Volume 2 – Arco 6

Capítulo 58: Sobreviventes

A manhã no chalé era serena. Talvez tranquila demais, como se o tempo houvesse parado apenas para eles. Kenshiro e Erina acordaram antes do sol sequer aparecer no horizonte. O hábito de dormir até tarde fora deixado de lado — não por escolha, mas por uma inquietação que os dois partilhavam em silêncio. 

Não havia mais sonhos para se perder neles. 

Kaji, atencioso como sempre, já deixara os ingredientes organizados sobre a pequena bancada de madeira. Nada de banquetes, iguarias ou especiarias aromáticas. Apenas o básico. Uma refeição simples, honesta, como se o dia que começava fosse o fim de uma pausa. 

Erina assumiu a cozinha, sem qualquer comentário. Nenhuma troca de olhares calorosos, nenhum flerte como costumavam fazer nos tempos de paz. Preparou o café em silêncio, o cheiro encorpado preenchendo o ar. Kenshiro organizou a mesa. O som das xícaras encostando uma na outra era o único diálogo entre eles. 

Sentaram-se. E mesmo que as palavras faltassem, demoraram a tomar o café, aproveitando cada gole. Desde o aroma penetrante até o gosto levemente adocicado. Como se estivessem tentando prolongar aquele instante comum, tornando-o eterno na memória. 

Quando acabaram, lavaram a louça juntos, secaram cada peça, guardaram nos lugares exatos. Deixaram o chalé como o haviam encontrado: intocado, perfeito — um retrato de um sonho breve. 

— Está pronto, meu amor? — perguntou Erina, por fim. 

— Não — A resposta veio seca, sincera. 

— Precisa de mais tempo? 

— Não. 

— Eu vou me vestir. 

Kenshiro apenas assentiu. 

Saiu e aguardou do lado de fora, já vestido com sua armadura de couro escura. Duas espadas repousavam, uma em cada lado da cintura. Seus olhos estavam fixos na grande fogueira que ardia a poucos metros da porta — a mesma chama que marcava o retorno ao mundo que ele tanto queria evitar. Seus punhos se fechavam vez ou outra. O medo não era do fogo, mas do que ele representava. 

Logo depois, Erina surgiu. 

Vestia uma armadura pesada, de placas negras e foscas, talhadas como se feitas para a guerra. Um escudo imenso repousava em seu braço esquerdo — robusto, tão sombrio quanto sua armadura, firme como ela. 

— Vai demorar um pouco até eu me acostumar com essa coisa — comentou, em tom leve, esperando alguma reação do marido. Qualquer reação. 

Mas Kenshiro continuou calado. 

— Vamos logo — disse ele, após alguns segundos, a voz vazia de emoção. 

Começaram a caminhar juntos, lado a lado, em direção à fogueira. A relutância do espadachim era evidente, seu corpo rígido, seus passos pesados. Ele estava pronto para se jogar no fogo. Ou pelo menos tentava estar. 

Até que... 

— Espere! — disse Erina. 

Ele parou de imediato. Virou-se. Seus olhos a procuraram, esperando que ela terminasse o que havia começado. 

Erina respirou fundo, sustentando o olhar firme. 

— Sei que isso não estava nos nossos planos. Sei que essa vida... esse lugar... era tudo o que nós desejávamos. Mas, se ainda acha que não devemos seguir, podemos ficar. Não temos que fazer isso. 

Kenshiro desviou o olhar, encarando novamente as chamas. 

Aquelas palavras o cortaram mais fundo do que ele esperava. O mundo havia lhe roubado tudo: sua família, seu lar, sua paz. Por um breve momento, no interior daquele chalé perdido no tempo, ele teve um pedaço disso de volta. Um lugar onde a dor não o alcançava, onde as feridas pareciam distantes. E mesmo que soubesse que não poderia durar para sempre, a ilusão ainda doía ao ser abandonada. 

Ele respirou fundo. O peito inflava, pesado. 

Talvez pudesse resistir só mais um pouco. 

Talvez, se ignorasse o destino por mais alguns dias, ninguém notaria. 

