O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 2 – Arco 12

Capítulo 117.2: Primogênito Acolhido

Ren não olhou para trás. Saiu do armazém com passos rápidos, atravessando a luz da manhã — uma figura escura se afastando do pai que, imóvel, deixava que o eco dos passos desaparecesse junto com a última chance de dizer a verdade inteira. 

Reiji não fazia ideia do que o filho havia decidido fazer. Permaneceu parado por alguns instantes, tentando recompor os pensamentos, até que seus olhos recaíram sobre as cartas espalhadas sobre o chão próximo do barril. Suspirou fundo e caminhou até elas, recolhendo-as uma a uma, dobrando com cuidado — como se o simples toque pudesse apagar as dores contidas em cada palavra. 

Enquanto as guardava de volta no baú, um pequeno pedaço de papel escapou entre seus dedos e flutuou até o chão, pousando suavemente aos seus pés. 

Ajoelhou-se para pegá-lo, ao vê-lo, ficou imóvel.  

Era um desenho — simples, infantil — feito em traços trêmulos e desiguais. Dois garotos caminhando lado a lado por uma estrada que se perdia no horizonte. A paisagem era indefinida, o sentimento inconfundível. 

Reiji reconheceu de imediato. 

Era ele e o irmão, muito jovens, caminhando juntos em direção a algum sonho distante. Um tempo em que acreditavam que o mundo ainda podia ser mudado com coragem e fé. 

Um sorriso suave, quase dolorido, desenhou-se em seu rosto. 

Ren jamais adivinharia o significado daquele pequeno papel. E mesmo que adivinhasse, jamais imaginaria que o pai um dia fora capaz de desenhar aquilo. Reiji nunca teve talento com tintas, nunca foi um homem das artes — apenas das espadas e, do seu ponto de vista, falsas promessas. 

Mas aquele rabisco… aquele pedaço de memória… valia mais para ele do que qualquer obra-prima pendurada em salões imperiais. Era um eco da inocência que perdera. 

Ele o guardou junto das cartas, fechando o baú com um gesto lento, quase reverente. 

***

Do lado de fora, Ren entrou na cabana pela porta recém consertada por Kaji. 

O som da madeira rangendo suavemente contrastava com o turbilhão que ele carregava por dentro. 

Apesar da pressa, manteve o cuidado habitual. Não chutou móveis, não derrubou nada. Conhecia bem o quanto o elemental se irritava quando alguém desrespeitava a casa. Mesmo em sua raiva e urgência, Ren ainda era incapaz de ser descortês. 

Ah, jovem Ren! — exclamou Kaji, assoprando o vapor do recém preparado café — Seu pai estava profundamente preocupado com seu desaparecimento. Acabei de passar o café. Você gostaria de... 

— Kaji... — interrompeu o jovem, a voz baixa, os olhos voltados para o chão. 

O pequeno Servo hesitou. Algo no tom do rapaz o desconcertou. 

Ren ergueu lentamente o olhar, e pela primeira vez, permitiu que a determinação fria que escondia dentro de si se tornasse visível. O ar ao redor pareceu se contrair, como se a própria casa prendesse a respiração. 

Ele sabia que o que estava prestes a fazer era errado — desrespeitoso, perigoso. Mas havia chegado a um ponto em que o remorso e a dúvida já não eram obstáculos. 

— ATENDA AO MEU CHAMADO! — bradou. 

A voz de Ren reverberou como uma descarga elétrica, cortando o silêncio e atravessando o espaço com sua ordem incontestável. 

As pupilas de Kaji se dilataram em espanto. O corpo do elemental tremeu, e por um instante, a chama amarelada que o formava vacilou, distorcida. 

Ele tentou resistir, mas o comando estava impregnado de uma autoridade diferente — algo antigo, oculto, que não vinha apenas da voz do rapaz, mas de uma força que o próprio Ren talvez ainda não compreendesse por completo. Ainda que só tivesse ouvido histórias a respeito daquela ordem. 

O servo perdeu o controle do próprio corpo. Seus gestos tornaram-se mecânicos, obedientes. 

Ren o observou com o coração acelerado, sentindo o peso da culpa crescer dentro do peito. 

Ele acabara de cruzar uma linha que sempre jurara respeitar. 

Mas a verdade que buscava... não podia mais esperar. 

(...) 

Não demorou muito para Reiji retornar. 

Desta vez, não havia a mesma energia habitual em seus passos — apenas o peso de quem trazia mais dúvidas do que certezas. Abriu a porta com calma, quase com respeito... até que seus olhos captaram algo impossível de suportar. 

Ren estava de pé, no centro da sala, com as cartas proibidas nas mãos. 

O som seco da porta batendo contra a parede ecoou como um trovão. O impacto fez o chão estremecer, espalhando poeira e derrubando alguns utensílios das prateleiras. 

— REN!!! — a voz de Reiji rasgou o ar como uma lâmina. 

Kaji, que ainda lutava contra os ecos do comando anterior, saiu do transe ao ouvir o estrondo. 

— REIJI! — gritou, chocado ao ver a destruição causada pelo mestre. — COMO PODE SER TÃO... 

Mas sua fala morreu no meio da frase. 

Havia algo na postura do mestre — um olhar que misturava pavor e desespero verdadeiro — que o fez calar instantaneamente. 

O elemental olhou então para o jovem. 

Ren permanecia imóvel, os olhos fixos nas cartas, como se estivesse em transe. As chamas da lareira refletiam nas páginas, criando sombras dançantes que pareciam ganhar vida. 

— KAJI! — rugiu Reiji. — QUEIME TODAS AS CARTAS! AGORA! 

O pequeno Servo não hesitou. 

Sentiu o desespero na voz do mestre, e obedeceu sem pensar. As labaredas da lareira se ergueram, vivas, e saltaram pelo ar como serpentes flamejantes, voando em direção ao garoto. 

O fogo não visava o corpo — apenas o papel. As chamas se curvavam, como se reconhecessem Ren, desviando levemente dele para consumir as cartas. 

Mas o jovem já sabia disso. Entendia que Kaji jamais tentaria feri-lo por acidente. Mesmo que seu fogo mágico fosse incapaz de queimá-lo, apenas aquecê-lo, o risco existiria em um ato veloz e desesperado. 

Deu um salto para trás, escapando do alcance imediato. Deixou que parte das cartas fosse atingida, mas protegeu outras com o corpo. O calor queimou o ar ao redor, o cheiro de papel chamuscado invadiu a sala. 

A ilusão de vitória durou pouco. 

Kaji acreditou que havia cumprido a ordem, mas Ren, com reflexos rápidos, ergueu algumas das cartas ainda intactas — os olhos passando pelas linhas enquanto o fogo dançava ao redor. 

Lia com voracidade. Cada palavra parecia rasgar um véu dentro dele, uma verdade que o mundo tentava esconder. 

Então uma sombra cobriu as cartas, impedindo-o de lê-las com clareza. 

Reiji estava atrás dele, com a espada desembainhada na mão direita, pronto para arrancar as cartas e pôr fim àquilo. 

O aço brilhou quando ele ergueu a lâmina. 

Mas Ren fora mais rápido. 

Em um único movimento fluido, sacou a segunda espada do próprio pai — a que ele carregava na cintura oposta. O som metálico do saque cortou o ar, e a lâmina refletiu a luz do fogo, cruzando o caminho da outra espada. 

As duas se tocaram com um estalo seco. 

Ren não tinha a mesma força que seu pai, não conseguiria bloquear ou aparar seu ataque, por isso o desviou... para seu pescoço. 

Em meros instantes, Reiji viu a vida de seu filho quase se tirada pelas suas próprias mãos. Ainda que a mera ideia de manter suas dores e traumas ocultadas fosse tentadora, jamais poderia ferir Ren. Jamais poderia ferir sua família. 

Recou um passo, deixando o ar escapar em um gemido contido. 

Pousando sob a mesa de jantar, Ren não perdeu tempo. Seus olhos voltaram a ler as cartas com rapidez. Não queria se permitir de adquirir qualquer informação errada; não podia ler uma palavra errada. 

Quando entendia todo o conteúdo, soltava a carta para não carregar material desnecessário. 

Mais uma carta queimada. 

Mais uma verdade revelada. 

Faltavam três. 

E, no breve silêncio que se seguiu, Reiji percebeu que já não lutava apenas contra o filho, mas contra o inevitável. 

— KAJI! — gritou Reiji, a voz reverberando pelas paredes. — INCINERE TUDO! 

O comando explodiu como uma sentença. 

A pequena lareira respondeu com um rugido baixo, e em segundos, a chama tímida se transformou num redemoinho de fogo vivo. As labaredas cresceram, serpenteando pelas paredes, engolindo cortinas, madeira, ar — tudo. 

Ren recuou um passo, os olhos arregalados.  

O calor o atingiu como uma onda, e por um instante pareceu que o próprio ar havia se tornado líquido e pesado. O fogo não o atacava diretamente — Kaji jamais permitiria isso —, mas tudo ao redor parecia prestes a desabar. 

A cabana inteira se iluminou em tons de ouro e vermelho. O chão estalava, o teto rangia. O incêndio crescia como uma criatura faminta. 

Kaji, dominado pela ordem do mestre, se elevava no ar, as chamas de seu corpo se expandindo até que quase tocassem o teto. Sua forma cintilava, colossal, os olhos convertidos em dois sóis minúsculos. 

Reiji cruzou os braços, com um meio-sorriso confiante — acreditava ter vencido. 
Aquele fogo purificador destruiria as cartas, e com elas, o passado que o assombrava. 

Ren sentiu o suor escorrer pelo pescoço, as cartas tremendo em suas mãos. Em poucos segundos, o papel fino se tornaria pó. O cheiro de madeira queimada já dominava tudo. 

Então, um lampejo de ideia o atingiu. 

Seus olhos caíram sobre a garrafa de café recém-preparada sobre a mesa. 
Sem pensar duas vezes, girou o corpo e desferiu um chute certeiro. 

A garrafa voou em arco, girando no ar, e atingiu Kaji em cheio. O líquido escuro se espalhou pelo ambiente como uma chuva grossa, sibilando ao tocar o fogo. 

O rugido das chamas virou um estalo. 

O incêndio inteiro se retraiu de repente, transformando-se em uma nuvem de vapor e espuma amarronzada que se espalhou pelo chão. 

Kaji congelou no ar, olhos arregalados, enquanto parte do café escorria pelo seu rosto flamejante. As chamas de seu corpo crepitaram, exalando um cheiro forte de torrefação. 

— ECAAAA! — gritou ele, fazendo careta. — QUE GOSTO HORRÍVEL! AMARGO DEMAIS! 

O elemental tossiu, cuspindo pequenas faíscas, e olhou indignado para a garrafa quebrada.  

“Como alguém consegue beber isso?!” 

Reiji, ainda com os braços cruzados, assistiu à cena em silêncio, completamente incrédulo. A expressão de triunfo deu lugar a um olhar vazio, confuso, quase cômico. 

A fumaça começou a se dissipar. 

Ren ainda segurava as cartas, ofegante, o rosto iluminado pelos últimos lampejos do fogo. 

Mais uma carta caíra de suas mãos. 

Restavam duas. 

— BASTA! 

O rugido de Reiji ecoou como um trovão dentro da cabana. Num só movimento, ele virou a mesa com violência, fazendo copos, pratos e papéis voarem pelo ar como estilhaços de uma explosão. O impacto sacudiu o chão e desequilibrou Ren, que mal teve tempo de reagir antes de ver o próprio pai avançando sobre ele. 

O olhar de Reiji era o de um guerreiro em combate — frio, preciso, quase impiedoso. 
Mas por trás daquela fúria, havia algo mais: medo. 

Ren sabia disso. Sabia que, apesar de toda a força e poder que aquele homem possuía, era o medo — o medo de perder novamente — que o movia. 

E era justamente isso que o tornava mais perigoso. 

O jovem desviou, o coração batendo descompassado. Sabia que jamais venceria o pai em força bruta. 

Mas Ren era rápido. E, acima de tudo, inteligente. 

Num movimento desesperado, girou o corpo, sentindo o ar cortar sua pele, e tocou a parede com a ponta dos dedos do pé. Usou aquele mínimo apoio como impulso e lançou-se para o alto, escapando das mãos que quase o agarravam. 

As botas bateram contra o primeiro degrau da escada com um som seco. 

Ren correu. 

Os passos de Reiji vieram logo atrás, pesados, poderosos, vibrando em cada tábua de madeira. 

— VOLTA AQUI, REN! 

A voz do pai reverberou pela casa, carregada de ira e desespero. 

Ren não respondeu. Subiu os degraus dois a dois, o coração pulsando na garganta, os olhos grudados na carta aberta entre os dedos. 

A penúltima carta sendo abandonada pelo caminho. Não era mais necessária. 

Mesmo em meio à fuga, ele lia — não podia parar. A última carta tremia, mas as palavras gravavam-se em sua mente como fogo. 

Uma sombra colossal o envolveu. 

Reiji o agarrou pelos ombros, imobilizando-o com facilidade. 

Por um instante, o tempo pareceu parar. Pai e filho se encararam de perto — respirações ofegantes, suor escorrendo, raiva e tristeza misturadas num silêncio tenso. 

Entre os dedos de Reiji, a última carta se soltou e caiu. 

Mas o modo como Ren não tentou recuperá-la, o olhar calmo que sustentou, deixaram o pai certo de uma coisa terrível: 

Seu filho já havia lido tudo. 

O que restava dizer? 

Nada. 

Nem desculpas, nem mentiras, nem promessas. 

O ar se encheu de um silêncio pesado — e então, a porta principal se abriu de repente, deixando entrar uma lufada fria. 

— O que aconteceu aqui?! — a voz veio firme, quase um grito. 

Kenshiro estava na entrada, paralisado. 

Diante dele, o que um dia fora o lar acolhedor de sua família agora parecia um campo de batalha: móveis quebrados, cinzas ainda flutuando no ar, o cheiro de fumaça misturado a café queimado... 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora