Volume 2 – Arco 6
Capítulo 57: Aliados Ocultos
Ainda estavam desorientados após atravessarem o portal.
Gurok se ajoelhou, apoiando ambas as mãos no chão gélido. O estômago se revirava, lutava para não vomitar ali mesmo. Ao seu lado, Takashi pressionava as têmporas, os olhos semicerrados como se o mundo ao seu redor girasse sem cessar. Zhen cambaleava, usando a parede mais próxima como apoio, tentando não deixar Xin — ainda desacordada — escorregar de seus braços.
A única exceção era Sebastian.
Com uma calma quase desconcertante, o vampiro permanecia de pé, o olhar atento analisando o local ao redor. Não demonstrava qualquer sinal de mal-estar. Seus olhos percorriam cada centímetro da arquitetura que os cercava, e por bons motivos.
O ambiente era grandioso.
As paredes de pedra, compostas por tijolos milenares, erguiam-se com a imponência de uma fortaleza. Os arcos se entrelaçavam em padrões intricados, como se uma aranha colossal tivesse tecido ali sua obra-prima em pedra. O teto, distante e sombrio, ostentava pequenas fontes de luz azulada que pendiam como cristais congelados, lançando uma iluminação fria sobre o cenário, gélida como a indiferença de uma tumba esquecida.
Ignorando os corredores laterais e o teto elevado, à frente deles havia um gramado irregular. As folhas secas cobriam o solo e os arbustos, há muito tempo negligenciados, cresciam para todos os lados, tomando formas selvagens. Era grande, pomposo, lembrando os jardins internos de uma antiga família nobre. Ali, a natureza crescia sem rédeas, mas ainda sustentava certa beleza crua e primitiva.
Era difícil saber onde estavam. A única certeza era que haviam chegado apenas à praça central de... fosse lá o que esse lugar.
No meio do gramado, jaziam duas figuras: Kenshiro Torison e Erina Waltz, ambos inconscientes, os corpos inertes deitados entre a relva desordenada.
Kaji não estava lá.
Nenhuma trilha de brasas. Nenhum rastro de calor. Nenhuma indicação de qual rumo teria seguido.
— Onde é que estamos? — resmungou Gurok, finalmente se levantando, ainda ofegante.
Takashi, recuperando o foco, instintivamente puxou o arco de suas costas e armou uma flecha. Não havia ameaças visíveis, mas os instintos do elfo não costumavam falhar.
— Uma academia — disse Sebastian, sem desviar o olhar da estrutura. — Uma escola antiga, se me permitem supor.
Antes que pudessem questionar, uma voz surgiu do nada.
— Impressionante...
A voz soou como um eco entre as pedras, como se o próprio ambiente a tivesse gerado.
Acima deles, as luzes do teto começaram a piscar. Logo, nuvens escuras se formaram — como se um pedaço do céu tivesse sido arrancado e colado ali, dentro da construção. Um raio despencou do teto, atingindo o chão à frente do grupo. Não houve som. Nenhum trovão, nenhum impacto. Apenas luz e presença.
Do raio surgiu um homem.
Era jovem, vestia uma túnica branca de linho, impecavelmente alinhada. Seu olhar era sereno, quase gentil, e sua presença — embora repentina — não causava pavor, apenas... surpresa.
— Poucos são os que reconhecem tal arquitetura — disse ele, a voz ecoando sem esforço. — Me diga, vampiro... já teve a honra de adentrar em algum exemplar como este?
Sebastian arregalou levemente os olhos. Não esperava ser interpelado diretamente.
— Não — respondeu, após um breve instante. — Não sou tão velho assim. Reconheci pelas descrições em livros.
— Uma pena — murmurou o homem.
— Com licença, garoto— Gurok se adiantou. — Onde estamos?
O jovem voltou-se para o orc com um meio sorriso.
— As respostas virão a tempo, orc. Não se preocupe. — Enquanto falava, seu corpo começou a envelhecer diante deles. Rápido demais para ser natural, mas lento o bastante para ser perturbador. Em segundos, seu rosto assumiu a expressão de um homem de meia-idade, os cabelos tingidos pelos primeiros tons grisalhos. — Por ora, me respondam: o que aconteceu em Shenxi? E com o Herói Budai?
O grupo trocou olhares. A pergunta era direta, e o nome pronunciado fazia o ar pesar.
— Shenxi foi destruída — disse Zhen, colocando Xin no chão com cuidado. — Seus moradores... massacrados. Meu pai, Budai, morreu em um ato de sacrifício.
O homem suspirou. Seu semblante expressava mais decepção do que tristeza.
— Um sacrifício em vão, devo dizer... É claro que ele sabia dos riscos. E mesmo assim, os aceitou. — Ele os observou com olhos de julgamento. — A questão é: o que ele viu em vocês? Por que um Herói tão sábio entregaria sua vida... por desconhecidos?
Silêncio.
Ninguém tinha uma resposta. Talvez nem Budai tivesse.
— Tsc... — O homem desviou o olhar. — Acho que não tenho muita escolha. Terei que acordá-los.
— Você pode fazer isso? — perguntou Takashi, cauteloso, pousando uma mão no ombro do estranho.
— Posso — respondeu, afastando a mão do elfo com um gesto educado, porém firme. — A mulher não será problema. Mas o espadachim... ele ainda pensa que está em combate. Quando acordar, atacará com tudo o que tem.
— Isso é um problema — comentou Gurok, coçando a mandíbula. — Nós o vimos destruir uma floresta inteira sem esforço.
— Não me preocupo com as paredes da academia — disse o homem. — Mas seria uma pena... se danificasse meu jardim.
A frieza de sua fala deixou o grupo desconfortável. Havia um tom de indiferença que incomodava.
— Ora, meu velho, não me diga que me chamou só pra isso!
A nova voz os pegou de surpresa.
Vinha de trás.
Quando se viraram, viram um segundo homem se aproximando — bem mais baixo, com um sorriso largo e postura relaxada. O contraste com o primeiro era gritante: este parecia ter uma energia caótica e brincalhona, um espírito irradiante que se refletia em sua voz e em seus movimentos. Cada passo parecia carregado de uma alegria absurda, como se aquele mundo fosse uma comédia e ele, o único que sabia das piadas.
— Quem é você? — perguntou Sebastian, franzindo o cenho. O tom era analítico, quase frio, tentando decifrá-lo com os olhos.
O homem não respondeu.
Apenas o encarou por longos segundos. Silêncio constrangedor. Em seguida, fez o mesmo com Gurok, depois Takashi, depois Zhen e Xin.
E então sorriu mais largo.
— Hahaha! Que grupo diversificado! Gostei de vocês!
***
Ainda estava presa no pesadelo.
Erina não conseguia escapar da prisão de imagens que se repetiam — seu marido morrendo. Uma, duas, dez vezes. A cada nova execução, um insulto. A cada grito de dor, um olhar de decepção. As palavras de Kenshiro se cravavam nela como lâminas: “A culpa é sua.”
E se fosse mesmo?
A dúvida já havia germinado, agora crescia como uma erva daninha dentro de seu peito. E mesmo sem conseguir falar em voz alta, gritava por dentro, desesperadamente, com o coração em carne viva: "Me desculpa, me desculpa, me desculpa..."
Queria gritar. Queria implorar por perdão. Mas tudo o que conseguia era engasgar em silêncio. Sua mente, antes afiada, agora repetia como um mantra quebrado a culpa que a consumia.
Ela causara aquilo. Toda aquela dor. Toda aquela morte.
E agora teria toda a eternidade para lembrar disso.
***
O homem de estatura baixa, aquele cuja presença parecia mais uma piada do que um presságio, se aproximou do corpo desacordado de Erina. Sentou-se ao seu lado, cruzando as pernas com a leveza de quem estava num piquenique.
O homem mais velho, ajoelhou do outro lado. Esticou as mãos e pousou as pontas dos dedos em cada lado da cabeça dela.
— Pronto — murmurou o baixinho. — Hora de despertar, princesa.
Uma faísca elétrica brilhou por um breve instante entre os dedos do mais velho.
E então...
— ME DESCULPA! — gritou Erina, despertando num sobressalto.
A palavra rasgou sua garganta como se estivesse presa há séculos. Finalmente, libertou-se. Finalmente, pôde dizê-la.
— Opa, opa! Calma aí! — disse o homem pequeno, erguendo as mãos e dando uma risadinha. — A senhorita não fez nada de errado! Relaxa!
Erina piscou algumas vezes. O ar ao seu redor parecia denso, estranho. Os rostos de seus companheiros a rodeavam, mas não faziam sentido imediato. Seu corpo estava frio, mas suava. Sua cabeça latejava, e as imagens do pesadelo ainda teimavam em sobreviver à vigília.
— Erina, está tudo bem? — perguntou Sebastian, ajoelhando-se ao lado dela. Sua voz era baixa, respeitosa, mas preocupada.
— Onde... onde estamos? — perguntou ela, instintivamente levando a mão à cabeça. Tudo dentro de sua mente parecia nebuloso, como se páginas inteiras de sua história tivessem sido arrancadas.
— Senhorita — disse o homem baixo —, recomendo que olhe para o seu marido.
Ao ouvir aquilo, o corpo de Erina se enrijeceu.
Olhou.
Seu coração quase parou.
Kenshiro jazia estirado sobre o solo de pedra. Estava pálido, os olhos fechados, e de seus braços, pernas e até mesmo da boca, escorria sangue. Um líquido escuro, quente e espesso, que pintava o chão abaixo dele com o retrato da tragédia.
— Meu Deus! O que aconteceu?!
Com as mãos tremendo, ajoelhou-se ao lado dele. Instintivamente, sua magia fluiu — uma energia esverdeada brilhou ao redor de suas mãos, envolvendo o corpo de Kenshiro como um lençol invisível.
Mas o sangue não parava.
Ele ainda sangrava.
Erina ergueu o olhar, os olhos brilhando de raiva e desespero.
— Me expliquem agora! — vociferou. — O que aconteceu aqui?!
— Você realmente não se lembra? — perguntou Takashi, franzindo o cenho.
— É comum que portais causem lapsos de memória — explicou o mago, com calma. — Agora, por favor, se afaste... mas mantenha a magia. Irei despertá-lo agora.
Erina olhou ao redor. Os rostos de seus companheiros estavam carregados de tensão, mas nenhum mostrava dúvida. Pelo contrário: havia uma estranha confiança naqueles dois estranhos. E isso a incomodava. Não tanto quanto ver Kenshiro naquele estado.
Respirou fundo. Hesitante, ergueu-se. Seus dedos não pararam de emanar a cura.
— Fiquem atrás das colunas — ordenou o mago, e todos obedeceram, se abrigando nas laterais espessas das paredes de pedra e observando apenas pelas bordas.
Os dois homens pararam diante do corpo do espadachim.
Erina ainda tremia.
— O que eles vão fazer com ele? — perguntou, em tom baixo, tentando controlar o pânico que ressoava em sua voz.
— O mais velho é um mago — disse Sebastian, sem tirar os olhos da cena. — Vai... dar um choque no cérebro do Kenshiro para forçar ele a acordar.
— Um choque? — Erina arregalou os olhos. — Isso é seguro?
— Não — respondeu o vampiro, sem hesitar. — É por isso que você precisa manter a magia ativa.
Erina sentiu o sangue esquentar.
De novo.
Seu pesadelo ainda não tinha acabado.
***
Kenshiro ainda jazia na escuridão.
Preso num limbo entre a consciência e a morte, escutava, impotente, os gritos de dor da mulher que amava. Cada súplica de Erina soava como um prego sendo cravado em seu peito. Ele sabia que nada podia fazer para salvá-la. Nada podia dizer. Restava-lhe aceitar. Aquela era sua punição — eterna, implacável — por ter sido fraco demais.
Mas então...
Algo mudou.
Uma força indomável começou a pulsar em seu peito. Uma energia crua, violenta, ardente. Era como se sua própria alma tivesse se recusado a aceitar aquele fim. Como se a dor, ao invés de destruí-lo, o estivesse reconstruindo.
Essa energia se espalhou, serpenteando por seus membros como relâmpagos líquidos. Ele sentiu as pernas tremerem — mas não de fraqueza. De fúria.
Voltou a se erguer.
E desta vez... não iria hesitar.
Não perderia um segundo.
Iria eliminar tudo. Todos.
***
As faíscas estalaram na ponta dos dedos do homem grisalho.
No mesmo instante...
— AAAARRRRHHHHHH!!! — o grito de Kenshiro explodiu pelo ar, feroz como um trovão.
A tempestade retornara.
Em meio ao que restava do jardim, a fúria de Kenshiro se manifestava em rajadas cortantes de vento e energia. Cada movimento seu gerava uma onda de destruição que varria o gramado, destroçando os arbustos, derrubando raízes, abrindo cortes profundos nas pedras milenares que sustentavam a estrutura.
Nada ficou de pé.
Uma dança caótica de violência e poder — sem direção, sem controle.
O homem mais velho desapareceu como poeira levada pelo vendaval. Seus fragmentos foram levados pelos ares, despedaçados até sumirem completamente.
O baixinho, no entanto, permanecia ali.
Intacto.
Desviava de cada golpe com a precisão de quem conhecia cada fio de vento, cada intenção por trás dos movimentos. Aproximava-se com calma, um passo por vez, até estar frente a frente com a fúria encarnada.
Sem hesitar, esticou o braço.
Tung!
Um golpe seco na cabeça.
O corpo de Kenshiro perdeu a tensão imediatamente, caindo de joelhos, e então, desabando por completo sobre o chão arrasado.
Os demais emergiram de trás das colunas, lentamente, ainda atordoados pela violência da cena. Caminharam até o centro do que um dia fora um jardim. Lá, viram Kenshiro, desacordado, com o peito arfando suavemente. A fúria havia passado. Restara apenas o cansaço.
— A sua ideia era deixá-lo em coma de novo? — resmungou Takashi, franzindo a testa enquanto observava o corpo do espadachim.
Uma voz ecoou, vinda do alto, envolta em um timbre etéreo.
— Desta vez, é apenas um desmaio natural — disse o homem grisalho, enquanto sua forma voltava a se compor no ar. Fragmentos minúsculos flutuavam até se aglutinarem, restaurando sua imagem. — Ele despertará em breve.
O homem baixinho, agora mais tranquilo, abaixou-se para pegar Kenshiro com certa facilidade. Jogou-o por sobre os ombros como quem carrega um saco de trigo.
— Vamos, por favor. Aos seus aposentos provisórios — convidou o mago mais velho, já se voltando para o interior da construção.
Mas Erina, ainda com o peito apertado, deu um passo à frente.
— Esperem! — exclamou. — Eu ainda não entendo nada do que está acontecendo! Quem são vocês? Que lugar é esse? Como viemos parar aqui? Por que Xin está desacordada? E...!
— Sei que tem dúvidas — interrompeu o mago, sem sequer se virar. — Vocês todos têm. E responderei tudo o que puder. Mas — Suspirou profundamente — não tenho mais a paciência da juventude para repetir as mesmas respostas várias vezes. Prefiro fazê-lo de uma vez, para todos.
E partiu, com os passos firmes de alguém que esperava ser seguido.
Antes que Erina pudesse protestar mais, o homem baixinho se aproximou, ainda carregando Kenshiro no ombro. Sorriu, e deu-lhe um leve soco no braço — um gesto amistoso, quase fraterno.
— Não ligue para o mal humor do velho. Ele só está emburrado porque deixei o jardim dele virar salada de vento — disse, rindo. — Mas fala sério, né? Ele teve mais de duzentos anos pra fazer alguma coisa com aquilo e nunca mexeu um dedo! Aí não dá...
Erina parou.
— “Duzentos anos”?
O comentário pairou sobre ela como uma nuvem de dúvida. As engrenagens de sua mente começaram a girar, mesmo com o cansaço ainda em seus ossos.
Percebendo o turbilhão de pensamentos em seu rosto, o homem apenas piscou com leveza.
— Não se preocupe. Apenas venha. Vamos para seus aposentos. Vai ter tempo pra entender tudo depois.
Sem alternativas, sem respostas claras, sem sequer entender como pararam ali, Erina apenas assentiu.
Seguiu em frente.
Enquanto andava, seus olhos se fixaram no rosto de seu marido, caído, sereno.
Ainda estava vivo.
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