Volume 2 – Arco 12
Capítulo 117.1: Primogênito Acolhido
Aquela parecia ser apenas mais uma manhã comum na cabana de Reiji Torison.
O sol, recém-nascido no horizonte, atravessava as frestas das cortinas como lâminas douradas, ferindo a penumbra do quarto e obrigando o homem a despertar. O calor suave tocava-lhe o rosto, anunciando mais um dia em seu pequeno paraíso isolado do mundo.
Kenshiro Torison, seu sobrinho, estudava na Academia Militar de Miravalle. Naquele dia em específico, retornaria para casa — uma pausa de dois dias antes de mergulhar novamente em sua rotina acadêmica. Já Ren, seu filho, permaneceria ali, como de costume, para alegrar o pai com sua presença silenciosa, mas reconfortante.
Ren era um enigma desde que fora adotado.
Não existiam registros, testemunhas ou documentos que comprovassem sua origem — como se tivesse surgido do nada, uma alma que o destino decidiu entregar aos cuidados de Reiji.
Aquela falta de passado tornava impossível qualquer vínculo com o Império, e talvez por isso mesmo, ele parecia viver sempre um pouco à parte do mundo.
Apesar de terem a mesma idade e de terem sido criados sob os mesmos princípios, Ren e Kenshiro eram opostos completos.
Kenshiro era ambicioso e cheio de vida — um jovem vibrante, competitivo, sempre disposto a provar seu valor aos seus amigos e, principalmente, para aqueles que duvidassem dele.
Ren, por outro lado, era calmo e introspectivo. Não buscava aplausos nem reconhecimento; conhecia com precisão suas virtudes e suas falhas, e isso lhe bastava.
Havia nele uma maturidade que muitas vezes fazia Reiji sentir-se pequeno. O garoto acordava cedo, lia jornais e pergaminhos antigos, mergulhava em textos de linguagens complicadas. Em poucas horas, devorava volumes inteiros com uma fome insaciável de conhecimento. E, estranhamente, nada parecia escapar de sua memória — como se cada palavra, cada data, cada nome se gravasse em sua mente com tinta indelével.
Naquela manhã, Reiji esperava ouvir o som familiar dos passos do filho no corredor, o leve toque na porta, o murmúrio costumeiro que o convidava a levantar-se.
Ren, embora sério e reservado, detestava o silêncio da solidão. Kaji, o pequeno elemental que servia à família, costumava ser sua companhia fiel, mesmo assim o rapaz sempre buscava o máximo de pessoas para se estar por perto.
Mas naquele dia... Ren não apareceu.
O silêncio na cabana parecia diferente. Não era o silêncio natural da manhã, mas um vazio que incomodava, que pesava.
Reiji sentiu o estômago apertar-se em um pressentimento incômodo.
Algo estava errado.
Levantou-se de súbito, abriu a porta do quarto de seu filho e o chamou, na esperança de vê-lo ainda dormindo em algum canto, enrolado nos lençóis. Nenhuma resposta. Apenas o vento atravessando as janelas mal fechadas.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
Reiji voltou apressado ao seu quarto, abriu o velho baú ao pé da cama e retirou seu cinto com suas duas espadas.
Fazia anos que não se movia com tanta urgência.
Descendo as escadas de dois em dois degraus, o coração batendo no ritmo de um tambor, Reiji gritou:
— Kaji!
O pequeno elemental surgiu no lareira, assustado, com os olhos faiscando como brasas.
— Onde está o Ren?! — rugiu Reiji, já no meio da escada, o peso da voz fazendo vibrar o ar da sala.
— Perdão, senhor? — respondeu Kaji, confuso, as chamas de seu corpo tremeluzindo em hesitação.
Pela expressão do servo, Reiji compreendeu de imediato: nem ele fora despertado naquela manhã.
O jovem não estava em lugar algum da casa.
— É um inútil mesmo! — gritou Reiji, o medo disfarçado em raiva.
Chutou a porta com força, arrebentando-a mais uma vez.
— Quantas vezes eu disse pra parar de fazer ISSO?! — bradou o elemental, ofendido, enquanto as fagulhas de seu corpo tilintavam pelo ar.
Mas o Melhor Espadachim do Império já não fazia questão de escutá-lo.
Sua preocupação o guiava e, por trás dela, um medo antigo começava a despertar.
Do lado de fora, Reiji respirou fundo e deixou que o ar frio da manhã lhe despertasse os sentidos. Ele estudou cada detalhe com olhar de caçador — o chão, as folhas, as pegadas que talvez o vento tivesse disfarçado. Inclinou-se, tocou a terra úmida, e sentiu apenas a respiração da floresta.
Nenhum som. Nenhum sinal.
Depois ergueu o rosto e fechou os olhos, buscando no vento qualquer indício — um aroma, um movimento, um desvio no silêncio — que pudesse apontar a direção de Ren.
O coração pulsava em alerta, e cada batida parecia ecoar como um aviso.
— Estou aqui!
A voz jovem, vinda de algum ponto próximo, o atingiu como um golpe de alívio. Era a voz de seu filho.
Ou pelo menos, ele achou que fosse.
O alívio imediato se misturou a um desconforto súbito. Seu instinto, forjado em anos de combate, sussurrava para não abaixar a guarda.
“Foi mesmo o Ren? Ou algo tentando me atrair? Estou acordado? Ou ainda preso em algum pesadelo?”
Por um instante, considerou sacar uma de suas espadas — mas conteve o impulso. Caminhou em direção à voz, e, quando finalmente a origem se revelou, desejou, por um breve e amargo momento, que sua paranoia estivesse certa.
Ren estava no velho armazém, ao lado da casa. A grande porta de madeira permanecia entreaberta, o cadeado pesado pendendo inerte, violado.
Um simples palito de dentes jazia ao chão, partido ao meio.
Reiji observou o palito, acreditando se tratar de um sinal que ignorou.
Lembrou-se do hábito recente do filho — mastigar palitos enquanto lia ou pensava, como quem tenta enganar a própria ansiedade. Só agora percebia que aquele gesto não era distração: era ensaio. Planejamento.
Entrou.
O ar ali dentro era frio e cheirava a madeira antiga, poeira e ferro. Feixes de luz filtravam-se pelas tábuas, riscando o espaço em tons de âmbar. No fundo, sentado sobre um barril, Ren lia e relia um punhado de cartas amareladas, os olhos mergulhados em cada linha como se buscassem sentido em meio ao caos.
O contraste era quase simbólico: o garoto envolto em sombras, e a luz que insistia em contorná-lo, mas sem nunca tocá-lo por completo.
Ren possuía cabelos tão escuros quanto a própria noite, e olhos ainda mais profundos — dois abismos silenciosos que pareciam absorver tudo à sua volta. Vestia-se sempre de preto, não por vaidade, mas como se a cor fosse um abrigo.
Era pequeno, magro, de presença discreta, mas havia nele algo de inquebrável. Um tipo de firmeza que não se media em altura.
Reiji sempre agradecera, em silêncio, o fato de o filho não se incomodar com isso — e de Kenshiro, seu sobrinho, jamais usar tal diferença como provocação. Entre os dois jovens, havia uma harmonia que ele prezava profundamente.
Aproximou-se com passos cuidadosos, o eco suave de suas botas preenchendo o silêncio do galpão.
— O que está fazendo aqui, Ren? — perguntou, a voz baixa, mas firme.
O garoto demorou a responder. Não levantou os olhos.
— Eu só... queria coletar algumas informações. Acho que precisava ver por mim mesmo.
— E conseguiu o que queria?
Ren abaixou o olhar sobre as cartas e respondeu com um simples:
— Não.
A palavra soou como um peso. A frustração era visível, estampada em seus olhos — olhos que, mesmo tão jovens, carregavam um cansaço antigo. O tipo de olhar que denuncia alguém que já viu o que não deveria.
Reiji suspirou. A tensão em seu peito começou a ceder.
— Venha — disse, virando-se para a saída. — Vamos tomar um café.
Esperou ouvir os passos atrás de si, mas o silêncio permaneceu.
Ren desceu do barril, as botas tocando o chão com um som seco, e ficou imóvel.
— O que é essa jornada que você e seu irmão planejavam? — perguntou, sem rodeios.
As palavras o atingiram como uma lâmina afiada.
Reiji parou, mas não se virou.
Por dentro, algo se partiu — o desconforto da verdade oculta misturado ao medo do que ela poderia despertar.
Preferiu o silêncio.
Talvez ele pudesse servir de escudo, talvez o tempo o ajudasse a costurar uma resposta. Mas no fundo, ele sabia: o silêncio, naquele momento, falava mais do que qualquer explicação.
Reiji ouviu os passos do filho se aproximando atrás dele — lentos, firmes, como se cada passo fosse uma decisão pesada demais. O som das botas no chão ecoava dentro do armazém vazio, um lembrete constante de que o confronto era inevitável.
— Depois do café eu te conto... — disse, sem coragem de encará-lo ainda.
— Quarenta e seis vezes, pai — A voz de Ren soou calma, carregada de algo profundo, ferido. — Quarenta e seis vezes você fugiu dessa conversa.
Reiji seguiu imóvel.
— Eu li suas cartas — continuou o garoto. — Todas. Até as que estavam protegidas com selos mágicos.
Os olhos de Ren queimavam de uma determinação fria, triste.
— Estou te dando a chance de se explicar.
O silêncio entre eles pesou como uma lâmina suspensa.
Reiji sabia que se fugisse mais uma vez, perderia o filho. Não apenas sua confiança dele.
Virou-se devagar.
Encontrou o olhar de Ren — aquele olhar grande, escuro, que misturava decepção e esperança. O garoto não queria apenas respostas; queria a voz do pai, queria que a verdade viesse dele.
— A jornada... — começou Reiji, a voz vacilante. — Era uma ideia infantil. Dois jovens que acreditavam poder mudar o mundo, se tivessem força e determinação o bastante.
Ren manteve-se em silêncio. O peito subia e descia devagar, os punhos cerrados, como se segurasse as palavras dentro de si.
— Queríamos conhecer todo o Continente — continuou o pai. — Mas tínhamos medo dos inimigos da nossa família. E, sem qualquer pista real, nos espalhamos, procurando respostas como cegos tateando o escuro.
Ele fez uma pausa. Os olhos se perderam no chão, e a voz ganhou um tom de lembrança amarga.
— Pelos meus feitos, o Império me procurou e me ofereceu o título de Herói Imperial. Eu aceitei, achando que poderia usar a influência pra descobrir mais. Achei que estava sendo esperto... — sorriu, mas o sorriso não durou.
Respirou fundo. Falar da própria história era como arrancar espinhos antigos.
— Meu irmão teve uma ideia parecida. Decidiu se unir aos Remanescentes, investigar o que havia por lá. Recebeu uma casa, e Kaji o ajudava com sua magia, transportava-o entre as Geleiras e as Grandes Planícies.
A voz de Reiji foi diminuindo.
— E antes que percebêssemos... a jornada já não era mais nossa. Criamos famílias, fizemos laços, amizades, promessas. E, por um tempo, acreditamos que isso bastava. Que nossos atos seriam o suficiente.
O silêncio voltou — denso, pesado.
Ren esperou. O pai desviou o olhar.
— E o que aconteceu? — perguntou o jovem, a voz fria e contida.
Reiji demorou alguns segundos antes de responder.
— Recebemos uma carta...
— Eu li todas as cartas — interrompeu Ren, num tom que misturava incredulidade e raiva. — Não existe nenhuma...
— Você leu as cartas que eu guardei, Ren. — A voz de Reiji quebrou. — As cartas que me lembravam dele. Mas as outras... — respirou fundo, tentando conter o tremor nas mãos. — As cartas que o levaram à morte... mandei que Kaji as queimasse.
O silêncio seguinte pareceu interminável.
O armazém inteiro respirava junto com eles, como se o mundo tivesse parado para ouvir.
Ren o encarou, e por um instante, viu o homem diante dele não como o herói imperial, mas como um pai quebrado. Um homem que perdera mais do que coragem — perdera o direito de esconder-se atrás dela.
Mas o garoto também carregava suas próprias dores. A frustração latejava no peito, queimando por dentro.
Então, uma ideia surgiu em sua mente, deixando-o empolgado e motivando suas pernas a correrem.
— Eu já sei!
A frase saiu firme, seca, como um veredito.
Reiji tentou chamá-lo, mas a voz falhou.
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