Volume 2 – Arco 11

Capítulo 113: Treinamento Básico

O som cadenciado das botas e das ferraduras sobre a terra seca criava uma melodia constante, quase hipnótica. O ritmo inabalável da marcha dos Cavaleiros tinha um propósito maior do que simplesmente avançar — era uma demonstração de disciplina e poder. 

Avançavam por quilômetros sem demonstrar qualquer sinal de cansaço; os passos firmes, as lanças alinhadas, e as capas balançando sob a brisa morna davam a impressão de que nada seria capaz de detê-los. Talvez não alcançassem uma fronteira em poucos dias, mas certamente não levariam mais que dois para cruzar vales e chegar a outra cidade. 

Naquele instante, marchavam rumo ao próximo membro do grupo de Erina: Ren, primo de Kenshiro. 

Pouco se sabia sobre ele — sua localização exata, o nome da cidade onde se encontrava e as razões para estar ali eram segredos guardados apenas pelo casal. 

Ainda que o ritmo da marcha fosse eficaz, ela cessava antes que o Sol tocasse o horizonte. A luz dourada do entardecer banhava os campos, projetando sombras longas que se estendiam como dedos sobre o solo. Era o momento ideal para erguer o acampamento — um ritual que os soldados executavam com precisão quase sagrada. 

Tendas eram abertas, fogueiras acesas, e o cheiro de ferro e suor se misturava ao da lenha queimando. 

Enquanto os soldados descansavam e partilhavam suas rações, os Cavaleiros usavam esse tempo para instruir o grupo que viajava ao lado deles. 

— Pois bem — começou Arturo, cruzando os braços à frente do corpo, observando os jovens que o cercavam. — Vocês ao menos sabem o que é a Essência? 

— É a energia da alma — respondeu Sebastian, sem hesitação. — Enquanto Mana vem da mente e Estamina do corpo. 

— Exatamente. Alguns de vocês já aprenderam a manipular a Estamina, outros dominam a Mana. Devem perceber, então, que os princípios são semelhantes. 

Sua voz ficou mais grave, o tom adquirindo peso.  

— Mas compreender a Essência é algo completamente diferente. Usamos corpo e mente o tempo todo... a alma, por outro lado, é um território inexplorado. 

Os ouvintes se entreolharam, tentando imaginar o que isso significava. Alguns visualizaram a alma como algo físico — um músculo oculto, que precisava ser treinado e fortalecido. Outros a viam como uma porta, uma fronteira invisível que exigia força e fé para ser atravessada. 

Arturo fez uma pausa, observando as expressões pensativas. 

— Existem alguns entre vocês que, ainda que por acidente, conseguiram vislumbrar o poder da Essência. KenshiroErina e Fox, por exemplo. — Ele os fitou um a um. — No entanto, apenas dois de vocês foram capazes de tocá-la com verdadeira maestria. 

Estou falando de Takashi e Zhen. 

Um murmúrio percorreu o grupo. Takashi e Zhen se entreolharam, confusos, antes de darem alguns passos à frente. O brilho da fogueira refletia em seus rostos, revelando surpresa e uma pitada de nervosismo. 

— É obrigação de vocês — disse Arturo, num tom firme —, tentar explicar, da melhor forma possível, a sensação de usar a Essência. 

Takashi franziu o cenho, claramente desconfortável. 

— Com todo o respeito, senhor... eu não faço ideia do que esteja falando — Olhou em volta, tentando rir de si mesmo. — No caso do monge, eu até entendo. Mas eu? 

Zhen respirou fundo antes de falar. Sua voz saiu baixa, introspectiva. 

— Eu também não tenho controle pleno da minha Essência. Às vezes ela simplesmente... surge. Depende da situação, do meu humor, até do caos ao redor. 

Lance, que até então observava em silêncio, deu um passo à frente. Sua presença sempre acompanhada de curiosidade e admiração. 

— Seus companheiros contam com vocês — disse ele, com serenidade. — Deem o seu melhor. Nesse momento, até a pior das explicações é melhor do que o nada. 

Takashi ainda permanecia em silêncio, os olhos vagando entre as árvores próximas. Seu semblante carregava um misto de dúvida e frustração, por não compreender o que todos pareciam esperar dele. 

Enquanto isso, Zhen, percebendo a hesitação do companheiro, respirou fundo.  

O vento do entardecer agitava suavemente as bordas de sua roupa, e por um instante ele fechou os olhos, tentando recuperar lembranças antigas, ecos da voz de seu pai. 

Quando os abriu, encarou os colegas à sua frente, determinado a transmitir o que sabia — ou, ao menos, o que acreditava compreender. 

— Utilizar a Essência... — começou ele, a voz calma. — É como estar apaixonado. 

Alguns rostos se ergueram, curiosos. Outros o inclinaram ao lado, sem entender. 

— A primeira vez é estranha — continuou. — Um novo sentimento, intenso, arrebatador. É tão forte que parece fugir do seu controle. Ela te toma por inteiro... antes mesmo que você perceba, já está agindo, movido por algo que não compreende, mas que sente como parte de si. 

Xin deixou escapar um riso curto e debochado, cruzando os braços. 

— Fala como se soubesse muito bem do que está dizendo. 

— Eu sei — respondeu, firme. — Ambos. A paixão e a Essência. A diferença é que, no caso da Essência, essas ações impulsivas não são fraquezas. São o reflexo do seu instinto mais puro. Algo dentro de você desperta... para te proteger. 

O silêncio que se seguiu foi breve, logo quebrado por Fox, que se inclinou para frente, intrigado. 

— Com todo o respeito, monge, mas tanto eu quanto Erina e Kenshiro já usamos a Essência — e, sinceramente, nenhuma das vezes foi como você descreve. 

Erina e Kenshiro assentiram com leveza, confirmando as palavras de Fox. 

Zhen desviou o olhar. Sua teoria, tão cuidadosamente formulada, começava a ruir diante dos olhares desconfiados. 

— Diga-me... — disse Aline. — Quando vocês usaram a Essência, foi em situação de vida ou morte? 

Os três trocaram olhares e, quase ao mesmo tempo, balançaram a cabeça em afirmação. 

Aline sorriu, um sorriso melancólico. 

— Então foi isso — Cruzou as mãos. — Eu também já usei a Essência. Uma única vez. Lembro-me de ter sentido algo... indescritível. Uma onda de calor, como se o mundo inteiro vibrasse junto comigo. Depois disso, desmaiei. Quando acordei, era como acordar de um sonho, um sonho maravilhoso, do qual só restaram fragmentos. Não consigo recordar o que fiz com precisão, nem a sensação exata... apenas a certeza de que foi real. 

Fox, Erina e Kenshiro trocaram olhares pensativos.  

As lembranças de suas próprias experiências começaram a ressurgir, mas vinham em pedaços desconexos: imagens que não seguiam a sequência correta, sons distantes e confusos, gosto metálico e paz. 

Perceberam, então, que Zhen talvez tivesse razão. 

A Essência não era algo que se controlava com a mente ou com o corpo. Era um chamado, respondê-lo exigia mais do que técnica. 

Zhen baixou os olhos, aliviado. Suas palavras, antes vistas como devaneio, tornaram-se verdade aos olhos de todos. 

Takashi ainda parecia distante, perdido em pensamentos.  

As palavras de Zhen o haviam deixado inquieto, por receio de não conseguir criar uma explicação que fosse tão boa quanto. 

Então, quando sentiu uma pequena vibração vinda de seu arco, respostas vieram em sua mente, como se sempre estiveram lá. 

— Está certo... — murmurou. — Tentarei explicar sobre os ataques. 

Ele caminhou até uma pequena clareira próxima, onde Gwen havia preparado um campo de tiro improvisado. 

Dois alvos de madeira haviam sido fincados no chão, e entre eles, duas galinhas vivas cacarejavam, amarradas a pequenas estacas. Uma delas estava protegida por uma tábua grossa de carvalho — posicionada de modo que nenhuma flecha comum pudesse atravessá-la. 

Takashi ajeitou a aljava às costas e pegou o arco. 

— Todos sabem como são os ataques normais — disse, posicionando-se. 

O arqueiro respirou fundo e, sem esforço, disparou duas flechas rápidas. 

Ambas atingiram os alvos com precisão. A galinha desprotegida caiu imediatamente, morta. Um dos soldados se apressou em recolhê-la, levando-a à cozinha sob risadas abafadas; uma substituta foi colocada em seu lugar. A outra galinha, continuava viva, fora protegida pela tábua de madeira. 

Takashi observou a flecha cravada na madeira. 

— Esse é o resultado comum — disse, afastando-se um passo. — Força, mira, técnica. Nada mais. 