Mas ele sabia a verdade: Erina notaria. Ela carregaria o peso do mundo nas costas se ele pedisse. E isso era algo que ele não podia mais permitir. 

Ele não confiava mais em si mesmo. 

Falhara com sua amiga de infância. Falhara com sua família. Falhara com Valéria. Se falhasse com Erina... 

Seria o fim. 

Mesmo agora, com suas espadas afiadas e a força restaurada, ele tremia. 

Sentia-se como um esboço do que um dia fora. 

E então... 

Erina aproximou-se por trás e sussurrou em seu ouvido, como se as palavras pudessem segurá-lo de despencar: — Mate nossos inimigos. Dê a eles a piedade de suas lâminas. Permita que o nosso caminho seja livre. E eu prometo proteger você de todo o mal que ainda habita nessa terra. 

Ela aceitara o destino desde o início. Desde a revelação de Tharion, sabia que sua felicidade era uma pausa, não o fim. Não perdera a fé. Acreditava que o caminho terminaria no mesmo lugar: ali, no chalé.

Ela apenas precisaria atravessar o inferno para alcançá-lo. 

Kenshiro, ao ouvi-la, sentiu o tremor em suas mãos diminuir. 

Aos poucos, a respiração desacelerou. 

Seu coração bateu firme. 

Sabia o que precisava fazer. Mesmo sem querer. Mesmo com medo. 

Eles se encararam. Não era apenas um olhar, era uma confissão mútua de que estavam partindo para o abismo — juntos. 

Deram um beijo longo e intenso. Um beijo com gosto de despedida, e de uma promessa. Uma âncora entre dois destinos frágeis. 

Testas coladas, fecharam os olhos. 

— Por um futuro em que possamos ser livres de nossas obrigações... e das punições desse mundo injusto — sussurraram. 

De mãos dadas, atiraram-se sobre as chamas. 

A fogueira os consumiu como um abraço antigo. Seus corpos desapareceram em meio à luz. 

Quando abriram os olhos novamente... 

Estavam diante da velha cabana de Reiji Torison. 

O recomeço da jornada. 

***

O cheiro do ar era o primeiro sinal de que algo estava errado. 

Kenshiro abriu os olhos com dificuldade. O teto acima dele era estranho, de cor clara e com leves fissuras antigas, mas limpo. Não o reconhecia. Não sentia o calor da lareira de Kaji, nem o ranger do assoalho do chalé. Não havia som de vento, nem cheiro de madeira... Mas o ar respirável — artificial, carregado de energia mágica refinada — esse ele conhecia. 

Era o mesmo ar produzido por Kaji. O mesmo que havia sentido no templo de Budai. 

Agh... 

Tentou se levantar. Seu corpo, no entanto, parecia pesar toneladas. Como se a própria gravidade estivesse contra ele. 

— Querido, por favor... — disse uma voz gentil ao seu lado — não se esforce ainda. 

Era Erina.

Sentada à beirada da cama, ela o ajudou a se apoiar com delicadeza, embora seu rosto denunciasse o cansaço. Havia sombra sob seus olhos, e seu cabelo, geralmente impecável, estava preso de qualquer jeito. 

O espadachim inspirou fundo, forçando os olhos a varrerem o local. 

Era um quarto amplo, ainda que simples. Diversas camas enfileiradas, armários com inscrições antigas, estandartes e tapeçarias desbotadas pelas eras. As janelas altas deixavam entrar uma luz fria, quase azulada. 

Um antigo dormitório. Semelhante aos da academia militar de Miravalle. 

Sentiu um leve alívio ao ver, nas outras camas, seus companheiros. Todos estavam vivos. Mas suas expressões — silenciosas, cabisbaixas, olhos perdidos — revelavam algo que Kenshiro não compreendia. Era como se todos tivessem carregado um peso muito maior do que suas armas poderiam suportar. 

— Onde... onde estamos? — murmurou, quebrando o silêncio pesado da sala. 

Uma voz firme respondeu do fundo do aposento: — Sejam bem-vindos à AMA. 

Um homem mais velho, de postura ereta e expressão estoica, avançou alguns passos entre as camas. Vestia um manto longo e bem alinhado, seus cabelos grisalhos amarrados em um coque baixo. 

— “AMA”? — repetiu Gurok, franzindo a testa. — A... Academia de Magia de Arboris? 

— A própria — confirmou o homem. — Embora o nome tenha mudado com o tempo. Eu sou Silas Tesla, o atual diretor. 

— Mudaram o nome? — questionou Takashi, cruzando os braços. 

— Como vocês "desapareceram"? — emendou Sebastian, ainda mais cético. 

— O que houve com Arcanus? — rosnou Gurok, impaciente. 

Zhen permaneceu calado. Sentado ao lado de Xin, ainda inconsciente, apenas observava. Havia prometido a si mesmo que tudo o que fosse dito seria repassado para ela quando despertasse. 

Mas antes que Silas pudesse responder, foi Kenshiro quem interveio, sua voz firme, seu olhar escuro. 

— Não. O que estamos fazendo aqui? O que aconteceu com Shenxi? 

Havia um traço de desespero em sua voz. 

Ele ainda se lembrava dos últimos momentos antes do colapso: a energia devastadora liberada em sua última técnica, o falso Zudao caindo diante dele, e o mundo escurecendo em seguida. Lembrava de ter ordenado que Zhen escapasse com todos. 

“Eles deviam ter escapado”, era essa a certeza que o mantinha inteiro. 

Mas então Erina se aproximou um pouco mais. Seus olhos marejados, sua voz trêmula, como quem repete uma sentença pela décima vez. 

— Meu amor... — começou, engoliu seco. — Depois que desmaiamos... Varelith apareceu. E... destruiu tudo. Toda Shenxi. 

— Não restou ninguém — completou Zhen, baixando a cabeça. 

— Apenas nós — sussurrou Erina. 

Kenshiro não respondeu de imediato. O olhar dele perdeu o foco. Seu peito subia e descia com lentidão. Não era possível saber se estava processando ou negando o que acabara de ouvir. 

— Não... Não pode ser... — sussurrou, voz falha. — Tínhamos a Passagem. Devíamos ter garantido a evacuação... Por que ninguém... 

— A Passagem estava bloqueada — explicou Sebastian, cruzando os braços. — Uma adaga. Com um bilhete. Dizia que se não entregássemos vocês dois, ela atacaria no terceiro dia. E ela cumpriu. 

— Tentamos ser rápidos — continuou Sebastian, tom amargo. — Não demorou mais que uma hora. Mas... a adaga já estava lá quando alcançamos a carruagem. Estávamos presos. 

— Eu... subestimei o poder dela — disse Erina. — Achei que teríamos tempo. E Shenxi pagou o preço. 

— Não contamos a ninguém sobre o bilhete — disse Takashi, finalmente falando. — Queríamos evitar pânico. Evitar que se voltassem contra vocês. 

Um silêncio constrangedor pairou. 

Então... 

— Deviam ter nos entregado — disse Erina, com um fio de voz. 

Kenshiro reagiu, duro como pedra: — Fizeram o certo.  

Todos voltaram os olhos para ele. Mas não com aprovação. 

— Porque se tivessem traído a mim... ou a Erina... eu teria sido o responsável pela destruição de Shenxi. 

Aquela sentença caiu como um trovão. 

Erina franziu o cenho. Zhen o encarou em silêncio. Sebastian cruzou os braços, desviando o olhar. Gurok rangeu os dentes. Takashi... concordou.

A devoção de Kenshiro à esposa era conhecida. Mas aquela afirmação não era amor. Era um traço sombrio que todos temiam ver. 

A-ham! — interrompeu Silas, tentando quebrar o clima. — A tal Varelith provavelmente rastreou vocês pela explosão de energia. Foi assim que nós os localizamos... com certo atraso. Em troca de termos salvado suas vidas, eu só gostaria que... Ei! 

Kenshiro levantou-se da cama de súbito, ignorando a exaustão. Cambaleou um pouco, mas se manteve de pé. Seguiu na direção da porta sem olhar para ninguém. 

— Aonde pensa que vai?! — reclamou Silas. 

— Preciso pensar — respondeu, seco. 

Erina, incomodada com a atitude do marido, hesitou por um instante. Se levantou também. 

— Eu vou falar com ele — disse, já o seguindo. 

Silas observou os dois desaparecerem pelo corredor, o semblante carregado. 

— As coisas não estão saindo como você esperava, hein? — provocou uma voz atrás dele. 

Era o homem baixinho, com o sorriso habitual. Ele cruzou os braços, observando a porta entreaberta por onde o casal havia partido. 

Silas cerrou os olhos, respirou fundo. 

— Descubra o que eles sabem. Tudo. Não confio neles. 

Fechou a porta com firmeza. 

Os outros membros do grupo permaneceram sentados, todos os olhares estavam voltados para o velho mago. As perguntas que não haviam sido feitas até então estavam prestes a começar. 

No exato instante em que Silas se afastava da porta, um leve gemido se fez ouvir atrás do grupo. 

Xin despertava. 

Seus olhos se abriram lentamente, turvos pela confusão e pela dor. Sentou-se num sobressalto, arfando, como se emergisse de um pesadelo — e, de fato, fora. 

— Alguém de vocês pode explicar para ela tudo que eu já contei? — disse Silas, sem sequer olhar para trás, a voz carregada de impaciência. Estava cansado. Muito cansado. Repetir informações não fazia mais parte de sua rotina. 

Zhen aproximou-se devagar, cauteloso. Seus olhos estavam marejados. Sentia-se culpado por tudo — principalmente, pelo que fizera a Xin. 

— Xin... escuta, eu preciso te contar o que... 

PAK! 

Xin acertou Zhen com um soco direto no rosto, forte o suficiente para lançá-lo da cama. 

Antes que alguém reagisse, ela se atirou sobre ele, montando em seu peito. 

PAK! BLACK! SMACK! 

Uma sequência de socos desferidos com fúria crua e genuína. Não era um ataque tático. Era dor, indignação. Desespero. 

Zhen não reagiu. Não bloqueou. Não se defendeu. Apenas aceitou. Cada golpe. 

Sabia que merecia aquilo. 

— Tá bem! Agora chega! — gritou Gurok, segurando Xin pela cintura e erguendo-a do chão com facilidade. 

SEU DESGRAÇADO! — berrou ela, os olhos flamejantes. — COMO OUSA TER FEITO AQUILO COMIGO?! 

Zhen se ergueu com dificuldade, limpando o sangue do canto da boca. Encarou-a, não com raiva, mas dor e arrependimento. 

— Eu sei que o que fiz foi errado... mas você não estava pensando direito. Queria mesmo... acabar com sua vida logo após conseguir sua liberdade? 

CALA A BOCA! — rugiu Xin, rompendo em lágrimas. — VOCÊ NÃO TINHA O DIREITO! A DECISÃO ERA MINHA! 

BASTA! — bradou Silas, e uma onda de trovão sacudiu a sala. Bastou um estalar de dedos. 

Uma aura de eletricidade percorreu seus olhos como relâmpagos contidos, e o poder no ar mudou de forma brutal. 

— Não admito conflitos dentro da minha academia! Sentem-se. Todos. Agora. Vocês ouvirão o que precisam saber. 

Por um momento, ninguém ousou contrariá-lo. Mas então... 

— Nossa, nossa... — disse uma voz infantil e melódica, como um sussurro flutuando no ar. — Parece que o diretor esqueceu como é difícil educar os mais jovens... 

— Sim, sim... — completou outra voz, dessa vez menos animada e masculina. — Talvez ele precise de ajuda com isso! 

— Quem está falando isso? — perguntou Sebastian, virando-se em alerta. 

Como se o mundo físico fosse irrelevante, duas pequenas esferas mágicas atravessaram a porta fechada. Uma azul, uma verde. Brilhavam com intensidade e graça, flutuando lentamente pelo quarto. 

As esferas começaram a pulsar, como corações prestes a explodir.  

Pop! 

Transformaram-se em duas pequenas figuras humanoides. 

Um menino esverdeado e uma menina azulada. Fadas, talvez. Ou algo ainda mais antigo. Olhos grandes, roupas feitas de pura energia, e um entusiasmo que contrastava com o peso de tudo ao redor. 

— Pedimos desculpas pela nossa intromissão, diretor Silas — disse a menina, com uma reverência encantadora. 

— Mas ao contrário do senhor — disse o menino, cruzando os braços com falsa autoridade — nós adoramos ensinar, explicar e conversar! 

Silas fechou os olhos. Suspirou profundamente. Estava cansado demais para discutir. 

— Está bem — disse, abrindo a porta — quando terminarem de explicar tudo... sabem onde me procurar. 

Com o estalar da capa, partiu. 

O grupo ficou em silêncio por alguns segundos, atônitos, encarando as criaturinhas que agora flutuavam diante deles com sorrisos amplos. 

Ah, vamos lá! — Animou-se a menina, girando no ar. — Perguntem qualquer coisa! 

— Responderemos tudo que soubermos! — completou o menino, empolgado. 

Sebastian, ainda desconfiado, ergueu a mão lentamente, como se estivesse em uma sala de aula. 

— Ótimo! — disse o menino, apontando para ele. — Qual é a sua pergunta, vampiro? 

— Quem... ou o que são vocês? 

— Excelente pergunta! — exclamou a menina. 

As duas criaturas deram as mãos. 

 PUF! 

 E desapareceram em uma fumaça etérea. 

O grupo olhou ao redor, desconcertado. 

— Nós somos energia — disseram as vozes, em uníssono, ecoando de todos os lados. — Representações vivas do combustível que move e transforma todas as coisas no universo. 

As vozes se reuniram no centro da sala, reaparecendo com um brilho leve. 

— Mais especificamente — disse a menina — representamos duas das três energias primordiais que habitam todos os seres vivos. 

— E quais seriam? — perguntou Sebastian, agora inclinado para frente. 

PUF!

O menino apareceu, flutuando ao lado da cama de Gurok. 

— Eu sou Estamina! Represento a energia que transforma as reservas do corpo em ação física! Força, velocidade, resistência! 

PUF!

A menina surgiu ao lado de Xin. 

— E eu sou a Mana! Represento a energia que transforma sua vontade em magia! Feitiços, encantamentos, manipulação da realidade! 

— E qual seria a terceira? — perguntou Zhen, com o coração apertado, quase adivinhando a resposta. 

As duas entidades trocaram um olhar quase respeitoso antes de responder. 

— Ela se chama Essência — disseram juntos. — A energia da vida. A mais pura. A mais poderosa. Ela transforma a alma em existência física. Permite que você... continue sendo você. 

O grupo se silenciou.  

— Mas não negligenciem nenhuma das duas— alertou Mana, mais séria. — Viram o que aconteceu com o casal. 

— Como assim? — Takashi estreitou os olhos. 

— Já se perguntaram o que acontece quando a energia de vocês chega ao fim? Foi o que houve! Kenshiro usou até a última gota de sua Estamina. Erina, toda sua Mana. 

— O coma era inevitável — explicou Mana. — Mas podia ter sido muito, muito pior. 

— Como o quê? — perguntou Sebastian. 

— Perda permanente de movimento em membros... falha na memória de longo prazo... até o fim de funções básicas como respirar automaticamente — respondeu Estamina, sombrio. 

Zhen fechou os punhos, então arriscou a pergunta que vinha temendo. 

— E quando se esgota a... Essência? 

Silêncio. 

— A pessoa morre — respondeu Estamina, direto. — Simples assim. Foi o que aconteceu com Budai, não? 

— Sim — confirmou Zhen, sua voz presa na garganta. 

— Estamos curiosos — disse Mana, inclinando-se. — Como exatamente ele morreu? 

Zhen não respondeu de imediato. Seu rosto assumiu uma rigidez contida. Não era apenas dor. Era ausência. A ausência de tempo para sofrer. 

— Ele... começou a se desintegrar. Lentamente. Como se estivesse sendo apagado... 

Hmm... interessante... — murmurou Mana. 

— Na maioria das vezes, a pessoa apenas... cai morta — disse Estamina. — Sem Essência, a alma se desprende do corpo, e o corpo simplesmente cessa. 

— Mas o monge disse que corpo e alma partiram juntos! — contestou Mana. 

— Sim, sim! — concordou Estamina. — Precisamos refletir sobre isso. 

— Espera! — interrompeu Xin. — Vocês não sabem? 

— Não — disseram ambos. — Nosso conhecimento se limita aos fatos que conseguimos observar ou registrar. Se ninguém relatou, não podemos afirmar com certeza. E descartamos boatos e mentiras. 

— Por exemplo! — disse Mana, girando de leve. — O Império até hoje não sabe como a AMA foi parar no espaço! 

— E inventaram mil teorias, todas erradas! — completou Estamina. — E, honestamente? “Academia de Magia de Astra” soa muito mais legal! 

O grupo ficou paralisado. Um silêncio total. 

Espera aí... — disseram todos em uníssono. — Nós estamos ONDE?! 

***

Kenshiro caminhava pelos corredores da estranha academia sem rumo, os passos pesados e firmes, como se o chão à sua frente pudesse se abrir a qualquer instante. Atrás dele, Erina o seguia em silêncio. Mais distante, um pequeno homem os acompanhava com discrição, ocultando sua presença como uma sombra paciente. 

O espadachim não falava. Seus pensamentos martelavam dentro do crânio como marretas: culpa, raiva, confusão. Estava frustrado, não apenas pelas mortes em Shenxi, mas por ter sido impotente mais uma vez diante da tragédia. E, acima de tudo, por ter falhado em proteger aqueles que haviam confiado nele. 

A quem culpar? Varelith? O destino? A si mesmo? 

Não havia resposta clara. E ele sabia que não podia se permitir desmoronar — não diante dos outros. Como segundo no comando, sua imagem sustentava não apenas o respeito, mas a confiança. Se se permitisse fraquejar, Erina seria forçada a carregar o fardo de ambos. E, cedo ou tarde, os demais começariam a questioná-la também. A liderança deles não podia ter rachaduras. 

Mas o vazio era cruel. E estava ganhando espaço. 

Foi quando, ao passar por uma janela alongada, uma faixa de luz tocou-lhe o rosto. Ele parou, surpreso. 

A luz era dourada, morna... como a de um sol ao amanhecer. Mas lá fora — não havia dia. 

Instintivamente, voltou-se para o exterior, curioso. 

O choque o atingiu como um raio. 

Não havia céu. Não havia nuvens. Nem montanhas ao longe. 

A janela exibia o espaço — negro, sem fim, cravejado de estrelas que pareciam mais próximas do que deveriam. E, ali, flutuando com imponência, o planeta. 

Kenshiro ofegou, dando um passo à frente. Sua testa se encostou ao vidro. A imagem diante dele era surreal. 

Via o continente onde nasceu com clareza inigualável — sua forma completa, pura, despida de erros cartográficos ou suposições humanas. As linhas costeiras pareciam cicatrizes antigas. Nenhum mapa era sequer próximo daquilo. 

E ali, ao lado, pairava a Lua. Imensa. Intocável. Próxima demais para ser ignorada. As crateras eram visíveis como rachaduras em pedra antiga. Ela não parecia mais um símbolo místico, mas uma entidade viva, observadora. 

A revelação caiu sobre ele com o peso de uma verdade ancestral: estavam no espaço. 

Fora do planeta. Fora de tudo o que conheciam. 

A mente de Kenshiro girava. A AMA estava em órbita. Isolada. Inacessível. Como aquilo era possível? Como uma estrutura daquele porte podia existir fora do planeta — e mais, manter uma atmosfera artificial como aquela? 

Um leve toque interrompeu sua vertigem. 

Erina. 

A mão dela repousava em seu ombro com suavidade. Seus olhos o encaravam com uma ternura dura, do tipo que só alguém que conhecia as cicatrizes dele poderia sustentar.

— Precisamos conversar.

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