer para que ele não quisesse os enfrentar novamente. 

Kenshiro deu um passo adiante — parou, subitamente. 

Havia pisado em algo macio, úmido. 

Ao olhar para baixo, viu o que restava do seu próprio coração. 

Levou a mão ao peito, instintivamente, e sentiu o pulsar — firme, real. Ainda batia. Com o rosto contorcido, levou a mão ao pescoço... ao lado, sua própria cabeça caída no chão. Os olhos vítreos, fixos no nada. 

Engoliu em seco. Aquilo não era um sonho. 

Não havia palavras para aquela situação. 

Ao entrarem novamente no chalé, foram surpreendidos ao ver que o invasor havia deixado a espada encostada junto à porta. Um gesto simples, mas que carregava arrogância — ou desprezo.  

Ele estava ocupado demais devorando o banquete que Kaji havia preparado. Como uma criança faminta, empilhava o prato com todo tipo de comida, tentando provar tudo ao mesmo tempo. 

Na lareira da sala, Kaji observava em silêncio. Suas chamas dançavam baixas, refletindo um olhar contido, inquieto, desconfortável. 

— Vocês não vão comer? — perguntou, com um sorriso leve, enquanto mastigava. 

— Já comemos — respondeu Kenshiro, ríspido, sem esconder o desdém. 

Erina, por sua vez, mantinha o olhar fixo na espada encostada. Medindo possibilidades. 

— Está pensando em tentar levantá-la? — perguntou, casual. — Boa sorte com isso. 

— Não. Eu só estava observando... 

Ora, não se reprima! Vai lá, tente. 

Erina se aproximou. Relutante, pousou a mão sobre o cabo da espada e tentou erguê-la. 

Nada. 

Franziu o cenho, segurou com ambas as mãos e fez mais força. 

A lâmina sequer se moveu. 

Kenshiro, ainda que discretamente, ficou surpreso. Era raro ver a força de sua esposa falhar. 

— Bem, se não vão comer... ao menos sentem-se à mesa. Tenho assuntos importantes a tratar. 

Sem alternativa, obedeceram. Sentaram-se diante dele. Ainda que o corpo estivesse presente, a mente de ambos permanecia em alerta. 

— Qual de vocês cozinhou? — perguntou entre uma garfada e outra. — Isso aqui... não tem aquele gosto infame dos Servos. 

— Fui eu — respondeu Erina, sem alterar o tom. 

Aha! Uma verdadeira mestre da culinária, senhorita Waltz. E olhe que sou um homem difícil de agradar... 

— Obrigada — respondeu ela, seca. 

Seguiu-se um silêncio constrangedor, quebrado apenas pelo som metálico dos talheres batendo no prato. 

Até mesmo o invasor começou a se incomodar. 

— Mas que clima tenso é esse? — disse, sorrindo com ironia. — Parece até que alguém morreu aqui... 

— Acho que isso realmente aconteceu — respondeu Kenshiro, sarcástico, passando a mão sobre o próprio pescoço. 

O homem parou de comer por um instante. Seu semblante endureceu. 

Ah... é verdade. — Ajeitou-se na cadeira. — Peço desculpas pela minha chegada... pouco gentil. Mas, acreditem, eu precisava testá-los. 

— “Testar”? — Kenshiro cruzou os braços. 

— Permitam-me começar do princípio. Meu nome é Tharion Zeraphin. E, ao contrário do que parece, eu sou um aliado. 

Nenhum dos dois respondeu. Também não o acusaram. Apenas esperaram, tensos. 

— Sei quem vocês são, Kenshiro Torison e Erina Waltz. E sei por que escolheram este fim de mundo para se esconder. Estão fugindo da Sombra que matou Reiji Torison, último patriarca da família, e ex-Melhor Espadachim do Império. 

 “Sombra?”, perguntou-se Erina, desconhecendo o termo. 

— Não leu os jornais imperiais? — Kenshiro inclinou-se à frente. — Eu o matei. Depois, queimei Valéria. Ganhei até um título: Carrasco de Valéria. Viemos para cá porque... queríamos viver uma vida decente. Digna. 

— Acredito na última parte — disse Tharion, calmo. — E, embora reconheça que você seja capaz de vencer seu tio, não acho que tenha escrúpulos para matá-lo. 

— Você não me conhece. 

— Conheço o suficiente. Foi um dos poucos sobreviventes do Incidente dos Descendentes. Treinado pelos Cavaleiros de Camelot. Destacou-se entre os melhores... mas foi o único reprovado. Teve de passar mais tempo sob um treinamento especial, oculto. 

— Sabe o meu histórico. O que tem?   

— Sei também que você poderia ter desviado do meu golpe. Ou bloqueado. Seus olhos acompanharam cada movimento meu. Mas você escolheu proteger sua esposa, mesmo sabendo o risco. 

Kenshiro baixou os olhos. Não respondeu. Não queria fazer a consciência de sua esposa pesar. 

— A culpa foi minha...? — sussurrou Erina. 

Tarde demais. 

— Você não pode culpar seu marido por protegê-la — disse Tharion. — E depois de hoje... ele saberá que não precisará mais se preocupar quanto a isso. 

— O que quer dizer com isso? 

— Suas habilidades curativas são extraordinárias, Erina. Nunca houve registro de um mago capaz de restaurar um corpo sem coração... ou uma cabeça decepada. Mas você... você fez os dois. 

Erina baixou o olhar. Mesmo ela não compreendia como aquilo fora possível. 

— Chega — disse Kenshiro, tentando recuperar o controle. — Você ainda não explicou por que está aqui. 

Tharion sorriu. 

— Quero que vocês retomem com a Jornada. 

O silêncio caiu como uma pedra. Apenas o estalar da lareira ainda se fazia ouvir. 

— Como... sabe dela? — perguntou Kenshiro, lentamente. 

— Eu sei de muitas coisas. Sei que a jornada foi o verdadeiro motivo da morte de Reiji. Ele sabia o propósito dela, suas possíveis consequências. Por isso precisava ser eliminado. 

— E você sabe do que essa jornada se trata? — perguntou Erina, agora inclinada à mesa, olhos firmes. 

— Erina... 

— Sei, sim — respondeu Tharion. — Seja no extremo norte ou no extremo sul... lá estão as respostas que Reiji e Kenzou buscaram até seus últimos dias. 

— Que respostas? — sussurrou ela. 

— Erina! 

— Queriam entender por que sua família viveu escondida; quem foram os primeiros Descendentes; por que o Império guarda tantos segredos; qual a verdadeira razão da guerra contra os Remanescentes; e muito mais. 

— E se fizermos essa jornada... encontraremos essas respostas? 

— Não posso garantir. Mas... 

ERINA! — O grito de Kenshiro finalmente a tirou da linha de pensamento. 

Ela o encarou, assustada. 

— O que está fazendo? — perguntou ele, em voz baixa. — Nós desistimos dessa maldita jornada. Lembra? 

— Eu só queria entender... 

— Isso não é só sobre curiosidade — disse Tharion, olhando para ambos. — Essa jornada pode salvar vidas. Mais do que vocês imaginam. 

— Que os Heróis resolvam isso! — respondeu Kenshiro, seco. — Eu me importo com a gente. Com o que temos aqui. Nada mais. 

— Então você não se importa com a vida das pessoas? — questionou Erina, a voz trêmula. 

— Me importo com você — respondeu ele, sem hesitação. — E só. 

Tharion suspirou. Em silêncio, retirou de sua manta um pergaminho dourado, com inscrições antigas. 

— Talvez... isso o faça reconsiderar. 

— O que é isso? 

— Uma Crônica — respondeu Tharion. — Um artefato antigo, capaz de prever o futuro. E este, em particular, revela o fim dos tempos. 

Ele desenrolou o pergaminho sobre a mesa. 