Ele então fechou os olhos. O vento pareceu diminuir, como se o ar ao redor esperasse algo. 

— Agora... um ataque carregado de Essência. 

A mudança em sua postura foi quase imperceptível no início: o corpo relaxou, os ombros se alinharam, e o arco tornou-se uma extensão de suas mãos. Takashi inspirou profundamente, sentindo o peso do silêncio. Quando soltou a corda, um estrondo de vento atravessou o campo, levantando poeira e agitando as roupas de todos com violência. 

As duas flechas partiram quase juntas. 

Um instante depois, o som seco de impacto ecoou — e, para espanto geral, ambas atingiram os alvos. A galinha protegida caiu morta, imóvel, embora a tábua à frente dela permanecesse intocada. 

— Tá, sua flecha atravessou a tábua. E daí? — disse Gurok, cruzando os braços, cético. 

Takashi abaixou o arco, um sorriso leve no canto dos lábios. 

— Vamos ver, então. 

Aproximaram-se todos. Gurok tocou a madeira com a ponta dos dedos e recuou, incrédulo. 

Não havia perfuração. Nenhuma lasca, nenhum arranhão. A tábua estava intacta — mas a flecha, que deveria ter sido detida por ela, agora repousava fincada no alvo logo atrás. 

— O que... o que houve aqui? — perguntou Gurok, a voz perdendo a firmeza. 

Takashi respirou fundo, o coração ainda acelerado. 

— Agora você quer saber, não é?  Minha explicação talvez não seja tão poética quanto a de Zhen, mas prestem atenção. 

Deu um passo à frente, apontando para a tábua e para o alvo.  

— Mesmo que eu tivesse usado magia, o que não sei fazer, a flecha teria parado aqui. Talvez a madeira se partisse, talvez não. Mas ela não teria ignorado o obstáculo. 
— E no entanto... — ele estendeu a mão, indicando a galinha caída — a flecha atingiu seu destino. Literalmente. 

O grupo permaneceu em silêncio, a tensão vibrando no ar. 

Takashi abaixou o olhar e completou, com voz mais baixa: 

— Acredito que, no momento em que disparei, o destino da flecha e o destino do alvo se tornaram um só. Mesmo que a galinha fugisse, ou se escondesse, nada poderia tê-la salvado. 

Arturo sorriu, cruzando os braços. 

— Destino — repetiu, satisfeito. — Agora sim. 

Kenshiro arqueou uma sobrancelha. 

— O que o destino tem a ver com isso? 

Arturo se virou para o grupo, a voz firme, grave. 

— Com a Essência? Tudo. Se uma energia está ligada à sua alma, à sua própria vida, então ela está, inevitavelmente, conectada ao seu destino. 

Ele começou a caminhar devagar entre eles, como um professor diante de uma revelação. 

— Pensem no que viram e ouviram hoje: atos impulsivos, ataques que não podem ser impedidos... entendem agora por que a Essência é tão poderosa? 

Erina ergueu o olhar, pensativa. 

— Está querendo dizer que... se eu quisesse matar alguém com minha espada, mesmo estando longe dela, eu conseguiria? 

Arturo assentiu levemente.  

— Se estivesse usando a Essência, sim. Como? Não sei. Assim como a flecha de Takashi ignorou a madeira, talvez sua lâmina encontre um caminho impossível. O que mais vocês seriam capazes de fazer? 

A pergunta ficou suspensa no ar. 

Ninguém respondeu. 

E assim, quando as estrelas finalmente começaram a brilhar, a lição chegou ao fim. 

(...) 

— Hoje foi muito produtivo! — exclamou Arturo, entrando na fila para pegar sua tigela de ensopado. A fumaça quente que saía dos caldeirões se misturava ao cheiro de lenha e carne cozida, tornando o ar reconfortante. — Aprenderam alguns conceitos importantes. Amanhã, ensinarei uma pequena trapaça para utilizarem a Essência quando bem quiserem... 

As colheres pararam no ar. 

— Como é?! — reagiu o grupo em uníssono. 

Um método para acessar a Essência à vontade era algo que nenhum deles ousaria ignorar. Mas, antes que qualquer um insistisse em mais detalhes, Arturo levantou uma das mãos, encerrando o assunto com um sorriso misterioso. 

— Amanhã. Por hoje, comam. 

Os protestos se dissiparam diante da fome. Um a um, os aprendizes aceitaram o silêncio do mestre e se concentraram no aroma do jantar. 

Apesar da posição de liderança, os Cavaleiros não tinham privilégios na fila. Esperavam como os demais soldados, recebiam a mesma porção, comiam o mesmo ensopado simples de legumes e carne. Essa igualdade chamava a atenção de muitos. 

Era raro ver oficiais partilhando o mesmo prato que seus homens. 

Talvez fosse por isso que os seguiam com tanta devoção. 

Quando todos se acomodaram, o grupo de Erina juntou-se aos Cavaleiros ao redor de Kaji, que ria alto de alguma piada interna. As tigelas fumegavam nas mãos, e o som dos talheres se misturava a risadas, histórias de batalhas e relatos de lugares distantes. 

O clima era leve — até Gwen decidir intervir. 

— Podemos falar sobre o elefante na sala? — disse, após terminar sua quinta tigela de ensopado. — E sim, é a quinta! — Ela limpou a boca com o antebraço e apontou as duas colheres como se fossem armas. — COMO ASSIM VOCÊS DUAS SÃO IRMÃS? E WALTZ, AINDA POR CIMA?! 

As conversas cessaram. Todos voltaram os olhares para Erina e Morgan, que congelaram por um instante. 

— Ah... verdade — disse Erina, trocando um olhar com a irmã. — Tínhamos nos esquecido disso. 

O silêncio que se seguiu foi tão espesso quanto o ensopado.  

Morgan tomou a dianteira, com a calma de quem já esperava a pergunta. 

— Que as mais velhas comecem, certo? — comentou, mexendo a colher na tigela antes de continuar. — Pelo que vejo, temos pelo menos uma década de diferença. Eu fugi ainda criança... e você? Como escapou do papai? 

Erina a observou em silêncio por alguns segundos. 

— Eu não fugi — respondeu enfim. — Ele morreu. 

A colher de Morgan parou a meio caminho da boca. 

— Faz sentido — murmurou, e voltou a comer como se nada tivesse acontecido. 

Erina arqueou uma sobrancelha, incrédula com a naturalidade da irmã. 

— Ele me salvou, na verdade... de um jeito um pouco estranho — Deu uma breve pausa, procurando as palavras. — Devo supor que ele sempre foi daquele jeito? 

Morgan pousou a tigela no chão e suspirou. 

— Você quer dizer... rude, exigente, ausente, mandão? 

— Exato. 

Morgan ficou em silêncio por um instante, o olhar perdido nas chamas da fogueira. 

— Curiosamente, não. — A voz dela soou mais baixa, quase um sussurro. — Eu me lembro dele sendo amoroso... e obcecado pelo meu futuro. 

Erina franziu o cenho. 

— Então por que fugiu? 

O riso morno que escapou dos lábios de Morgan não tinha alegria. 

— A morte da minha mãe — As palavras vieram lentas, pesadas. — Um homem que nosso pai havia salvado matou ela... apenas por ser uma híbrida. Eu seria a próxima, se papai não tivesse cravado um machado na cabeça dele. 

O som das conversas cessou por completo. Até o crepitar da lenha pareceu mais distante. 

Morgan continuou, olhando para o vazio. 

— Por um tempo, achei que as coisas poderiam voltar a ser como antes. Mas o luto o destruiu. O homem que eu chamava de pai se foi junto com ela. Dias depois, percebi que ele não seria mais o mesmo. Então fugi. 

Um sorriso triste cruzou-lhe o rosto.  

— Saber que ele morreu protegendo você... me conforta. Talvez, no fim, ele tenha voltado a ser o homem que conheci. 

Erina assentiu lentamente, sem conseguir sustentar o olhar da irmã. 

— Sim... eu acho que sim. 

Ninguém disse nada por um tempo. As chamas dançavam diante deles, projetando sombras longas que pareciam carregar o peso das lembranças. 

Alguns se perguntavam se deveriam se sentir gratos por finalmente conhecer uma parte da história de uma das Cavaleiras, ou se seria melhor nunca tê-la ouvido. 

Erina não entrou em detalhes sobre a noite em que perdera seus pais. 

Pouco depois, um a um, começaram a se recolher. As risadas haviam desaparecido, substituídas por um silêncio respeitoso. 

A noite, que prometia ser longa e alegre, terminou mais cedo do que todos esperavam — abafada pelo peso do passado que, de repente, se sentara entre eles. 

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