Volume 2 – Arco 13

Capítulo 134: Entre Histórias e Álcool

A terceira rodada chegava ao fim quando a porta do quarto dos fundos se abriu novamente. 

O som dos passos lentos e descompassados ecoou no salão. 

Vaelis surgiu primeiro, o rosto corado, os cabelos desalinhados e um brilho estranho dançando em seus olhos. Atrás dela, Venus caminhava com a elegância de quem acabara de vencer uma disputa, um fino traço de vapor gelado escapando de seus lábios entreabertos. 

A pequena névoa se dissipou no ar como fumaça mágica. 

Era a prova de que a Súcubo realmente absorvera parte da energia de Vaelis — energia gelada, pura, e, de algum modo, deliciosa. 

A maga cambaleou até sua cadeira, afundando-se nela com um suspiro. 

Tentou erguer a caneca, mas quase derramou metade do conteúdo antes de conseguir beber. Assim que o líquido desceu pela garganta, o mundo pareceu se encaixar novamente — e sua expressão retomou a compostura de sempre. 

— Pronta para a segunda rodada? — perguntou Venus, inclinando-se sobre a bancada, o sorriso provocador emoldurado pelo brilho lilás de seus olhos. 

Vaelis levantou a mão em rendição. 

— Não, obrigada. 

— Hmmm... — Venus deu um risinho musical, ajeitando os cabelos. — Quanto aos demais... imagino que já tenham ouvido do que sou capaz... Fufufu... — Seus dedos traçaram um círculo no ar, como se marcasse cada um convite invisível. — Sabem onde me encontrar. 

Ela caminhou de volta ao quarto, balançando os quadris com a autoconfiança de uma deusa. Antes de fechar a porta, virou-se de perfil apenas o suficiente para lançar uma piscadela. 

Toc. 

A madeira se fechou, e uma pequena placa pendurada balançou de leve, refletindo a luz do salão. 

Em letras graciosas estava escrito:  Venus — 50 moedas. 

Por alguns segundos, ninguém disse nada. 

O silêncio era tão espesso que dava para ouvir o borbulhar das bebidas. 

Foi Vaelis quem percebeu primeiro o detalhe. 

— Espera um pouco... vocês ouviram?! 

— Não! — responderam todos em uníssono, alguns rápido demais, outros sem coragem de levantar o olhar. 

Kenshiro tossiu falsamente, tentando disfarçar o sorriso. 

Xin bebia compulsivamente, como se a bebida pudesse apagar memórias. 

Baldric apenas ria baixo, limpando um copo com o pano já encharcado. 

— Ahhh... — Levou as mãos ao rosto, corando ainda mais. — Eu sabia... 

Ei, pelo menos foi por uma boa causa — disse Takashi, levantando o copo. — Parecia que você precisava relaxar. 

Todos riram, compartilhando daquele momento, esquecendo-se, por um momento, do que viram em Phaneon. 

(...) 

O cheiro da madeira antiga, misturado ao leve odor de álcool e magia, criava um ar denso e confortável — o tipo de aconchego que só se encontra em lugares que não deveriam existir. 

Kenshiro girava o caneco lentamente nas mãos, observando o reflexo das luzes tremeluzir na superfície da bebida. Seus olhos estreitaram-se, carregando uma pergunta que já o corroía desde o instante em que cruzara aquelas portas. 

— Baldric — chamou ele, com um tom que fez todos os outros se calarem de imediato. — Qual é a história desse bar? Quero dizer... a história real. Por que ele existe em um lugar como esse? E como vocês conseguiram controlar uma Elemental, uma Serva tão poderosa, a Nami? 

Todos se entreolharam. Até mesmo Nami e Kaji, que brincavam no canto, pareceram desacelerar seus movimentos. 

Baldric ergueu as sobrancelhas, pensativo, antes de pousar a caneca e o pano que tinha nas mãos. Um pequeno sorriso cansado surgiu em seu rosto, como se a pergunta o fizesse viajar para tempos que já não voltariam. 

Hm... — murmurou, esfregando o queixo com os dedos. — Deixe-me ver se ainda consigo contar essa história direito... Faz tanto tempo que as lembranças parecem contos, e os contos... parecem mentiras. 

Ele se endireitou, os olhos agora mais sérios. 

— Há muito, muito tempo atrás... existia um grupo. Um grupo que se dizia o mais forte de sua era. Eu era parte dele. Fui o primeiro a me aposentar, e talvez o único que realmente quis viver em paz. 

Enquanto falava, suas mãos se moviam de maneira automática, limpando o balcão já limpo, como se o gesto o mantivesse ancorado no presente. 

— Os outros continuaram lutando, cada um por sua causa, até que o tempo os quebrou. Eu, por outro lado, fui recompensado por meus serviços. Recebi este lugar. Alguns dizem que herdei, outros dizem que ele foi criado para mim. A verdade é que a Maçã Encantada nasceu de magia antiga, daquelas que moldam o mundo e que, quando usadas, o próprio tempo hesita em fluir. 

O grupo o ouvia com atenção absoluta. Até mesmo Kael e Morpheos mantinham os olhos fixos no bartender. 

— Pouco depois — continuou ele —, Kael, Morpheos e Venus também se aposentaram. Todos velhos conhecidos meus, guerreiros cansados de guerras que ninguém lembrava mais. E, como a solidão é pior que qualquer inimigo, decidimos nos unir aqui. Trabalhar juntos, manter o local em pé, atender viajantes e aventureiros perdidos no tempo e no espaço. 

Ele fez uma pausa, servindo um pouco mais de bebida em sua própria caneca antes de prosseguir. 

— Quanto à Nami... — disse, olhando para o canto onde as duas pequenas esferas dançavam em espirais. — Encontrei-a séculos depois. Ela vivia sozinha em um lago cristalino. Um lugar morto, onde o vento não soprava e a água não refletia. Elementais não suportam a solidão, sabiam? Eles são feitos de energia viva, e quando estão sozinhos... simplesmente se desfazem. 

Felizmente, ou infelizmente, por ela ser uma Serva, sua vida não se desfez. Mas sem a família a quem servia, ela se viu perdida e sem propósito. Demorou longas décadas até ela se sentir à vontade com a gente. 

Kenshiro e Erina trocaram olhares. A expressão de ambos denunciava que compreendiam o peso daquelas palavras. 

Uma das famílias Descendentes extintas. 

— Apesar do isolamento — prosseguiu Baldric —, este bar já foi extremamente movimentado. Cavaleiros, magos, caçadores, e até Heróis de verdade cruzaram essas portas. Era um ponto neutro, um refúgio fora do alcance de governos, reinos e até do próprio Império. 

— Mas como isso é possível? — perguntou Takashi, confuso. — Como um lugar desses passa despercebido por tanto tempo? 

Baldric ergueu o olhar, seus olhos ganhando um brilho quase místico. 

— Porque este lugar não existe. — Disse com calma. — Existe um contrato invisível, selado no momento em que cruzam aquela porta. Quem entra aqui... nunca poderá falar, descrever ou mesmo insinuar sobre este bar. Nenhum juramento, nenhuma tortura, nenhuma confissão quebraria esse pacto. A Maçã Encantada é um espaço fora da realidade, um eco no vazio entre mundos. 

— Então estamos presos aqui? — perguntou Xin, não compreendo completamente. 

— De forma alguma — sorriu Baldric. — Vocês podem ir embora quando quiserem. Mas ninguém jamais acreditaria em suas memórias. Talvez até duvidem delas. 

Soren, que até então permanecera calado, inclinou-se para frente.  

— Que tipo de magia vocês usam pra manter algo assim? 

— A magia mais antiga de todas, rapaz — respondeu Baldric, erguendo o indicador. — Aquela que precede o Império, os Deuses e as guerras. Uma magia cujo nomes, ditados e idiomas já foram esquecidos. 

Ele suspirou profundamente antes de completar, com uma ponta de melancolia: 

— É triste como as coisas acabaram assim... Queiram me perdoar, mas... vocês são o grupo mais fraco que já passou por este bar. 

Kenshiro o fitou com frieza, e Erina endireitou-se na cadeira, o som metálico de sua armadura ecoando no silêncio. Baldric, porém, não parecia ter dito aquilo por arrogância. Seu olhar era de lamento, não de desprezo. 

— E isso não é culpa de vocês. — Disse em tom firme. — O tempo é o maior inimigo de todos nós. Ele rouba a necessidade de lutar, a vontade de evoluir. O Império, por mais cruel que seja, trouxe paz. Uma paz longa demais... tão longa que acabou enfraquecendo o mundo. 

— Quer dizer que a paz é algo ruim? — perguntou Zhen. 

— A paz é boa quando nasce do equilíbrio — respondeu Baldric, apoiando-se no balcão. — Mas quando ela é imposta, quando apaga o fogo das gerações e faz as pessoas esquecerem porque lutam... ela deixa o mundo vulnerável. 

— Está dizendo que foi proposital? — perguntou Erina, estreitando os olhos — Que alguém quis nos deixar fracos? 

Baldric demorou a responder. Pegou sua caneca, observou o líquido dourado girar lentamente, e então murmurou: 

— Talvez sim. Talvez não. Mas a paz, assim como a guerra, tem donos. E quem a controla... controla o ritmo em que as civilizações adormecem. 

Por um instante, todos sentiram o peso do que aquilo significava. 

A paz — aquela pela qual tantos haviam morrido — talvez fosse apenas mais uma arma em mãos erradas. 

Baldric ergueu então a caneca, num gesto amistoso que quebrou o clima sombrio. 

— Enfim... — disse ele, com um leve sorriso. — Essas são apenas histórias antigas. E vocês, meus caros, estão prestes a escrever as suas. Que não seja a última, hein? 

Erina respirou fundo, tentando se recompor. Kenshiro, silencioso, observava seu reflexo na bebida. 

Por um breve instante, ninguém sabia se estavam num bar acolhedor... ou nas ruínas vivas de uma era esquecida. 

O crepitar das chamas nas lamparinas era o único som que acompanhava o grupo após a última revelação. A conversa anterior ainda pesava no ar, densa como o cheiro de vinho derramado no balcão. Os rostos estavam imóveis, tentando processar tudo o que Baldric dissera. Era como se cada palavra dele tivesse arranhado algo dentro de cada um — talvez a fé, talvez a esperança. 

Zhen, porém, ainda parecia preso a um pensamento antigo, um eco que ressoava em sua mente desde que chegara. Com as mãos entrelaçadas sobre os joelhos, ele finalmente levantou o olhar para o bartender. 

— Por acaso... Budai veio aqui? — perguntou, a voz saindo quase num sussurro. 

Baldric não respondeu de imediato. Seus olhos se desviaram para o nada — ou talvez para algum ponto distante demais para ser visto. O reflexo do fogo dançava em suas pupilas, e por um breve instante, ele pareceu envelhecer diante deles. 

— Uma única vez — respondeu por fim. Sua voz soou mais baixa do que o normal, arrastando uma nota de pesar. — Aquele monge... era alguém muito recluso. Silencioso, reservado, quase invisível. Mas havia algo nele, algo que sempre me fez acreditar que ele sabia. 

— Sabia o quê? — Insistiu Zhen. 

Baldric pousou a caneca sobre o balcão, inclinando o corpo para frente. A luz das chamas recortava suas feições, fazendo-o parecer uma estátua esculpida em bronze antigo. 

— Do que estava por vir — respondeu simplesmente. — Do fim. 

A resposta foi como uma lâmina fria atravessando o ar. Um silêncio incômodo tomou o ambiente, quebrado apenas pelo ranger do banco em que Kael se balançava, tentando disfarçar a tensão. 

— Mas... como pode afirmar algo assim? — perguntou Zhen, agora com a voz embargada. 

Baldric soltou um suspiro lento, cheio de melancolia.  

— Porque ele se despediu. E não me refiro a uma despedida comum, mas àquela que só fazem os que já aceitaram o próprio destino. Ele veio, tomou uma única taça de cerveja, e me disse: “Não os entedie com suas histórias.” 

Zhen o encarou, mudo.  

Gurok, percebendo o desconforto do monge, resolveu intervir: 

— Então vocês também fizeram parte dos Heróis antigos? Ou... dos primeiros, talvez? 

Baldric soltou uma risada curta, sem humor.  

— Antes dos primeiros. — respondeu, apoiando-se novamente no balcão. — Éramos de uma era que antecedeu os nomes, quando os Heróis ainda eram apenas guerreiros tentando sobreviver. Não creio que fôssemos tão fortes quanto eles, mas tínhamos uma coisa que muitos perderam com o tempo... — fez uma pausa, o olhar distante. — Fome. 

— Fome? — repetiu Soren, curioso. 

— Fome de viver, de vencer, de deixar uma marca — disse Baldric, o tom ganhando certa amargura. — Quando o mundo é jovem, as pessoas lutam por tudo. Quando o mundo envelhece, as pessoas lutam por nada. 

O silêncio pairou pesado outra vez. Erina cruzou os braços, olhando-o com atenção.  

— E se pedíssemos que lutasse conosco mais uma vez? Você e os outros... 

— Não — interrompeu Baldric antes mesmo que ela terminasse. O tom foi cortante, quase paternal. — Nenhum de nós sairá daqui. 

Erina se inclinou sobre o balcão, o olhar firme.  

— Nem mesmo se o mundo estiver prestes a ser destruído? 

Baldric a encarou sem piscar.  

— Mesmo que o mundo seja destruído. 

Foi uma resposta simples, devastadora. 

As palavras deixaram um vazio no peito de todos. A realidade se tornava cada vez mais cruel: estavam por conta própria. Nenhum deus, nenhum herói, nenhum salvador. Apenas eles, um punhado de sobreviventes infortunados tentando entender o tamanho da própria responsabilidade. 

Xin, percebendo o peso que recaía sobre o grupo, tentou aliviar o clima. Endireitou-se no banco e, com um sorriso envergonhado, perguntou: 

Hm... só por curiosidade, Baldric... para onde foram nossas armas? 

O homem pareceu surpreso com a pergunta, logo voltou ao seu tom sereno. 

— Estão em algum lugar entre o espaço e o tempo — respondeu. — Assim que saírem deste plano, tudo voltará às suas mãos, como se nunca tivessem perdido nada. 

— E quanto às nossas vestes? — perguntou Gurok, cruzando os braços, cético. — Manoplas também podem ser consideradas armas, não? 

Baldric soltou uma gargalhada breve.  

Ah, sim! Por isso mantenho Morpheos por perto. — Apontou com o queixo para o canto, onde o gigante dormia, encurvado sobre si mesmo, roncando baixo. — Ele é o responsável por garantir que ninguém tente... digamos... testar os limites do bom senso. 

— Parece bem vigilante... — murmurou Takashi, irônico. 

— Acredite, ele acorda quando precisa — respondeu Baldric com um sorriso. — Já vi clientes sendo arremessados pelas janelas, e olha que este lugar nem tem janelas! 

As risadas que se seguiram foram suaves, quase tímidas, mas bem-vindas. O ambiente pareceu respirar outra vez. 

— Mas, para ser sincero — continuou o bartender —, eu só decidi permitir roupas depois de um... incidente. 

— Incidente? — perguntou Soren. 

— Sim. Um cavaleiro negro — respondeu Baldric, balançando a cabeça em lembrança. — Um sujeito intimidador, coberto da cabeça aos pés. Quando o encanto do portal o despojou de tudo, descobrimos que ele era magricela, pálido como um fantasma e... digamos... não tão ameaçador quanto imaginávamos. Virou piada entre as mesas por semanas. 

Alguns riram alto, mas o casal — Kenshiro e Erina — permanecia sério, o olhar perdido. Ambos sabiam que, mesmo com armas e armaduras, enfrentar Varelith seria quase impossível. A diferença de poder era colossal. 

Foi nesse momento que o som da porta se abrindo quebrou a conversa. 

Todos se viraram. 

Ren e Fox estavam ali, parados no limiar. 

Ren olhou o grupo um a um, depois pousou os olhos em Baldric. 

— Acho que está na hora de ir — disse, com um tom grave. 

O bar silenciou. 

E, pela primeira vez desde que haviam chegado, parecia que até a própria Maçã Encantada — viva, de certa forma — continha a respiração, esperando para ver se realmente seria o fim daquele refúgio... ou apenas o retorno da jornada mais perigosa de suas vidas. 

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