Volume 2 – Arco 6

Capítulo 59: O Legado de Reiji

— Precisamos conversar — disse Erina, com a voz firme, baixa e cheia de peso. 

Kenshiro não respondeu. 

Parado diante da janela colossal, ele continuava encarando o mundo abaixo — ou melhor, aquilo que antes acreditava conhecer. O planeta flutuava no vácuo como uma joia solitária, cercada de estrelas distantes e um silêncio que esmagava os sentidos. 

Daquela altura, tudo parecia ridiculamente pequeno. 

O continente... 

As fronteiras desenhadas com sangue... 

As guerras... 

Os reinos... 

As Sombras e os Ratos... 

Tudo parecia se desmanchar diante da vastidão que os cercava, como se suas lutas fossem apenas grãos de poeira tentando desafiar a eternidade do cosmos. 

— Não precisa carregar isso sozinho — insistiu Erina, dando um passo à frente. — Sei que você se sente responsável. Mas ninguém... ninguém poderia ter previsto o que aconteceu. 

Kenshiro fechou os olhos, e seus punhos se cerraram com força. As juntas estalaram em um som seco e tenso, como uma corda prestes a se romper. 

— Está errada... — rosnou ele. — Nós sabíamos o que ia acontecer. E mesmo assim, insistimos nessa maldita jornada. 

Erina hesitou por um breve segundo. 

— Não acho que nós... 

Podíamos estar em casa! — explodiu ele, virando-se para ela com o rosto carregado de culpa e raiva. — Nossa casa! Talvez... só talvez... ninguém teria morrido! 

Erina apertou os lábios, mantendo o olhar firme. 

— Ou talvez o plano de Zudao tivesse funcionado — rebateu com frieza. — E ele teria, agora, um exército de mortos-vivos... com um Herói ao seu lado. 

Fez uma pausa, o tom mais brando, carregado de firmeza. 

— Apesar do resultado infeliz... não foi o pior cenário. 

Kenshiro a encarou com descrença, como se ela tivesse cuspido veneno. 

— É isso que você diz pra si mesma? “Fiz o que estava ao meu alcance”?

Erina manteve a compostura. Não respondeu imediatamente. Apenas inspirou fundo. 

— Você está certa — continuou ele, voz amarga. — E esse é o maldito problema. Não temos como vencer Varelith. Nunca tivemos. E mesmo assim... aqui estamos. 

— Pode se lamentar o quanto quiser, meu amor — disse ela, com um toque de tristeza nos olhos —, mas agora que nos revelamos... Varelith não vai parar de nos perseguir. Nem por um instante. 

Ela se aproximou mais, os dedos roçando de leve a manga da camisa dele. 

— Mesmo que voltássemos ao chalé, quanto tempo acha que levaria até ela nos encontrar? 

A pergunta pairou no ar como uma névoa fria. 

Kenshiro desviou o olhar. Não havia resposta. Nenhuma que ele pudesse suportar dizer em voz alta. 

Foi então que um som discreto — um pigarro proposital — quebrou a tensão. 

Ambos se viraram ao mesmo tempo. 

Encostado com despreocupação contra a parede, estava o pequeno homem que os seguira em silêncio até ali. Braços cruzados, postura relaxada, e um sorriso enviesado no canto da boca, como se estivesse assistindo a uma peça de teatro intimista. 

— Bonita cena — comentou ele. — Mas lamento interromper o momento dramático. Silas pediu que eu acompanhasse vocês. Temos... outros assuntos a tratar. 

Kenshiro franziu o cenho, confuso. O olhar cortante. 

— Quem diabos é você? 

— Apenas aquele que lhe deu uma bancada na cabeça — respondeu o homem, casual, como se contasse que havia comprado pão. — Se passar a mão, acho que ainda pode sentir. 

Kenshiro, incrédulo, ergueu a mão e tateou o próprio couro cabeludo. Seus dedos encontraram um inchaço dolorido, quase escondido sob os fios desalinhados. O espanto se espalhou por seu rosto como uma rachadura. 

— Como ele...? 

— Acordamos você antes — explicou Erina, num tom mais leve agora —, mas você pensava ainda estar lutando em Shenxi. Esse homem... desviou de todos os seus cortes e se aproximou o suficiente para te nocautear. 

Kenshiro piscou, confuso. 

— Mas... era o meu ataque mais poderoso... 

O homem riu com gosto, sem arrogância, apenas com um tipo estranho de nostalgia. 

— Não se sinta menosprezado, caro Kenshiro Torison. Pra ser sincero, fiquei impressionado com sua força. Se não fosse pelo meu falecido mestre... eu não teria a menor ideia de como escapar daquele ataque. 

— Quem foi o seu mestre? 

O pequeno homem endireitou-se, batendo no próprio peito com orgulho. 

Ha! O próprio Reiji Torison! 

Kenshiro deu um passo para trás, atordoado. 

O quê?! 

O silêncio que se seguiu foi denso.

Erina e Kenshiro trocaram olhares, e pela primeira vez em muito tempo, havia algo diferente ali. Curiosidade... esperança... talvez até desconfiança. Mas não medo. 

Reiji Torison jamais teria ensinado algo a alguém indigno. Nunca. 

O homem sorriu mais uma vez, desta vez com um toque de respeito. 

— Agora que tenho a atenção de vocês... podemos conversar? Há muito a ser dito.  

Kenshiro assentiu, relutante. Erina o acompanhou. 

Mas antes de qualquer revelação, o homem indicou com um gesto o final do corredor. 

— Meus aposentos são logo ali. Nada luxuoso, mas... privados. 

Sem palavras, os três seguiram juntos. 

O corredor parecia ainda mais longo agora, envolto por uma leve penumbra e iluminado apenas pelas luzes suaves vindas das janelas intermitentes. Lá fora, o espaço continuava indiferente, eterno — uma lembrança cruel de quão pequenos eram. 

Erina desejava segurar a mão de Kenshiro — sentir sua presença, lembrar-lhe que ela ainda estava ali, ao seu lado — mas sabia que aquele não era o momento. A raiva e a frustração que exalavam dele criavam uma barreira invisível, tornando cada gesto de afeto uma possível invasão. 

Ela respeitou seu espaço. 

As palavras duras ditas minutos antes ainda reverberavam em sua mente. Cada dúvida lançada por Kenshiro era como uma lasca perfurando seu peito. E, embora ela não conseguisse recordar os detalhes do pesadelo que tivera, sentia em seu íntimo como se tivesse sido uma confirmação — um mau presságio, talvez inevitável. 

Pararam diante de uma porta de madeira escura com entalhes antigos, símbolos que o casal não reconhecia. Ao entrarem, foram recebidos por um ambiente inesperadamente acolhedor. 

O quarto era amplo, mas não grandioso. Havia uma lareira acesa que preenchia o espaço com uma luz âmbar tremeluzente, lançando sombras dançantes sobre as paredes de pedra clara. A cama, larga e baixa, parecia ter sido feita para resistir a noites de guerra e, ainda assim, oferecer descanso a um soldado exausto. Havia armários robustos, suportes de madeira para livros, estantes com frascos, armas e — em destaque — uma única armadura exposta no centro da parede principal, como uma peça de museu sagrado. 

A armadura era um espetáculo por si só. 

Tingida de um vermelho profundo, como brasa viva, parecia ter sido forjada do próprio fogo. Placas curvadas no peitoral se entrelaçavam em padrões de chamas ondulantes, evocando a imagem de uma entidade ardente, indomável. Cada segmento era polido com cuidado, mas deixava marcas visíveis de batalhas — riscos, amassados, cicatrizes que contavam histórias. 

Não era apenas uma armadura. Era um símbolo. Um aviso. Um legado. 

— Meus cumprimentos ao seu ferreiro — murmurou Kenshiro, sua voz carregada de respeito. 

— Foi um presente de Reiji — respondeu o anfitrião, com um sorriso melancólico. — Disse que havia sido forjada por seu bisavô, em honra ao Servo da sua linhagem. 

— Um presente desses... de Reiji? — Erina franziu o cenho, cruzando os braços. — E por que ele entregaria um legado de família a você? 

— Foi um adeus. Ou talvez um pedido de desculpas — disse o homem, com um suspiro contido. — Reiji nunca usou armaduras. Detestava sentir-se limitado. Quando decidiu encerrar meu treinamento... ele quis me deixar algo. Algo que me fizesse lembrar dele e de seus ensinamentos. 

Kenshiro se aproximou da peça e tocou o peitoral com os dedos. Estava quente ao toque. Quente de verdade. 

— O que aconteceu entre vocês? 

O homem se afastou, desviando o olhar. 

— É uma conversa para outra hora — murmurou, e então, como para evitar o silêncio incômodo, retirou uma espada levemente curvada do mural; uma katana com o cabo envolto em tecido vermelho e dourado. — Permitam-me, ao menos, apresentar-me de forma apropriada. Me chamo Fox. Sou um herói imperial. O atual Herói do Povo. 

Erina e Kenshiro trocaram um olhar carregado de surpresa. Deram um passo para trás instintivamente. 

— Herói imperial...? — Kenshiro levou a mão até o cabo da própria espada, seus olhos estreitados. — Sabe qual é o título que o Império me deu, não sabe? 

— “Carrasco de Valéria”, não é? — disse Fox, com um tom quase casual. — O homem que assassinou seu próprio mestre e pôs fogo na vila, matando civis e soldados. O traidor que fugiu com seu Servo...

Conforme Fox citava os crimes e acusações do espadachim, o casal sentia que um adversário se fazia presente.

Erina já se colocava à frente do marido. 

— É por isso que está aqui? — disparou. — Veio prendê-lo? Executar uma justiça antiga? 

Fox riu, sincero. 

— O quê? Claro que não. Essas acusações são falsas. Eu sei disso. Quanto à Valéria... sei que houve algo ali que o Império escondeu. Eu vim porque quero ajudar. Quero participar da jornada de vocês. 

Kenshiro baixou a mão devagar. Erina, embora ainda alerta, parecia menos rígida. 

— Então você sabe... sobre a jornada — disse ela, desconfiada. 

— Sim. Reiji me contava fragmentos, entre uma lição e outra. Nunca revelou tudo, mas... deixava escapar. Ele achava que o destino do mundo dependia dela. Que algo maior estava por vir. Algo inevitável. 

O silêncio reinou por mais alguns segundos, pesado. Kenshiro observava Fox com olhos inquisidores, tentando encontrar sinais de mentira. Não encontrou. 

— E então? — disse Fox, abrindo os braços. — Como vai ser? 

A decisão cabia a Erina. 

Ela respirou fundo. O peso da escolha era mais do que aceitar um novo aliado, era admitir que talvez, apenas talvez, ela não pudesse mais fazer aquilo sozinha. 

Lembrou-se de Shenxi. Das mortes. Das falhas. 

Lembrou-se das palavras duras de Kenshiro, das dúvidas que ele depositara em seu colo. 

Lembrou-se da responsabilidade. 

— Está bem — disse enfim. — Mas será um pouco diferente... 

***

— Então a AMA foi mandada para o espaço... — murmurou Sebastian, com os olhos fixos nas informações projetadas à sua frente. — Isso explica a cratera colossal deixada para trás. 

— Foi necessária uma quantidade absurda de energia mágica pra isso! — exclamou Mana. 

— Sim, sim! — concordou Estamina, animado. — Depois de resistirmos a uma enxurrada de ataques, reunimos todos os magos sobreviventes para executar o ritual. Foi nosso último esforço conjunto. 

— Espera... vocês foram atacados? — perguntou Gurok, estreitando os olhos. — Por quem? 

— Por todos! — responderam as duas ao mesmo tempo, com um misto de indignação e tristeza. 

— A Era das Trevas foi um dos períodos mais tristes da história humana — disse Estamina, cruzando os braços. — Um tempo de retrocessos, traições e destruição. 

— E pensar que ela veio logo depois da Era de Ouro... — comentou Mana, balançando a cabeça com pesar. 

— Ou, como alguns chamavam, a Era da Magia — completou Estamina, mais suave. 

— Espera aí... do que exatamente vocês estão falando? — perguntou Xin. 

As duas crianças pararam. Inclinaram a cabeça para o lado ao mesmo tempo, como se só então tivessem notado algo estranho. Olharam em volta. E perceberam, com espanto, que não era apenas Xin — todos os presentes estavam com expressões de dúvida. 

— Não me digam que... — começaram juntas, arregalando os olhos. — Vocês não conhecem a própria história da humanidade?! 

Um silêncio desconfortável caiu sobre o grupo. Nem mesmo Sebastian se sentiu confiante o bastante para tentar arriscar uma explicação. 

As duas crianças suspiraram, em um desânimo exagerado. 

— Isso é realmente... decepcionante — disse Estamina, com os braços caídos. 

Mas, segundos depois, voltaram a sorrir. Seus olhos brilharam com entusiasmo, como se tivessem acabado de receber uma missão nobre. 

— Tudo bem! — disseram em coro, saltitando de leve. — Contaremos tudo o que sabemos, e o que temos como confirmação, é claro! 

— Mas prestem atenção... — advertiu Mana, erguendo o dedo com seriedade. 

— Porque essa história... — continuou Estamina, abrindo os braços como quem vai anunciar algo grandioso... 

— ...pode ser um tanto quanto longa. 

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