Volume 2 – Arco 6
Capítulo 63: Servo de Fogo
Apesar da reunião que ocorria nos jardins principais da AMA, um último membro do grupo permanecia ausente: Kaji.
O servo elemental da família Torison fora atraído, como por um chamado invisível, a buscar respostas para dúvidas que começavam a consumi-lo. Um sussurro silencioso o arrastava — não por palavras, por instinto, calor e ausência.
Sem avisar ninguém, invadiu o Hall dos Elementos — um lugar reservado, onde os magos vinham descobrir suas afinidades mágicas.
O Hall era formado por um corredor estreito, cujas paredes pulsavam com energia ancestral. Segui-lo era como mergulhar em um feitiço: a cada curva para a direita, o caminho se repetia, criando a ilusão de movimento sem progresso. Portas e símbolos surgiam nas paredes e depois desapareciam, como se testassem a paciência dos que ousavam entrar. Era infinito e circular, como se todo o espaço fosse dobrado sobre si mesmo.
Kaji caminhava. Corria. Voltava. Tocava cada parede, cada centelha de energia. Nenhuma reagia. Buscava algo que nem sabia nomear, e quanto mais procurava, mais se perdia.
— Onde está? — sussurrou, sem perceber que falava em voz alta.
Depois de incontáveis voltas, caiu de joelhos no chão frio e luminoso, rendido à exaustão. Não orou. Mas sentiu. Talvez, se demonstrasse o bastante do que sentia, alguma entidade se comovesse.
Ainda que houvesse algo ali... ajudaria-o?
Kaji não era humano. Tampouco era reconhecido como um ser vivo. Era criação, fragmento, instrumento.
Mesmo assim...
Algo o ouviu.
A parede à sua frente — sólida, sem fendas, parecendo um pilar colossal — começou a se mover. Cada bloco de pedra se separou lentamente, como placas obedecendo a uma força superior, abrindo uma passagem escura e silenciosa.
Sem hesitar, Kaji entrou.
Dentro, havia apenas escuridão. O espaço era desproporcional à construção: muito maior por dentro do que o Hall jamais permitia aparentar. O vazio era absoluto — sem teto, sem chão visível, sem som.
Somente o fogo que ardia em seu peito o guiava, pulsando como uma lanterna viva, lançando reflexos dançantes nas sombras.
No que presumiu ser o centro daquele espaço sem forma, Kaji sentou-se.
Tentou se acalmar. Respirou fundo. Repetidas vezes. Com cada inspiração, seu fogo interno diminuía, suavizando sua luz até o último brilho... até finalmente se apagar.
Então, deixou o corpo para trás.
Seu ser se dissolveu em uma esfera flamejante, flutuando no vazio, uma centelha solitária em busca de sentido.
Foi quando vieram as vozes.
— Acho que é a primeira vez que vejo um de vocês voltar — disse uma voz feminina, jovem.
— Sim, sim — completou uma voz masculina, tão leve quanto a anterior. — Afinal, por que voltariam?
Kaji abriu os olhos. Viu dois orbes flutuando diante de si, distintos em cor e ritmo. Eram formas de energia pura: uma suave como o vento, outra pulsante como uma veia aberta.
Mesmo sem reconhecê-las, soube quem eram.
Mana. Estamina.
— Kenshiro, um dos Descendentes — comentou Mana, parecendo folhear a história.
— Isso explica sua presença aqui... mas não a separação — disse Estamina, intrigado.
Kaji quis responder, mas hesitou. Faltava-lhe linguagem. Aquelas entidades liam seus sentimentos antes mesmo que ele os compreendesse.
— Oh? Ele sente falta da... Essência? — disse Mana, surpresa.
— Mas isso é impossível — replicou Estamina. — A Essência deixou de existir quando os Servos foram criados. Todos sabem disso.
Kaji estremecia.
— Esperem... Vocês sabem sobre...?
As esferas se agitaram como chamas ao vento.
— Mas que coisa fascinante! — disseram os dois, em uníssono. — Talvez a Essência seja algo muito além do que imaginávamos! Mais profunda do que o corpo! Talvez seja parte da alma! Talvez seja a alma!
— Talvez seja... talvez seja... talvez seja...! — repetiam, empolgados, girando ao redor dele.
Enquanto raciocinavam juntos, pareciam esquecer-se do mundo. Eram como duas crianças fascinadas com um novo brinquedo.
— EEIIII! — gritou Kaji, explodindo num clarão quente e vibrante.
As esferas pararam, surpresas.
— Vocês são Mana e Estamina — disse ele, ainda oscilando em chamas. — Meus criadores. Eu sei disso. Mesmo sem lembrar de vocês. Isso... é tão estranho...
— Ora, não se preocupe, Kaji — disse Mana, gentil.
— Nós nunca nos vimos antes, mesmo — completou Estamina.
— Então é impossível se lembrar da gente — concluíram juntos, rindo. — Mesmo com sua memória perfeita.
— Minha memória não é perfeita — disse Kaji, sua voz baixa, embebida em algo que se assemelhava a pesar.
— Mas é claro que é! — retrucaram Mana e Estamina em uníssono, como se aquela verdade fosse indiscutível. E num piscar de olhos, suas presenças se desfizeram.
Kaji olhou ao redor, surpreso. Nenhuma centelha, nenhum traço de onde estivessem.
— Não conseguirá nos ver — disse a voz de Mana, agora etérea, como um sussurro carregado pelo éter.
— Estamos em uma forma que não pode ser percebida com os olhos — completou Estamina.
— Se transformaram em gás? — arriscou Kaji, sem saber o que esperar.
— Não, seu bobo! — disse Estamina, em tom brincalhão. — Viramos energia! A forma mais pura e primitiva de nós mesmos!
Kaji então fechou os olhos e sentiu. Era como perceber calor sem queimar, como ouvir pensamentos em silêncio. Os dois o rodeavam, vibrando com uma frequência que ele mal compreendia. Mesmo tendo deixado seu corpo físico, compreendia que ainda havia muito além do que imaginava.
— Sem os limites de um recipiente material — começaram, suas vozes sobrepondo-se como harmonias divinas —, nós somos pura potência. Energia infinita, capaz de criar e destruir sem esforço. Nós, os Elementos, somos o que os mortais chamariam de divindades.
— Não há outro como nós. Somos únicos. Sem medida, sem barreiras; onipotentes. Nossa consciência transcende a razão, invadimos pensamentos, cruzamos mundos, tocamos sonhos e falamos em mil lugares ao mesmo tempo, sem jamais dispersar; oniscientes.
— E não podemos ser destruídos — concluíram. — Somos eternos.
O espaço parecia vibrar com aquelas palavras. A própria existência reagia à sua afirmação.
— E é por isso que — continuaram — quando você abandona o corpo, seu catalisador, a sua potência se libera. Sua mente se expande. Você pode revisitar toda a sua trajetória com total clareza, ainda que, no fundo, sempre tenha sabido. Você se lembra de nós porque fomos nós quem o criamos.
Kaji os escutou em silêncio. Então, repetiu: — Minha memória não é perfeita.
A frase foi dita com suavidade, mas carregava uma dor profunda, uma ferida antiga.
Mana e Estamina cessaram. Por um instante, o tempo pareceu parar. A densidade do silêncio obrigou-os a se materializar novamente — duas esferas luminosas que flutuaram à sua frente, como olhos curiosos de deuses antigos.
— Como assim? — perguntaram, desta vez com genuína perplexidade.
— Algumas gerações atrás, um ancestral do meu atual protegido... ordenou que eu esquecesse meu passado. Minhas memórias foram seladas. E mesmo depois da morte dele, elas não voltaram. Eu decidi continuar, mesmo sem entender o que havia deixado para trás.
Fez uma pausa, o fogo que o envolvia tremeluzia, como se absorvesse a dor que ele tentava disfarçar.
— Com o tempo, comecei a esquecer de todos. Minha família. Aqueles a quem jurei servir. Até mesmo Reiji Torison, meu último Mestre... suas memórias se tornaram borrões. Nossas brigas, suas ordens, sua voz... sumiram.
Mana e Estamina se entreolharam — ou transmitiram isso por um gesto que Kaji simplesmente compreendeu.
— Isso... não faz o menor sentido! — explodiu Mana.
— Sim, sim! — concordou Estamina. — É como... como se um rio se recusasse a lembrar do caminho que percorreu!
— Um rio que esquece sua nascente! — disse Mana, ofendida pela lógica quebrada.
— Exato! Isso não deveria ser possível!
— E ainda assim... — murmurou Estamina, pensativo.
— Qual foi a razão desse pedido? — questionaram juntos, em tom mais sério.
Kaji hesitou. Aquela lembrança parecia rasgar seu centro. Mas se havia um momento para encarar a verdade, era agora.
— Eu... matei o avô dele. Não me lembro quem era, mas sei que o fiz. Seu pai, então, me libertou do Voto de Servidão. Eu vaguei por muitos anos, vi maravilhas, mas... uma saudade estranha me puxou de volta.
Mana e Estamina permaneceram em silêncio, atentos.
— Quando retornei, ele já era um velho. Reatamos nosso vínculo, por pouco tempo. Seu último pedido foi que eu fosse a pira de seu funeral. Um último abraço.
Mais uma pausa. Kaji esperava julgamento. Mas o que recebeu foi... nada.
— E então? — perguntou, irritado com o silêncio.
— Ah, perdoe-nos — disseram. — Estávamos prestando atenção.
Em seguida, as duas esferas começaram a girar em torno uma da outra, em busca de sentido. Após alguns instantes, pararam, imóveis como estrelas.
E em seus semblantes — se é que podiam ser chamados assim — havia apenas neutralidade. Não havia pena. Nem reprovação. Apenas uma certeza inevitável prestes a ser revelada.
— Sua história é impossível — declararam as vozes de Mana e Estamina em uníssono. — Ainda que saibamos que está dizendo a verdade... o que descreve não poderia ter acontecido.
— Mas aconteceu! — rebateu Kaji, com urgência. — Eu sei que não me lembro dos detalhes, mas...!
— Não estamos acusando você de mentir — disse Mana, com um tom quase gentil. — Nem negando que o que viveu tenha sido real, para você. Pelo contrário, nós acreditamos.
— Porém — completou Estamina, com firmeza — um Servo não deveria jamais ser capaz de matar seu Mestre.
— Seja por piedade e compaixão... — disse Mana, com pesar.
— Ou por vingança e ressentimento — concluiu Estamina.
O silêncio seguinte pareceu mais frio que o espaço entre as estrelas.
— Diga-nos — retomaram —, é verdade também que matou o pai de Reiji e Kenzou Torison? Aquele que era chamado de Kenji Torison?
Kaji abaixou os olhos. A memória lhe doía como uma lâmina cravada fundo demais.
— Sim. É verdade — confessou, a vergonha e o remorso em sua voz expostos como feridas abertas. — Ele estava prestes a matar os próprios filhos. O pedido de socorro de Reiji, pedindo que eu salvasse o irmão... foi o que quebrou meu vínculo com Kenji.
— Então essa é a prova que faltava — disseram as entidades. — A conclusão é clara. Você não é um Servo. Ou, se ainda é, não está junto à família que lhe foi designada.
As palavras atingiram Kaji como um trovão surdo. O impacto foi tão intenso que, por instinto, seu espírito recuou — retornou de imediato ao próprio corpo, que reacendeu em chamas.
— Esperem! — gritou, tentando impedir sua partida. — O que estão querendo dizer com isso?
— Sabemos que é uma revelação difícil — disse Mana, com um pesar palpável. — Mas são as únicas respostas possíveis.
— Além de explicarem seus atos — acrescentou Estamina —, também justificam a fragmentação de sua memória.
As duas esferas começaram a se elevar lentamente, sua luz pulsando com uma melancolia silenciosa.
— Sentimos muito — disseram juntos. — Gostaríamos de trazer respostas melhores.
— Não! Esperem! — Kaji ergueu a mão, numa súplica instintiva, tentando tocá-los, retê-los, como se sua vida dependesse disso. — Como isso aconteceu? Quem é a minha verdadeira família? O que vai acontecer comigo?!
As entidades, no entanto, não responderam.
E não foi por crueldade.
Foi porque não sabiam.
Kaji finalmente havia encontrado a resposta que buscava há tanto tempo. Mas novas perguntas — ainda mais profundas —, vieram para permanecer com ele, talvez para sempre.
Sem mais o que fazer ali, decidiu retornar ao mundo dos vivos. Atravessou os véus do espaço interior e voltou até seus Mestres.
Não contaria a verdade. Não agora.
Assumiu a máscara de sempre, a de servo leal e silencioso. Eles já tinham problemas demais para lidar — e ele queria aproveitar cada instante que ainda restava ao lado deles.
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