Volume 2 – Arco 12

Capítulo 129: Phareon

Kenshiro observou o primo pegar a pequena caixa de música. 

Quando Ren deu corda, a melodia começou a tocar, agora mais alta, clara, viva. A música suave que antes ecoava de forma distante era, afinal, apenas outra ilusão — fosse dela própria ou do poder que permeava o lugar. 

A penumbra que cobria o ambiente começou a ceder. 

As sombras se afastaram lentamente, permitindo que a luz das janelas e da porta finalmente adentrasse com naturalidade. 

Kenshiro sentiu o estômago revirar. O que ele via diante de si não poderia ser real. 

O interior da torre estava completamente destruído. As paredes, o piso, as colunas — nada havia escapado das chamas. Tudo ali havia sido devorado pelo fogo, e, mesmo assim, de alguma forma inexplicável, a estrutura permanecia de pé, sustentada por algo que já não era força, talvez apenas teimosia. 

Quando ergueu o olhar, viu as escadas subindo em espiral até perder-se na escuridão, circundando o vazio. A cada andar, prateleiras inteiras se estendiam como cicatrizes queimadas. Ali deveriam existir dezenas de milhares de livros, registros de eras, saberes e história, agora reduzidos a carvão. 

Nenhuma página sobrevivera. 

Kenshiro abaixou o olhar e percebeu que o chão estava coberto por uma camada espessa de cinzas. Cinzas demais para serem apenas de móveis ou pergaminhos. 

— Ironicamente — disse Ren, sem emoção —, foi a maneira ideal de impedir que voltassem como Renascidos. 

Kenshiro olhou para ele, horrorizado. 

— Então você...?! 

— Não, Kenshiro. Eu não matei ninguém. Eu... Eu não fiz nada. 

As palavras pairaram no ar como se fossem marcar sua lápide. 

Com a caixinha de música ainda em mãos, Ren caminhou em direção à saída. Kenshiro o seguiu, em silêncio. 

Do lado de fora, a visão era ainda mais dolorosa. O Farol do Saber, antes uma torre imponente, um santuário de conhecimento e vida, agora se erguia cinzento, torto, decrépito, como se o próprio tempo tivesse desistido de sustentá-lo. 

Erina, Fox e Kaji aguardavam próximos à estrada. Quando viram a verdadeira forma da torre, recuaram instintivamente. Era como se, ao revelar-se, o lugar exalasse o peso de todos os fantasmas que abrigara. 

Ren e Kenshiro se aproximaram. 

Por um instante, todos se entreolharam, em busca de uma palavra, uma explicação, um gesto. 

Nada veio. 

— Podemos ir? — perguntou Ren, voltando-se para a vila. 

Sua voz estava serena, mas havia nela uma exaustão que nenhum descanso poderia curar. 

Ninguém respondeu. Nem era preciso. 

O som da caixinha de música acompanhou os primeiros passos deles, como uma despedida. 

A cada passo dado, a pequena caixinha de música revelava um pouco mais da verdadeira natureza daquele lugar, destruindo as últimas ilusões que ainda resistiam. A melodia, antes suave e acolhedora, agora soava como o cântico fúnebre da própria vila, cada nota dissipando um véu, cada acorde arrancando o resto da magia. 

Nem a fauna, nem a flora foram poupadas. 

As árvores, antes cheias de vida, agora eram esqueletos retorcidos, marcados por fogo antigo. Entre as cinzas, ossadas de animais jaziam expostas, contorcendo-se sob o toque do vento. 

Não havia vulcão algum nas redondezas que pudesse justificar tamanha destruição. 

Quando enfim chegaram à entrada da vila, perceberam que Ren funcionava como um delimitador da verdade. Cada passo dele adiante fazia o falso se desfazer. Onde passava, o chão rachava, as cores se dissolviam, e o ar se tornava mais denso. 

A vila verdadeira era muito maior do que a ilusão mostrara — e, por isso mesmo, o desastre que viam era ainda mais terrível. 

Cada casa estava queimada, cada rua tomada por cinzas. O que um dia fora madeira, tecido, vida, agora não passava de poeira. Nem mesmo as pedras haviam escapado; o calor as tornara negras e quebradiças. 

O cenário que antes parecia encantador, vibrante e cheio de cor, agora se transformava em um retrato acinzentado da morte. 

Lembrava Shenxi, e talvez fosse pior. 

Próximos ao centro, encontraram os companheiros de jornada. Todos estavam deitados, em um sono profundo, próximos ao local onde o Ancião tocara o sino — o mesmo sino que servira como catalisador da ilusão. 

Ren se aproximou e o tocou. 

Nenhum som ecoou. Mesmo assim, todos despertaram, como se o toque silencioso tivesse rompido o feitiço, o sonho. 

Abriram os olhos e, por um instante, não souberam onde estavam. Quando reconheceram o cenário, o pavor tomou conta. 

Diante deles, havia apenas uma cidade fantasma, consumida pelo fogo. O ar cheirava a cinza e ferro. O chão, coberto de pó, fosse dos objetos, residências ou seres vivos. 

Xin estremeceu. As lembranças de Shenxi voltaram como facas à mente. Zhen a segurou com força, tentando mantê-la de pé. 

— Kenshiro, Erina... — disse Zhen, com a voz embargada. — O que está acontecendo? 

Erina olhou para Ren, que continuava a andar, calado, como se o peso do mundo o seguisse. 

— Agora não — respondeu, em tom baixo. — Explico tudo quando puder. 

E seguiram em silêncio. 

Cada passo de Ren desmantelava mais um pedaço do falso paraíso. E, a cada novo fragmento de verdade revelada, a esperança se esvaía um pouco mais. Não havia vozes, risos, nem crianças correndo — apenas o som distante da caixinha, insistindo em tocar pela última vez. 

Por um instante, todos ainda mantiveram a esperança de encontrar alguém vivo. Uma única alma que tivesse escapado do massacre.  

Mas a realidade, como sempre, era cruel demais para concessões. 

Quando chegaram ao limite da vila, Ren parou. 

Devagar, virou-se para trás. 

Instintivamente, todos o imitaram. 

Uma última ilusão ainda resistia. 

Entre as ruínas, flutuando como um espectro, havia um grande cartaz erguido sobre as cinzas, em letras douradas e delicadas, lia-se: “O Casamento de Kalila e Ren.” 

O vento soprou, arrancando um pedaço do cartaz e levando-o para o céu. Por um instante, todos ficaram imóveis, observando o papel se desfazer em cinzas  e com ele, talvez, o último fragmento de esperança que restava a Ren. 

Enquanto a caixinha de música continuava a girar, novas figuras começaram a surgir em meio à névoa. Rostos familiares. 

Os taverneiros que serviram vinho, as crianças que brincaram nas barracas, os casais que dançaram no palco... Até o próprio Ancião apareceu, curvado, sereno, como se esperasse aquele momento desde sempre. 

— Adeus, Ancião Amosek... — murmurou Ren. 

O velho sorriu, inclinando levemente a cabeça e, com a mesma calma de quem encerra uma longa conversa, desfez-se em brumas, tornando-se parte da névoa. A única coisa que pareceu realmente viva. 

Ren então olhou para os demais rostos que o cercavam. Um a um, começou a chamá-los. 

— Adeus, Kharep... Tefaru... Nebre... Khamun... Thanefer... Bastira... Menura... 

Para cada nome pronunciado, uma vida se dissolvia diante deles, como se as palavras fossem o selo final de sua existência. 

Os outros observavam em silêncio, sem ousar interromper. 

Zhen apertava a mão de Xin, ambos buscando conforto e proteção. Sebastian assistia assustado, incapaz de compreender como fora enganado tão facilmente. Fox seguia indiferente, não podia ficar emotivo pelo que não era real. Kenshiro e Erina mantinham-se firmes, ainda que seus olhos estivessem marejados. 

Quantos os demais, apenas horror, espanto e o desejo que não fosse verdade. 

— Merina... Sahira... Tjaru... Pasekem... 

As últimas silhuetas se desvaneceram, deixando apenas o vento e o pó. 

A vila, por fim, revelava-se pelo que sempre fora: um amontoado de ruínas, cinzas e recordações de algo que nunca mais voltaria. 

Durante dez longos meses, aquele fora o lar de Ren. Um lar de fantasmas. E agora, seu último habitante se preparava para partir. 

Ele olhou para a caixinha de música em sua mão. A música enfim parara de tocar. Ainda que tentasse dar mais corda, nenhuma música jamais voltaria a soar.  

Com um gesto lento, fechou a tampa. 

— Adeus, Kalila. 

Colocou a caixinha no chão, entre as cinzas, como quem deposita flores sobre um túmulo. 

Virou-se e começou a caminhar rumo à floresta carbonizada. 

O grupo ficou parado por um instante, olhando-o se afastar. 

Lembraram-se de suas próprias perdas, das batalhas, das derrotas, das pessoas que não voltaram. Eles ainda tinham uns aos outros, e isso sempre fora o que os mantivera de pé. 

Ren, não. 

Ren havia enfrentado tudo sozinho. E quando tentara voltar para casa... não havia ninguém para recebê-lo. 

Kenshiro e Erina trocaram um olhar silencioso.  

A culpa pesava sobre ambos. Não eram diretamente responsáveis, mas sabiam, houvera tempo, houveram sinais, e ainda assim o deixaram sozinho. 

Ele, que sempre fora o mais gentil, o mais dedicado, o mais humano entre eles... Agora, restava apenas a sombra de quem fora, caminhando entre as cinzas de tudo o que amara. 

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