Volume 2 – Arco 12

Capítulo 123: Aspirantes

Ren caminhava lentamente pela feira improvisada, o som de risadas e música ecoando entre as barracas coloridas. O cheiro doce de açúcar queimado se misturava ao de fumaça e madeira úmida. 

Logo avistou Soren, o mago de fogo, cercado de crianças. O rapaz ria alto, o rosto iluminado pelo entusiasmo das pequenas, e o ar ao seu redor parecia cintilar levemente, como se o calor de sua magia escapasse com cada movimento. 

Ele mirava alvos de madeira com um estilingue, acertando quase todos. Cada acerto arrancava aplausos e gritos animados das crianças, inflando-lhe o peito de orgulho. Por um momento, parecia um garoto também — livre, leve, intocado pela maldade do mundo. 

— Está mandando bem — disse Ren, encostando-se na lateral da barraca com os braços cruzados e um sorriso de canto. 

Distraído em sua própria glória infantil, a repentina aproximação de um adulto, em especial, Ren, deu-lhe um susto tão grande que esquecera até onde estava. 

Soren acabou soltando a corda do estilingue num ângulo completamente errado. A esfera voou ricocheteando nas madeiras, batendo em panelas, garrafas e, por pura sorte — ou não—, derrubando todos os alvos ao mesmo tempo. 

As crianças explodiram em euforia. 

UAU! Isso foi incrível! 

— Ensina a gente, Soren! Ensina! 

— Eh... eu... não sei o que aconteceu — gaguejou Soren, coçando a nuca, completamente sem graça. 

Ren soltou uma risada breve, sincera. Então, ajoelhou-se para falar com as crianças.  

— Por favor, poderiam nos dar um minutinho? Vão lá pegar um algodão doce. Que tal? 

— Ebaaa! Algodão doce! Algodão doce! Algodão doce! — repetiram em coro, pulando de alegria. 

Ren as despediu com um cafuné e um sorriso quase paternal. Em poucos segundos, estavam todas correndo, cantando e rindo pela rua. 

O homem que cuidava da barraca entendeu o recado com um simples olhar de Ren e também se afastou, deixando o mago e o espadachim a sós. 

O silêncio se instalou, cortado apenas pelo estalar distante de fogueiras. 

Soren brincava com a correia do estilingue, evitando encarar o outro diretamente. 

— Essa seria a minha entrevista? — perguntou, tentando soar casual, mas sua voz tremia levemente. — Não há necessidade disso. Eu e Vaelis iremos partir assim que nossos objetivos forem alcançados. 

Ren inclinou seu rosto levemente, curioso com quanto aquela afirmação. 

— É mesmo? E por qual razão? 

— Bem... aí não teremos mais motivos para ficar, não é? 

Ren observou-o com aquele olhar que parecia atravessar as pessoas.  

— Talvez. Mas algo está impedindo vocês? 

— Não... nada nos impede. 

— Então — disse Ren, com a voz tranquila, ainda firme —, hipoteticamente falando, gostaria de fazer parte desse grupo? 

O mago ficou em silêncio. 

Os olhos abaixados, as mãos inquietas, o modo como mordia o lábio inferior — tudo nele gritava o que a boca não dizia. 

Havia vontade. 

Mas não coragem. 

Ren suspirou e desviou o olhar para o céu azulado do anoitecer, procurando uma forma de continuar a conversa sem quebrar o que restava da leveza do momento. 

— E quanto a Vaelis? — perguntou por fim. — Acha que ela se juntaria ao grupo? 

Soren piscou, surpreso pela mudança repentina de assunto. 

— A Vaelis? Ah... sim, eu acho que ela já se juntou. — Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. — A forma como ela fala com eles, como provoca Kenshiro e Erina... Ela já se fez parte, mesmo que não perceba. 

— E o que te impede de ficar ao lado dela? — questionou Ren, inclinando a cabeça um pouco mais. 

A expressão de Soren mudou. Sua voz, normalmente suave, tornou-se grave, carregada de algo quase sombrio. 

— Existem alguns caminhos, Ren... — disse lentamente — ...que precisam ser percorridos sozinho. E, sinceramente... espero que Vaelis nunca queira me acompanhar nesse. 

Ren o encarou por alguns segundos, avaliando o tom e o olhar.  

— O que quer dizer? 

O mago desviou o olhar, voltando à voz tímida e hesitante de antes. 

— É que... existe algo que preciso resolver. Comigo mesmo. Antes de poder me juntar a eles — Encarou o céu noturno como se fosse um espelho — Mas sim... eu quero. Quero muito. 

Ren assentiu, satisfeito.  

— Isso basta pra mim. 

Deu um passo para trás, afastando-se da barraca. Estava prestes a se retirar, mas algo o fez parar. 

— E Soren — disse, virando-se por sobre o ombro —, não foi apenas Vaelis que o grupo aceitou como membro. Tenha certeza disso. 

Soren ergueu uma das mãos, instintivamente querendo chamá-lo, mas a voz não saiu. As palavras ficaram presas em sua garganta, junto com algo mais pesado — um misto de emoção e dúvida. 

Antes que pudesse se mover, as crianças voltaram correndo, todas com algodões-doces coloridos nas mãos. 

— Olha, Soren! — gritaram, felizes. — Trouxemos um pra você! 

— O-obrigado... — respondeu, forçando um sorriso, a voz trêmula. 

Elas se amontoaram ao seu redor, rindo e oferecendo pedaços do doce. 

Soren as olhou uma a uma, pequenas fagulhas de vida e esperança, percebeu que jamais conseguiria afastá-las com palavras duras. 

Elas eram gentis demais. 

E, de certa forma, ele precisava daquela gentileza mais do que gostaria de admitir. 

Ren, ao longe, observava a cena por um instante antes de desaparecer entre as barracas, o vento balançando o manto negro. 

O mago de fogo, rodeado por risos infantis e cores, permaneceu parado, com o olhar perdido e um sorriso melancólico no rosto. 

Um pensamento começara lentamente a aflorar em sua mente, sendo rapidamente aceita pelo seu coração: 

“Talvez eu pudesse ficar aqui...”. 

(...) 

O sol não era mais visível, a lua iluminava a noite para não caírem na completa escuridão. Ainda que não fosse necessário, pois tochas e luzes artificiais faziam seu trabalho, deixando o ambiente que já era aconchegante como um verdadeiro lar que os abraçava e não queria mais soltar. 

O ar estava pesado de riso, fumaça e fermento, e lá estava Vaelis, no meio de tudo aquilo, brilhando como uma estrela gelada em meio ao calor humano. 

Ela movia as mãos com graça e precisão, os dedos desenhando linhas invisíveis no ar. Cada gesto fazia o ar vibrar e se condensar em cristais efêmeros. Pequenos flocos caíam sobre os canecos, gelando o metal e o vidro com um estalo delicado. As crianças riam, os taverneiros batiam palmas e até os bêbados mais rudes a observavam com respeito. 

Vaelis era assim, transformava o banal em espetáculo. Criava beleza mesmo onde só havia suor e álcool. 

Mas, mais do que os aplausos, o que realmente chamava sua atenção eram as mulheres. Havia algo de predatório e terno no modo como ela as observava: as donas de riso fácil, as camponesas de braços fortes, as mercadoras de olhos cor de mel. Vaelis as admirava com uma curiosidade sincera, quase devocional. 

Até que uma voz grave quebrou seu encanto. 

— Vaelis? Vaelis! 

O chamado veio tão perto que ela estremeceu. Quando se virou, o rosto barbado do taverneiro estava a poucos centímetros do seu. Ele tinha olhos claros e cansados, cheirava a cerveja e a madeira velha. 

Ai, deuses! — exclamou, levando a mão ao peito e rindo. — Que susto, homem! 

— Perdão, perdão — disse ele, envergonhado. — Poderia me ajudar a trazer mais um barril? 

Ela piscou, inclinando a cabeça. 

— Um barril? Ah, claro, claro... — Sorriu, ajeitando uma mecha de seu cabelo. 

Nem pensou em recusar. Estava acostumada a ajudar. Fazia parte de quem era, ou do que fingia ser.  

Soren sempre dizia que ela era “prestativa demais”, mas a verdade é que Vaelis gostava de se sentir necessária. 

Talvez porque, lá no fundo, tivesse medo de ser esquecida. 

Enquanto seguia o taverneiro pelos fundos da taverna, o chão rangia sob suas botas e o ar mudava. Ali dentro, a luz era baixa e o cheiro, mais denso, uma mistura de madeira molhada, especiarias e fumaça. 

Foi então que ela o viu. 

Ren. 

Encostado à parede, braços cruzados, expressão impassível. A sombra o cortava em meio perfil, e o pouco de luz que o alcançava refletia em seus olhos com um brilho quase metálico. 

O taverneiro parou, desconcertado. 

— Juiz? Mas que honra...! 

Ren apenas assentiu, com um leve movimento de cabeça. 

— Não se preocupe, já levei o barril pra você. Pode retornar à festa. 

— É mesmo? Ora, muito obrigado! 

O homem partiu sem pestanejar. Vaelis deu um passo atrás, instintivamente pronta para segui-lo, mas a voz de Ren a interrompeu. 

— Um minutinho, senhorita — A entonação era serena, com uma autoridade cortante. — Sabe que precisamos conversar. 

Ela virou-se lentamente, o sorriso voltando aos lábios. 

— Conversar, é? — perguntou, deixando a ponta da língua umedecer os lábios. — E sobre o quê, exatamente? Quer um beijo gelado? 

Ren não se mexeu. 

— Sei que não está bêbada o suficiente pra isso. 

— Uma pena... — sussurrou Vaelis, aproximando-se um passo, a sombra de um sorriso maldoso brincando no canto da boca. — Você teria uma boa desculpa se eu resolvesse te roubar um beijo. 

— E eu sei que não faço o seu tipo. 

Ela riu, genuinamente divertida. 

Oh, querido, não se subestime. É claro que prefiro mulheres, mas... — Se inclinou, os cabelos caindo sobre os ombros — ...homens também servem ao meu propósito. E você, bonitão? Já deve ser experiente, não é? 

— Sou casado — A resposta veio seca como aço. 

— Isso nunca impediu ninguém — Provocou, um sorriso lascivo nos lábios. 

O ar entre os dois pareceu esfriar, e não por causa da magia de Vaelis. 

Ren continuou imóvel, o olhar fixo, o corpo imóvel. Nenhum tremor, nenhum rubor. Era como encarar uma estátua. E, de algum modo, isso a incomodou. 

Ela suspirou e recuou, levando a mão ao abdômen, rindo alto. 

— Tá bom, tá bom, já entendi... sua libido está zerada mesmo! 

— Já acabou? — perguntou Ren, sem humor. — Está sendo a pior até agora. Pensei que Soren fosse dar trabalho, mas você... 

O nome do mago bastou para apagar o riso dela. 

— Soren? — perguntou, a voz subitamente séria. — Ele... ele passou? 

Ren arqueou uma sobrancelha, surpreso com a mudança de tom. 

Vaelis se aproximou, as mãos pousando firmes sobre os ombros dele. 

— Me diga, Ren. Ele passou? 

— Sim... ele foi bem. 

Ela soltou o ar como quem finalmente se livra de um peso. 

Ufa... — sussurrou. — Eu estava tão preocupada com ele. 

Ren a observava, silencioso. A oscilação entre o deboche e o carinho genuíno era desconcertante. 

— E sobre mim? — retomou Vaelis, recompondo o sorriso. — Não me importo de verdade com a sua opinião, com todo respeito. Sei que é alguém importante pra Kenshiro e Erina, mas no fim são eles que decidem se eu fico ou não. 

— Certamente — disse Ren. — E você quer ficar? 

— É claro! — respondeu sem hesitar. — Eu nunca me diverti tanto em toda a minha vida. 

— Se divertiu? Essa jornada não lhe pareceu perigosa? 

Vaelis deu uma risada breve. 

— Perigosa? Eu vou morrer nessa jornada, Ren. Já aceitei isso faz tempo. — Falava leve, mas os olhos diziam outra coisa. — Isso não quer dizer que eu não possa me divertir até lá. Como dizem por aí... “o importante são os amigos que fazemos no caminho.”, não é? 

Ren ficou em silêncio por um instante. O eco daquelas palavras o atingiu mais fundo do que gostaria. 

Amigos. Caminho. Morte...

— E quanto ao Soren? — perguntou por fim. 

A mudança foi imediata. O rosto de Vaelis endureceu. 

— O que tem ele? 

— E se Kenshiro ou Erina quiserem que ele saia? Ou se ele mesmo decidir partir? 

Ela respirou fundo. O olhar baixou por um momento. 

— Aí... eu vou com ele. 

Silêncio entre os dois. O som distante da taverna, risos, copos tilintando, parecia vir de outro mundo. 

— Eu adoro esse grupo — continuou Vaelis, num tom mais baixo. — Mas Soren... eu não posso deixá-lo sozinho. Não de novo. 

Ren assentiu lentamente. A resposta era sincera, perigosa. Lealdade demais, quando mal equilibrada, se tornava fraqueza. 

— Se tivesse que escolher entre salvar Soren ou qualquer outra pessoa do grupo — perguntou ele, por fim —, quem escolheria? 

Vaelis o encarou como se ele tivesse cuspido veneno. 

— Que merda de pergunta é essa? 

— Não consegue responder? 

— Faça essa pergunta ao Kenshiro ou à Erina! “Escolha entre o seu cônjuge e alguém do grupo.” Você os julgaria por isso? 

Ren riu.  

Ela estava certa. 

— Pode voltar pra festa. 

— Então... eu passei? 

— Por enquanto, sim. Mas ainda tenho minhas dúvidas. 

Ela se aproximou um passo, inclinando-se com um sorriso insinuante. 

— Então, quando estivermos a sós novamente... eu tiro todas as suas dúvidas — Mandou-lhe um beijo invisível e girou nos calcanhares.

Ren suspirou, exasperado, observando-a desaparecer pela porta. 

A luz artificial da vila o envolveu quando saiu da taverna, e o som distante das vozes e das canções pareceu se dissolver na floresta. 

Vaelis, por sua vez, não olhou para trás. 

Caminhou entre as mesas, o olhar cheio de travessura. 

Ah, juiz... — murmurou, sorrindo sozinha. — Você ainda vai rir das minhas brincadeiras. 

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