Fios dourados ergueram-se no ar, flutuando com brilho etéreo. 

A Crônica tomou o espaço. O mundo ao redor desapareceu. Erina e Kenshiro foram tomados pela visão, obrigados a assistir. 

No início, parecia uma lembrança. Depois, um sonho. Mas logo... o sonho se tornou pesadelo. 

A profecia revelou-se o futuro. 

O casal foi pego de surpresa. 

Sem que pudessem reagir, seus corpos foram forçados ao chão, dobrando os joelhos como marionetes quebradas. Vieram mãos esqueléticas, frias como túmulos, puxando-os para baixo — os dedos podres apertavam com firmeza, como se recordassem a própria dor da vida. 

Eram mortos-vivos. Renascidos. 

Mas o mais apavorante não era sua podridão — e sim seus rostos. Cada feição parecia familiar, vagamente reconhecível, como ecos de pessoas há muito esquecidas. Eram lembranças distorcidas, fragmentadas demais para identificar. Ex-colegas? Conhecidos mortos? Não sabiam. E isso tornava tudo pior. 

Eles estavam fracos. Indefesos. Totalmente à mercê daqueles que um dia foram vivos. 

E entre seus algozes, havia um ser que não pertencia nem ao mundo dos vivos, nem dos mortos. 

Ele não tinha rosto. 

Na verdade, não tinha corpo — era uma sombra sem forma, um borrão no tecido da realidade. Uma presença encapuzada por uma manta translúcida, feita de vazio absoluto. A mente tentava compreendê-lo, mas fracassava. O olhar escorregava sobre sua existência como se o universo rejeitasse entendê-lo. 

A única certeza de que estava ali era a coroa que ostentava — uma coroa de espinhos, cravada em sua cabeça invisível. Do nada em que se erguia, pingava um sangue negro como breu, espesso, que corrompia o chão em que tocava. 

A presença dele era um erro. Um desvio da natureza. 

***

A criatura se postou diante de Kenshiro. Mesmo sem olhos, conseguia ver sua alma. Sabia. Sabia o quanto ele amava Erina. Sabia que, se pudesse escolher, sofreria mil tormentos para poupá-la de um arranhão. 

A criatura se curvou levemente — ou talvez tenha apenas se aproximado com sua forma oscilante — e sussurrou, com uma voz que parecia vir de todos os cantos: — Façam picadinho dela... 

O som era como o vento cortando por túneis vazios. 

— Devagar. Façam-na sentir... tudo. 

Os mortos-vivos se voltaram para Erina. 

Ela foi cercada como uma presa encurralada. Antes de desaparecer sob a massa de corpos, olhou para Kenshiro. Seus olhos estavam arregalados, cheios de medo, súplica e dor. Queria chamá-lo, mas sabia que precisaria guardar a voz... para os gritos que viriam. 

— Seu desgraçado! — Kenshiro gritou, se debatendo. — SOLTA ELA! 

Mas os cadáveres o imobilizaram com força. Um deles o arremessou com brutalidade contra o chão. A figura se aproximou, pairando sobre ele. 

E então, os gritos de Erina começaram. 

Rasgaram o ar. Gritos longos, dolorosos, reais. Cada nota como uma lâmina atravessando a mente de Kenshiro. Ele cerrou os olhos. Concentrou-se. Precisava se mover. Precisava salvá-la. 

Mas o corpo não obedecia. 

— És fraco demais — sussurrou a entidade, junto ao seu ouvido. — Não podes fazer nada contra o meu poder. Era melhor ter permanecido ignorante... Agora, por tua tola interferência, Erina pagará o preço. 

Os gritos dela pioraram. 

Kenshiro sentiu as forças o abandonarem. Não estava mais preso, mas não conseguia se levantar. Seu corpo, sua mente, sua alma... estavam quebrados. 

Este era seu castigo. 

***

Na outra ponta daquele inferno, Erina estava diante da criatura. 

