Volume 2 – Arco 13
Capítulo 144: Mestre dos Fios
— Pois bem...
Os olhos de Anastasia, antes cheios de lágrimas e humanidade, brilharam em um vermelho incandescente, quase demoníaco. As pupilas dilataram-se, e as veias ao redor do rosto pulsaram com energia densa e escura.
O som que se seguiu foi um uivo agudo, como o de lâminas se multiplicando no ar.
SHRRRRRKKK!
Ao redor de seu corpo, centenas de novas adagas começaram a surgir. Elas brilhavam em tonalidades que oscilavam entre o rubro e o negro, flutuando ao seu redor como um enxame faminto.
Takashi, que observava de longe com seu arco preparado, sentiu o mundo girar. Aquela mudança... não era simples magia. Era uma presença. Uma entidade.
Mesmo à distância, ele percebeu. As flechas fantasmas, criadas com tanto cuidado e precisão, não destruiam mais as adagas. Elas batiam e se desfaziam, como se tivessem atingido algo infinitamente mais denso, mais sólido, mais vivo.
— Não... impossível... — murmurou Takashi, engolindo em seco.
Quis avisar o grupo, gritar, mas estava longe demais. O eco de sua voz jamais os alcançaria a tempo.
As adagas flutuaram em silêncio por alguns segundos, vibrando — e então, se moveram todas ao mesmo tempo.
Não seguiram qualquer lógica. Não havia formação, nem intenção aparente. Eram movimentos caóticos, rasgos sem direção, cortando o ar em todas as direções possíveis.
Mas cada um desses cortes atingia algo.
O primeiro foi Zhen.
No meio de sua descida, o monge foi golpeado por uma força invisível. Seu corpo desviou da trajetória como se tivesse sido atingido por uma parede de vento. Quando colidiu com o solo, o impacto fez o estalo seco de um osso quebrando ecoar por todo o campo.
— Ahh! — gritou o monge, sentindo o braço pendendo inutilmente ao lado do corpo.
Tentou entender o que o acertara. Mas quando olhou para o ombro, viu os cortes — profundos, sem origem, sem trajetória, apenas aberturas limpas e simétricas, como se a própria carne houvesse decidido se separar.
Quando encarou as adagas novas, e os ataques que causavam, estremeceu-se com o que vira. Algo que somente alguém com sua Essência ativada podia compreender e se amedrontar.
O segundo a ser atingido foi Sebastian.
O vampiro havia avançado, procurando decapitar Anastasia, quando sentiu uma pressão cortante. Um instante depois, seu braço direito voou no ar, separando-se do corpo com um jorro de sangue escuro.
Mesmo acostumado com a dor, Sebastian recuou, atônito. O instinto lhe dissera que precisava dar um passo para trás, e foi o que o salvou: diversos cortes como aquele desceram dos céus um pouco adiante.
Algo que ele não podia ver, é claro.
Erina foi a terceira.
Sem aviso, marcas finas começaram a surgir em suas manoplas. Ela as viu riscarem o metal como se uma criança desenhasse com uma agulha incandescente.
E então, a dor veio.
Os músculos de seus braços latejaram, os dedos formigaram até se tornarem insuportáveis. Por reflexo, a cavaleira soltou Anastasia. Quando olhou para as próprias mãos, percebeu que sua armadura havia sido penetrada — algo que jamais acontecera antes.
— Isso não é possível... minha armadura...
Não teve tempo de terminar.
Anastasia, com o olhar dominado e frio, agarrou o chicote que ainda lhe prendia o pescoço. O movimento foi violento. Puxou-o com força, o suficiente para erguer Gurok do chão, lançando o enorme orc para cima como se fosse um brinquedo.
No segundo seguinte, ela o atirou de volta contra o solo.
DOOOOM!
Somente então, cortou a corda do chicote com um gesto, libertando-se definitivamente.
Xin tentou reagir, mas o olhar de Anastasia — ou de Varelith — se voltou para ela.
Sem hesitar, as adagas começaram a se mover novamente, sem direção definida, fazendo cortes ao vento na direção da jovem.
— Gurok! — gritou Zhen, ofegante. — Proteja a Xin! AGORA!
Sem compreender o motivo, mas confiando plenamente na voz do monge, o orc agiu sem pensar. Pegou Xin nos braços e abraçou-a contra o peito, girando o corpo para que suas costas ficassem expostas às adagas.
SKRANGS!
Sentindo a pressão em suas costas, Gurok teve certeza de que vários cortas estavam sendo feitos contra ele. De fato, havia protegido Xin.
Zhen o observava de longe, o olhar cheio de respeito e pavor. Sabia que aqueles ataques não vinham de Anastasia — ao menos, não mais.
Aquela era Varelith, tomando o controle total.
E, pela primeira vez, o grupo compreendia o que significava enfrentar uma verdadeira Sombra.
Erina ainda encarava as próprias manoplas, observando com incredulidade os pequenos cortes e perfurações que agora marcavam o aço outrora impenetrável. As fissuras eram tão sutis que quase se confundiam com arranhões, mas o olhar treinado da Capitã sabia o que aquilo significava: sua defesa fora violada.
Seus subordinados se reorganizavam, formando um círculo improvisado, silencioso.
Então, uma voz ecoou.
— Sua armadura é de fato boa — disse Varelith, falando através da boca de Anastasia, mas com um timbre que parecia ressoar dentro da mente da cavaleira. — Mas não há proteção contra ataques de natureza mágica, nem contra aqueles que carregam Essência.
Erina ergueu o olhar com dificuldade. A marionete sorria, um sorriso que era mais um aviso do que um gesto.
— Veja seu paladino, por exemplo.
Erina virou-se. Gurok, ainda estava de pé. Sua armadura brilhava ilesa, como se os cortes invisíveis jamais o tivessem tocado.
— Ele e Takashi são os únicos que utilizam equipamento Arcanos — Varelith continuou, o olhar alternando entre o orc e o arqueiro, como quem observa peças de um tabuleiro. — Embora o paladino vista algo verdadeiramente incrível, mesmo o Flecha Fantasma é incapaz de mover uma única adaga minha.
A confusão estampou-se em seu rosto, e Varelith, notando isso, sorriu com piedade.
— Vejo em seus olhos que ainda não compreendeu. Permita-me demonstrar.
Com um gesto simples, quase preguiçoso, Varelith invocou uma adaga ao seu lado. O metal surgiu do ar, rodopiando em espiral, cintilando com uma luz fria. Ela a apontou diretamente para o rosto de Erina.
Seu elmo se fechou automaticamente.
A adaga, não a tocou. Movimentou-se no ar, em um arco curto, e cortou apenas o vazio entre ambas.
Por um momento, Erina acreditou ter se protegido do corte invisível. Então, sentiu um calor súbito em sua bochecha.
Abaixando o elmo, levou a mão ao rosto, encontrou sangue. Um corte fino, superficial, mas profundo o bastante para fazer o corpo estremecer.
Vagarosamente, equipou novamente o elmo. A lâmina não a havia tocado — sequer se afastara de Varelith. Mesmo assim, o sangue escorria pela lateral do rosto.
Tocou o metal do elmo e percebeu o impossível: havia um corte ali também.
— Entende agora? — disse Varelith, inclinando a cabeça levemente para o lado, os olhos brilhando com crueldade serena. — Ataques carregados com Essência só podem ser contemplados por aqueles que também estão emitindo sua própria Essência. Algo que vocês ainda não têm domínio.
Ainda que tivesse a prova daquilo em seu rosto, Erina ainda não conseguia acreditar. Havia vistos tais ataques sendo feitos por Budai e por Zhen.
“Será que os monges são uma exceção?”
Correto. Pois a Essência se tornou uma energia que acompanham toda a sua existência. Tão comum quanto a Mana para um mago.
— Vocês não têm chances de vencer — reforçou Varelith. — Entreguem-se antes que eu precise matar alguém.
O silêncio que se seguiu foi sufocante.
O vento havia parado, e até o estalar das adagas suspensas no ar parecia ter cessado.
Erina respirava com dificuldade. Podia sentir seu espírito murchando, como uma vela queimada até o pavio. Seu corpo doía, a mente pesava, e o sangue ainda escorria, quente, pelo rosto.
Mas, atrás dela, seus subordinados continuavam de pé. Exaustos, feridos, mas firmes.
Varelith percebeu aquilo.
— Infelizmente, seus homens parecem ainda possuem esperanças — A voz da Sombra agora soava impaciente, fria, despida de emoção. — Ordene que cessem seus ataques, ou eu os eliminarei, um por um.
A Capitã não respondeu. Tentou abrir a boca, mas nenhum som saiu.
Por dentro, ela queria se render. O impulso era esmagador — queria clamar pelo fim da luta, pedir perdão, qualquer coisa que garantisse a sobrevivência de seus companheiros.
Mas havia algo dentro dela, minúsculo, quase invisível, que a impedia de desistir.
Uma centelha, uma fagulha teimosa — o instinto de uma guerreira que recusava morrer sem lutar.
Varelith percebeu essa resistência silenciosa. E, ao contrário do que se esperava, sorriu com admiração genuína.
— Pois bem... — disse ela, endireitando o corpo.
Atrás de si, o ar tremeu, e adagas moveram-se para vir ao seu redor.
As lâminas se ergueram lentamente, como pétalas de uma flor feita de morte, apontando para cada um dos guerreiros à frente dela.
E ainda assim, ninguém recuou.
Instintivamente, Erina correu para protegê-los.
Seu corpo, já exausto, moveu-se antes mesmo da razão alcançar o pensamento.
A Capitã agarrou o escudo caído, erguendo-o diante de si como quem tenta conter uma tempestade com as próprias mãos.
Deixou os ombros de fora, para que seus companheiros pudessem se abrigar atrás dela.
Varelith observou o gesto com um brilho curioso no olhar.
— Que nobreza tola... mas linda. — murmurou, encantada por um instante.
Ainda assim, não encerrou o ataque.
As adagas começaram a se mover.
O ar sibilou. E então, o som de centenas de lâminas cortando o vento encheu o campo.
Zhen foi o único a entender o que estava prestes a acontecer. Seu corpo inteiro reagiu antes mesmo da mente formular as palavras.
— Protejam-se! — gritou ao mesmo tempo que Erina.
Os guerreiros se moveram por puro instinto. Correram e se alinharam atrás da Capitã, formando uma pequena fileira improvisada — Sebastian, Zhen, Takashi, Xin e Gurok, nesta ordem.
E então, o massacre começou.
As adagas começaram a realizar seus ataques, cortando o ar repetidas vezes.
O grande escudo de Erina foi o primeiro a ceder — rasgado como pergaminho, suas bordas se dissolvendo em estilhaços metálicos. Logo depois, a armadura negra da Capitã começou a se abrir, riscada por centenas de fendas que exalavam faíscas e sangue.
Ela resistiu o quanto pôde, mantendo-se firme mesmo quando sentiu os cortes atravessarem o aço e morderem sua pele.
Os gritos começaram.
Sebastian, Zhen e Takashi urravam em dor. Gurok rugia, impotente, enquanto as lâminas ricocheteavam contra sua couraça arcana. Xin, protegida atrás do orc, chorava agarrada a ele, ouvindo o som das lâminas se chocando contra seus companheiros.
Mesmo ferida, Erina se recusava a cair.
Seu cabelo começou a brilhar — um dourado etéreo substituindo o tom escuro.
E, num lampejo esverdeado, sua aura se expandiu, envolvendo o grupo com uma energia suave, quente, quase materna.
Sua magia curativa, direcionada para cada um deles, negligenciando a si mesma.
O corpo dela era o escudo.
A dor deles, agora, era sua.
Varelith observava aquilo em silêncio. Havia algo fascinante na obstinação humana — um brilho breve, mas intenso, que nem a eternidade das Sombras conseguia compreender.
— Decisão sábia... e estúpida. — sussurrou.
Os minutos se arrastaram como horas.
Entre gritos, soluços e o som cortante das adagas, o campo se transformou num coro de sofrimento.
O sangue formava pequenos riachos aos pés da Capitã.
Gurok não se moveu.
Mesmo com a fúria borbulhando dentro de si, não ousou sair de seu lugar. Sabia — sabia — que se desse um passo, Xin seria despedaçada.
— Fique! — gritou Zhen, a voz rouca, entre gemidos de dor. — Nós aguentamos!
Sebastian e Takashi assentiram, com os olhos marejados e os dentes cerrados.
E assim permaneceram, unidos atrás de Erina, até o último corte.
Quando o ataque cessou, o silêncio voltou.
Então, lentamente, as feridas começaram a fechar-se.
A aura verde de Erina, que os mantinha vivos, continuava brilhando, mas cada vez mais fraca — como uma lamparina que se esgota.
As dores sumiram.
Mas Erina... não se movia.
A Capitã estava de joelhos.
Sua armadura — reduzida a pedaços
Seu escudo — um fragmento grotesco de ferro, sustentado apenas pela coluna central.
As roupas, rasgadas; a pele, marcada de cortes.
E, mesmo assim, ela ainda segurava o escudo. Como se ainda houvesse algo para proteger.
Varelith caminhou até ela, lenta, serena, os passos ressoando como sinos fúnebres.
— Uma morte é o bastante — disse ela, calmamente.
O grupo se entreolhou, confuso. Erina levantou o olhar, sem compreender.
— Seu Vice-líder está morto — continuou Varelith. — Kenshiro Torison está morto. Viktor o matou. Deveria prestar suas condolências, já que ele era seu marido.
Aquelas palavras atravessaram o campo como uma lâmina.
O rosto de Erina se desfez em luto puro.
Ela tentou se erguer, vacilando, tropeçando nos próprios passos. Varelith, por algum motivo, ofereceu-lhe a mão, ajudando-a a ficar de pé e indicando, com um gesto sutil, a direção em que deveria correr.
Cambaleante, Erina deu alguns passos. Ainda segurava o escudo quebrado, como se aquilo fosse sua única âncora no mundo.
Atrás dela, o grupo baixava as cabeças, em silêncio.
Nenhum som, apenas o peso da perda pairando sobre todos.
Varelith voltou-se para eles.
— Deveriam ser gratos a ele. — disse, impassível. — Do contrário, eu não teria cessado meus ataques. Ainda que morto, Kenshiro parece tê-los protegido.
Não era um discurso, nem um insulto. Apenas a verdade — dita com a naturalidade de quem já esquecera o valor da vida.
Então, algo mudou no olhar da Sombra.
Por um instante, seus olhos percorreram o campo. O sorriso sereno se desfez, e sua expressão tornou-se alerta.
Um pensamento atravessou sua mente, cortante como as lâminas que controlava.
“Onde foi parar o vampiro?”
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