Volume 2 – Arco 12

Capítulo 128: Farol do Saber

Apenas alguns passos foram suficientes para perceber que aquele lugar já não pertencia ao mundo dos vivos. O ar era denso e úmido, o cheiro de madeira queimada misturado à ferrugem e à cinza que cobria o chão. 

A cada passo, um estalo de carvão morto soava como ossos se partindo. 

Erina parou. Um arrepio subiu-lhe a espinha, gelando até a alma. 

— Kenshiro... — Sua voz vacilou. — Acha que o Fox... matou o Ren? 

— Estou mais preocupado... — respondeu ele, cerrando os punhos —, se o Ren matou alguém. 

O tom de sua voz era seco, cortante. 

Dentro dele, a raiva queimava. Não apenas pela traição, mas pela culpa, a vergonha de pensar que seu próprio sangue poderia ser o responsável por tudo aquilo. 

O silêncio do farol era profundo, não vazio. 

De vez em quando, algo pingava, uma gota invisível que ecoava no escuro, como se o tempo ali tivesse parado e apodrecido. 

Então ouviram. 

Um som delicado, quase imperceptível. 

Uma melodia. 

A mesma música que embalara a vila horas antes, alegre, dançante, viva. 

Agora... Tocava mais lenta, trêmula, arranhada, como se a própria caixinha de música chorasse. 

Kenshiro reconheceu a melodia e sentiu o peito apertar. 

— É... a mesma canção... — murmurou. 

Erina assentiu, o olhar buscando na escuridão qualquer fonte de luz. 

A melodia se repetia em ciclos, como um feitiço hipnótico. 

Era impossível não perceber que, sob diferentes variações, todos os músicos da vila haviam tocado exatamente essa mesma sequência de notas — ora animadas, ora melancólicas, ora triunfais. Agora, no coração da torre, soava como um requiém, uma música fúnebre. 

— Ren! — chamou Kenshiro, a voz ecoando nas paredes úmidas. — Sabemos que está aí. Mostre-se! 

Por um instante, apenas o som da caixinha respondeu. 

Depois, uma fagulha de luz surgiu na escuridão — fraca, tremeluzente. Dela, formou-se o contorno de uma figura sentada ao lado de uma lareira apagada. 

A luz revelava apenas o suficiente para distinguir um rosto cansado, os olhos fundos e uma expressão que oscilava entre o arrependimento e o desprezo. 

Ren segurava em mãos uma pequena caixa de música, o objeto de onde vinha a melodia. Os dedos dele tremiam. Como se cada volta da manivela o torturasse. 

— Até vocês... — murmurou, a voz rouca, quebrada. — Até vocês duvidaram que ele fosse capaz de me matar. 

Soltou uma risada breve e seca. Um som que não combinava com alegria alguma. 

— Tenho certeza de que ele quis te poupar — disse Kenshiro, tentando manter a calma. 

Ren ergueu os olhos. 

— Vocês colocam fé demais nas pessoas. Isso é um erro que só leva à ruína. 

— Temos que ter fé em alguma coisa — replicou Erina, aproximando-se e colocando-se ao lado do marido. — Mas enganar aqueles que confiam em você... é a forma mais rápida de perdê-la. 

Kenshiro deu um passo à frente, a sombra dele se alongando pela luz fraca da lareira. 

— Nós somos família, Ren! — gritou, a voz carregada de fúria e mágoa. — Como pôde fazer uma coisa dessas? 

Ren não respondeu. Ficou imóvel, o olhar fixo na caixinha. 

— Me responda! 

O som da caixinha cessou abruptamente. 

Ren soltou um longo suspiro. 

— O que você queria que eu fizesse, Kenshiro?... — Sua voz soou mais distante, como se sua imagem fosse apenas uma ilusão. 

Atrás dele, as chamas da lareira se acenderam sozinhas. Delas, emergiu uma pintura antiga, pendurada acima da moldura de pedra — antes oculta pela escuridão. A imagem era de uma família: os Phareos, ainda jovens, sorridentes, imaculados. 

Um homem e uma mulher abraçados, uma filha adolescente de olhar esperançoso e, ao lado dela, Ren, sorrindo. 

— Eu falhei com eles — disse Ren, com voz rouca. — Todos eles. Fechou os olhos por um instante, apertando a caixa de música contra o peito. — Eu não consigo olhar para essa pintura... Ela me lembra que, mesmo com todo o poder que busquei, ainda fui incapaz de protegê-los. 

As chamas engoliram a imagem, queimando-a lentamente até restar apenas cinza e moldura. 

O cheiro de fumaça e memória queimada se espalhou pela torre. 

— Ao menos — completou Ren, com um riso triste —, só preciso me esforçar para não me lembrar dela. 

Erina recuou um passo, o coração apertado. 

— Varelith atacou os Phareos... — murmurou, compreendendo. 

Kenshiro fechou os olhos, engolindo a dor. Aproximou-se de Ren, tentando alcançar o primo por trás da insanidade. 

— Ren... nós sentimos muito. 

Diante de seus olhos, viram a fraca figura de Ren se esvair pelo ar. Ele desapareceu. Ou talvez nunca estivesse ali. 

A caixinha de música caiu no chão com um tilintar suave, e a melodia voltou a tocar por conta própria — agora lenta, distorcida, quase irreconhecível. 

A chama da lareira se apagou. 

O farol, outrora silencioso, gemeu como se tivesse vida, suas paredes ecoando um lamento que parecia vir de muito, muito longe. 

— Kenshiro! 

Quando o espadachim olhou para trás, o sangue gelou em suas veias. 

Ren estava ali, segurando-a, uma pequena adaga enferrujada pressionada contra o pescoço dela. 

O brilho da lâmina refletia a luz trêmula da lareira, e por um instante, parecia o fio de uma lembrança distorcida — algo que jamais deveria ter voltado à tona. 

— “Sentem muito”? — disse Ren, sua voz rasgando em agonia. — Vocês têm ideia do que eu passei?! Do que foi ficar sozinho aqui? Cercado por fantasmas e cinzas? Sem a minha família?! 

— A gente não sabia, Ren! — gritou Kenshiro, erguendo as mãos em sinal de paz. 

Ren gargalhou, uma risada vazia, quebrada. 

— É claro que não sabiam! — vociferou. — Estavam ocupados demais na lua de mel perfeita de vocês, não é? Sequer tiveram a decência de me contar que meu pai havia morrido! 

Erina prendeu a respiração, tentando não se mover. 

— Tiveram que fugir — continuou Ren, cuspindo as palavras —, e me deixar descobrir a verdade por conta própria! 

— Ren, nós... 

A adaga roçou o pescoço de Erina, interrompendo-a. Um filete de sangue escorreu. 

— Agora, Kenshiro — sussurrou Ren, os olhos ardendo. — Você quer mesmo saber o que eu senti? Quer sentir o vazio que eu senti? Acha que consegue suportar essa dor?! 

— Ren... — Kenshiro deu um passo à frente, controlando a respiração. — Você não está raciocinando direito. Não faça nada de que vá se arrepender depois. 

— Depois? — Ren riu, um som rouco, quase histérico. — Eu já fiz isso, Kenshiro. Já me arrependo de muita coisa. Uma má escolha a mais ou a menos... que diferença faz? 

Erina cerrou os dentes. O olhar dela se tornou gélido. 

Num movimento rápido e preciso, Erina agarrou o braço de Ren, girando o corpo e torcendo o pulso dele. A lâmina caiu em suas mãos.  

— Ainda que tivesse sucesso em me cortar... — murmurou Erina, cortando o próprio pescoço com a adaga, regerando no mesmo instante — não foi só minha força que melhorou. 

Erina manteve a postura ereta, o semblante firme. 

Kenshiro percebeu que ela tomaria as rédeas daquela conversa. 

— Nós também fomos atacados, Ren — disse ela, fria e controlada. — E sim, nós fugimos. 

Ela se aproximou um passo. 

— Sim, nós escolhemos não contar nada sobre a morte de Reiji Torison. Mas porque achávamos que você estava bem. 

A expressão de Ren vacilou por um instante. 

— Você não se lembra? — prosseguiu ela, firme. — Foi você quem escolheu partir. Você disse que queria seguir suas próprias respostas, que não queria se envolver na nossa jornada. Apenas respeitamos o seu desejo. 

— Viemos aqui porque não tínhamos mais escolha — disse Kenshiro, ajoelhando-se diante dele. — Precisamos de você, Ren. Você sabe o que está em jogo. 

Por um momento, o olhar de Ren se perdeu na distância. Depois, soltou uma risada baixa. 

— Sim... a Crônica. A profecia. — As palavras saíam arrastadas. — Conversei um pouco com o “Guerreiro do Sol”. Hehe...  Estamos condenados. 

— Talvez — respondeu Erina, a voz ainda inabalável. — Mas eu não sou o tipo de pessoa que fica esperando o fim do mundo. E, no fundo, tenho certeza de que você também não é. 

Ren ergueu a cabeça devagar. 

O rosto estava molhado de lágrimas, mas o sorriso... o sorriso era cruel. 

— Está enganada — As lágrimas escorreram como sangue sobre o rosto exausto. — A única diferença entre nós... é o tempo. Eu suportaria esses 5 anos perfeitamente, se eu tivesse Kalila ao meu lado...

A voz quebrou. Ergueu o olhar para Erina.  

— E você? Quanto tempo precisava? Dez anos? Vinte e cinco? Por que cinco era pouco tempo para você aproveitar o seu marido no seu paraíso, não é? E só por isso que está aqui... porque quer estender esse tempo! 

Erina estremeceu. As palavras dele atravessaram-na como facas. 

Porque ele estava certo. 

Se o fim do mundo não estivesse tão próximo, talvez ela e Kenshiro nunca tivessem voltado.  Talvez tivessem se deixado consumir juntos, em silêncio. 

As mãos da cavaleira tremeram. O rosto crispado, o corpo inteiro pedindo para reagir. 

Fechando os punhos, ela os ergueu, pronta para socá-lo — para calar aquele sorriso maldito. 

— Erina! — Kenshiro se colocou entre os dois. — Deixe que eu falo com ele. Vai lá fora se acalmar. 

Ela ficou imóvel por um instante. O olhar em chamas. 

— Não perca seu tempo, querido — disse por fim, a voz carregada de desprezo. — Ele não é mais o Ren que a gente conhecia... 

Ela virou as costas. O som de seus passos ecoou até desaparecer. 

Quando o silêncio retornou, Kenshiro sentou-se diante do primo. Apenas os dois. Entre eles, o vazio, e o eco da caixinha de música. 

— Ela está certa, Kenshiro — A voz de Ren saiu baixa, quase apagada, sem força nem emoção. — Vieram aqui apenas para perder tempo. 

Kenshiro sorriu. Um sorriso leve, cansado, mas verdadeiro. 

— Acho que ela está errada. Ah, e... não conte a ela que eu disse isso, por favor — completou com um tom brincalhão, tentando aliviar o ar denso ao redor deles. — Sua ilusão...  foi algo impressionante. 

Ren suspirou. 

— Os Phareos viveram aqui por muitas gerações. O próprio ambiente se tornou mágico. Eu só aprendi a modificá-lo — Sua voz fraquejou — Não sou um mago de verdade. 

— Então você pode fazer o que quiser dentro dela — disse Kenshiro, em tom brando. — E mesmo assim... escolheu criar um lugar pacífico. Um refúgio. Um lar. E eu agradeço por isso, Ren. Fazia tanto tempo que eu e Erina não nos sentíamos... vivos. 

Ren desviou o olhar. O elogio parecia feri-lo mais do que qualquer ofensa. 

— Se quiser enxergar dessa forma, a escolha é sua, Kenshiro. Mas... você ficaria feliz em saber que eu fiz vocês perderem três dias de viagem? 

— Três dias?! 

Ren assentiu lentamente. 

— Por três dias... mantive a ilusão. E teria mantido até o fim do mundo. 

Kenshiro tentou processar as palavras. Dentro daquela prisão dourada, onde acreditava terem se passado apenas horas, a vida lá fora já se movera sem eles. 

— Por qual razão você fez isso? — perguntou, com voz baixa. 

— ... 

O olhar de Ren vagava pelo vazio. 

Kenshiro suspirou. Ainda havia compaixão em seus olhos. Ainda via bondade ali — escondida, enterrada. Viva. 

— Somos mesmo muito diferentes, não é? — disse Kenshiro, sorrindo de leve. — Isso só me faz sentir ainda mais patético... 

Ren o observou, curioso. 

— Quando Reiji morreu — começou Kenshiro, com a voz pesada — eu me culpei por tudo. Achei que não era forte o suficiente. Achei que todo o meu treinamento, toda a minha dedicação, foram inúteis. 

Me afundei na bebida. Era a única coisa quente que descia pela minha garganta. E o pior... é que eu nem gosto de álcool! Haha! Eu só queria... sentir alguma coisa. 

Seu olhar se perdeu por um instante, revivendo os dias em que a dor era insuportável. 

Ren permaneceu em silêncio. 

— Eu descontei em Erina, em Kaji... — continuou Kenshiro, as palavras saindo entrecortadas. — Tornei a vida deles um inferno. Quando Erina descobriu o que aconteceu em Valéria... eu fiz pouco caso. Quando ela me contou que eram os assassinos dos pais dela, eu... fiz pouco caso. 

Um tremor sutil percorreu sua voz. 

— Ela me suportou por tempo demais. 

Ren baixou o olhar. 

— Então ela partiu sozinha para Valéria — prosseguiu Kenshiro. — Kaji se irritou comigo, e... me obrigou a encarar a verdade. Tivemos uma conversa longa, dolorosa. Pareceu durar dias, mas foram apenas horas. Horas. Malditas horas. 

Se eu não tivesse me embriagado tanto, talvez meus sentidos estivessem bons o bastante para perceber que havia bandidos perto de casa. Se eu tivesse ido com ela, se eu não tivesse perdido aquelas horas... talvez ela... 

Sua voz se desfez. Incapaz de completar, de revelar a verdade que atormentava tanto a sua alma. 

— A verdade, Ren... é que em todos os nossos duelos, eu nunca te venci de verdade. Toda vez que eu achava que tinha te acertado, eu sabia... você só estava me deixando vencer. Para me motivar. Para que eu achasse que estava evoluindo. 

Ren levantou o olhar, vendo seu primo desabar em lágrimas. Uma imagem patética a qual nenhum homem tinha coragem de demonstrar para outro. E mesmo assim, ali estava ele. 

— Eu sou muito fraco, Ren! — gritou Kenshiro, as lágrimas escorrendo livremente. — Ou você é terrivelmente forte... mas isso não importa! — Bateu o punho no chão. — O que importa é que eu não consigo fazer isso sozinho! Eu não consigo proteger ninguém sem você! Eu... eu não consigo proteger a Erina sem você! 

O eco das palavras reverberou pelas paredes da torre. 

— Kenshiro... — disse Ren, a voz embargada. 

— Por favor! — Kenshiro ajoelhou-se de vez, batendo a testa contra o chão frio. — Por favor! Eu sinto muito por tudo que você passou! Eu sinto muito pela sua família! Mas... eu imploro, Ren... não me deixe perder a minha também! 

Ren se levantou. 

Por um instante, ficou apenas olhando para o primo, o último membro de sua família, agora de joelhos, despedaçado diante dele. 

Era uma visão cruel. E verdadeira. 

Ele respirou fundo e, sem pensar, colocou a mão sobre a cabeça de Kenshiro. 

Ah, Kenshiro... — murmurou. — Somos mais parecidos do que imagina. Acontece que... meus fracassos ainda são maiores que os seus. 

Kenshiro ergueu o rosto, as lágrimas misturando-se ao suor e à poeira. 

— O quê...? 

Ren esboçou um sorriso fraco, quase terno. 

— Eu me juntarei a vocês. 

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