Ela respirava com dificuldade, mas não mostrava medo. Havia algo dentro dela — uma fé, talvez — que dizia que aquilo não podia vencê-los. Que nenhum mal duraria para sempre. 

Ela se enganara. 

A sombra materializou uma espada. Um artefato esquecido por qualquer forjador digno: enferrujada, com a lâmina quebrada em vários pontos, lembrando uma serra de tortura. Sua aura era tão venenosa que rachava o ar ao redor. 

Ele ergueu a arma e tentou atingir Erina. 

Mas seu elmo surgiu sozinho. Protegeu-a a tempo. E embora ela não pudesse sorrir, seus olhos brilharam com escárnio. Estava pronta para resistir. 

Então o inimigo mudou de alvo. 

Num único golpe, decapitou Kenshiro, ainda ajoelhado. 

Erina ofegou. Cerrou os olhos com força, e imediatamente canalizou sua magia. 

Trouxe-o de volta. Rapidamente. Cuidadosamente. Sem dor. 

— Não adianta — disse ela, com a voz firme. — Você não pode nos matar. Não pode nos fazer sofrer. 

A figura não respondeu. 

Apenas enfiou a espada no ombro de Kenshiro. 

Desta vez, ele gritou. 

Erina empalideceu. Sua magia seguia funcionando, mas não podia mais remover a dor. 

Satisfeito, o inimigo partiu Kenshiro ao meio, da cabeça ao ventre. 

Ela o trouxe de volta. 

Mais uma vez. 

Kenshiro ainda gritava. 

— Erina... para... — murmurou, entre espasmos. — Eu ainda sinto... sinto ele me cortando... sinto meus órgãos... sangrando... 

Os olhos dela tremeram. Medo. Pânico. Ela sabia: a morte seria mais misericordiosa. 

A figura não hesitou. 

Cortou a cabeça de Kenshiro uma segunda vez — mirando o centro, dividindo o crânio. A massa cinzenta pulsava visível, exposta como carne em um açougue. 

Erina tentou fechar os olhos. 

Mas não conseguiu. 

Perdera o controle do próprio corpo. Era forçada a ver tudo. Cada detalhe. Cada som. 

Ainda que essa não fosse a imagem que queria guardar dos últimos momentos de seu amado... ainda era melhor que deixá-lo naquele ciclo eterno de dor. 

Até que viu algo estranho. 

O corpo dele estava se regenerando. 

— O quê...? — murmurou Kenshiro, atônito. — Me deixe morrer! 

Mas não era ela. 

“Não fui eu!”, quis dizer Erina. 

Não conseguia mais falar. 

Kenshiro começou a gritar de novo. Desta vez, não de dor física, mas mental. 

Seu cérebro fritava dentro do crânio. Seus olhos começaram a sangrar. O corpo se contorcia, convulsionando. A dor ultrapassava os limites da carne. 

A figura observava, impassível. 

Não precisou matá-lo novamente. O próprio corpo falhava. A mente se partia. 

E então... voltou. 

De novo. 

Cada vez, Kenshiro parecia mais destruído, mais esvaziado. A cada renascimento, era como se a figura estivesse apenas reparando o corpo o suficiente para que pudesse morrer outra vez — e sempre, da maneira mais cruel. 

Durante uma das mortes, Kenshiro murmurou algo. 

— Sua... vadia... 

Erina arregalou os olhos. 

— Você... — ele rosnava. — Você escolheu isso.

Kenshiro dizia entre suas mortes.

— Eu falei... falei para a gente... 

— ...abandonar essa maldita jornada! 

“Eu não estou fazendo isso!”, tentou gritar. O som não saiu. 

— Tínhamos uma vida perfeita... 

— ...e você jogou tudo fora! 

— Você escolheu eles... 

— ...e não nós! 

— A culpa é sua. 

— A culpa é SUA. 

— A CULPA É SUA!!! 

E assim, o pesadelo prosseguiu. 

Sem fim. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora