Volume 2 – Arco 12

Capítulo 130: Kalila

Enquanto caminhava sozinho entre as cinzas, o som imaginário de passos ecoava atrás dele — passos que não existiam. 

Ren não se virou. Sabia de quem eram. Ainda que corresse, jamais escaparia de seu passado, sempre se aproximando para perturbá-lo.  

Era sempre a mesma lembrança. Uma lembrança que lhe trazia felicidade… e uma dor que jamais diminuía. 

O cenário em sua mente mudava, dissolvendo as ruínas em tons dourados. De repente, estava de novo na antiga torre, subindo a grande escadaria em espiral. As paredes estavam íntegras, adornadas com tapeçarias e estandartes que balançavam sob a luz das tochas. E atrás dele, a voz que amava mais que tudo ecoava, viva e cheia de riso. 

A dona da voz, sendo a dona dos passos. 

— Você está me escondendo algo, eu sei! 

— Não é nada, Kalila! — respondeu Ren, tentando conter o riso. — Eu já disse, só pedi ajuda para os seus pais... 

— Sei! O grande Ren pedindo ajuda... Conta outra! 

— Ninguém me chama assim... 

— Prefere que eu te chame de “Juiz”? 

Ren suspirou, com um sorriso tímido.  

— O povo de Phareon me nomeou assim apenas para arranjar mais uma desculpa para festas. Você sabe disso! 

— Tanto faz... — disse ela, fingindo desinteresse, enquanto estalava os dedos. 

Uma pequena caixinha de música apareceu entre suas mãos. 

— Se não vai me contar, parece que vou ter que descobrir sozinha... 

Ren arregalou os olhos. 

— Kalila, não! Espere! 

Mas já era tarde. 

A caixa se abriu, um brilho intenso tomou tudo. 

— Aí! — reclamou ela, levando a mão aos olhos. — Uma pegadinha? Era isso que você estava planejando? 

Quando a luz diminuiu, Kalila percebeu que não estava mais na torre. O chão sob seus pés era branco, liso, sem forma. O horizonte se perdia em névoa. 

— Está criando um espaço novo? — murmurou, impressionada. — Hm... Pelo trabalho, até que não está mal para um amador... 

Sorriu. 

Aquele era o tipo de magia que ela própria achava fascinante, um tipo da magia de ilusão, a arte de criar cenários, muito utilizados para sonhar acordardo. 

Sabia que esse tipo de feitiço permitia a criação de mundos artificiais, completos, onde cada pessoa era um reflexo programado, e cada gesto tinha um propósito. Era como brincar de ser deus. Mas o feitiço que Ren tentava criar parecia lento, pesado. Ela podia sentir o esforço na textura do espaço, na demora do ar para se formar. 

— Deve ser por isso que pediu ajuda — disse Kalila, rindo sozinha. — Esse mundo está pesado mesmo. 

E então, num piscar de olhos, o mundo carregou. 

Kalila se viu em pé, diante de um altar, sob o céu límpido de uma manhã dourada. Flores brancas desabrochavam nas varandas, sinos soavam ao longe. As pessoas da vila — todos que conhecia e amava — estavam ali, olhando-a com ternura. 

Ela olhou para si e, por um instante, ficou sem fôlego.  

Usava um vestido de noiva. Os véus caíam sobre os ombros, o tecido cintilava como seda viva, e cada passo fazia as pétalas aos seus pés dançarem. 

O Ancião Amosek sorria diante do altar, aguardando o noivo. 

— Mas que droga! — A voz familiar ecoou atrás dela. 

Ren apareceu, ajustando as mangas de um terno simples, o mesmo que usava em dias comuns. 

— Você demorou — disse Kalila com um sorriso provocativo. 

Não era segredo para ninguém. 

Toda a vila sabia — Ren e Kalila eram um casal desde o primeiro olhar. E ainda que nenhum pedido oficial tivesse sido feito, todos aguardavam aquele dia como se já estivesse escrito nas estrelas. 

Ren ajeitou a gravata que insistia em ficar torta. 

— Eu ainda não encontrei o terno ideal... 

— Essa era a razão de você ainda guardar segredo? — perguntou ela, divertida. 

— Não... — ele respondeu, sorrindo com o canto da boca. — É que a música está baixa demais. 

Kalila olhou para os músicos. Todos tocavam com entusiasmo, mas nenhum som saía dos instrumentos. 

Riu alto, levando a mão à boca. 

— Como é amador! 

— Ei! — protestou Ren, fingindo ofensa. — Eu estou tentando o meu melhor! 

Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, Kalila se aproximou e o beijou, roubando-lhe as palavras. O toque dela era leve, mas verdadeiro, o tipo de gesto que fazia o tempo parar. 

— Eu sei, seu bobo! — disse, com os olhos brilhando. — Mas podia ter pedido a minha ajuda. 

— Aí não seria mais surpresa, boba! 

— Hm! — empinou o nariz, fingindo desdém. — Você nunca conseguiu esconder nada de mim desde o dia que apareceu. Eu sempre soube que estava caidinho por mim. 

Ren suspirou, incapaz de conter o riso. 

Aquele era o mesmo diálogo de sempre, repetido, refeito, ensaiado inúmeras vezes, mas ele ainda o amava. 

Kalila então estendeu a mão, o rosto iluminado pelo brilho suave do entardecer. 

— E então? — perguntou num tom encantador. — Não está se esquecendo de nada? 

Ren riu sozinho. 

Ajoelhou-se diante dela, com um sorriso tímido, e retirou um pequeno anel de prata de dentro do bolso. 

A joia era simples, feita por suas próprias mãos; imperfeita, sincera. 

— Kalila Phareos — começou ele, a voz trêmula, como quem fala um feitiço. — Conceder-me-ia a honra de tê-la como minha esposa? 

As lágrimas ameaçaram escapar dos olhos dela. 

— Eu, Kalila Phareos, — disse, com a voz embargada — concedo-te a honra de ser meu marido... com uma condição: de nunca parar de me amar. 

Ren sorriu e colocou o anel em seu dedo. 

— Eu nunca deixarei de te amar... 

O beijo veio em seguida, doce e demorado. E quando seus lábios se tocaram, toda a vila explodiu em comemoração. Pétalas flutuavam no ar, crianças corriam entre as flores, e o sol — o mesmo sol que nunca nascia sobre as ruínas reais — brilhava como testemunha. 

Ren olhou para Kalila, que acariciava o ventre com ternura.  Alguns já haviam notado — a barriga dela começava a crescer. 

Era certo que o casamento aconteceria em breve. 

Mas no fundo, Ren sabia: aquele dia, aquele altar, aquele beijo... aquele momento criado artificialmente fora o mais próximo que tiveram de um verdadeiro. 

(...) 

Sua lembrança mais feliz era também aquela que o condenava aos piores pesadelos. Toda vez que fechava os olhos, a cena voltava — doce, vibrante e, logo em seguida, corrompida. 

— Tem certeza de que precisam ir? — perguntou Ren, com a voz baixa, quase suplicante. 

Kalila sorriu, ajeitando o manto azul-claro que usava sobre os ombros. 

— Sim, querido. Você sabe como o Império é: querem que registremos todos os livros, pergaminhos e notícias do mundo inteiro. 

Ren segurou a mão dela, tentando esconder o nervosismo. 

— Mas deixe seus pais irem. Vamos aproveitar! A vila inteira vai festejar em nossa homenagem! Nós... nem chegamos a ir para o altar... 

— Apesar de ser a coisa que eu mais quero — Ela riu, o som leve e cristalino —, eu preciso ir desta vez. Agora que estou casada, preciso assumir as funções de uma Phareos. 

 — Então eu vou com você! 

Ren tentou embarcar na carruagem, mas Kalila o impediu com um toque suave no peito. 

— Não, não, não. — ela respondeu, rindo. — Se você vier junto, eles não poderão festejar. 

— Mas amor... 

— Pense só — Seus olhos brilharam com malícia doce —, em vez de três dias, a festa do nosso casamento pode durar uma semana... ou duas! Vai depender do tempo que essa viagem levar! 

Ren não conseguiu conter o riso. 

— Você nunca gostou de festas. 

— Esta é a única em que eu participaria — respondeu, antes de beijá-lo. O beijo foi rápido, carregado de promessa. 

Ren segurou a mão dela até o último instante, os dedos se soltando lentamente enquanto a carruagem começava a se mover. 

— Por favor, se cuide! — gritou. 

— Não se preocupe, meu amado. O que poderia acontecer? — disse ela, sorrindo. 

O ranger das rodas sobre a estrada foi o último som real que ouviu. 

Então, as visões vieram. 

Fogo. O cheiro de carne queimada. Cavalos em pânico. Chamas devorando o céu. 

Os mortos... o massacre... o fogo... morte. 

Pedidos de ajuda sufocados pelo estalar das chamas. 

Dias. Noites. Sem comida. Sem sono. 

"Eles estão lá fora... Batendo às portas.  Sussurrando. Chamando seus nomes". 

"Eles querem nossa morte". 

Morte. 

Morte.  

Morte. 

O eco não vinha de fora — vinha de dentro da mente de Ren, como um tambor repetindo o mesmo golpe. 

Fracasso. 

Culpa. 

As imagens se sobrepunham: a estrada. A emboscada. Sangue escorrendo no chão. Pegadas. Rastros. Uma caverna. Mais corpos. Mais silêncio. 

Uma gosma escura. Um choro fraco. Um bebê. 

Kalila. 

Bandidos.  Assassinos.  Vingança.  

Esperança. 

Então, uma última lembrança — o toque dela. 

— Amor... finalmente... ao menos você... ao menos você... 

E o resto foi engolido por um rugido. 

— AAAAAAGGGGHHHHHHHHH! AAAAAAAHHHHHHHHHHH! 

E mesmo depois que a garganta se calou, os ecos continuaram. 

Gritos que só ele podia ouvir. Gritos que jamais cessariam. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora