Volume 2 – Arco 11

Capítulo 111: Aliados Antigos

Kenshiro havia desmaiado.  

Não era um desmaio comum, mas um sono profundo, quase ritual, como se o corpo buscasse abrigo depois de um tormento que nem mesmo ele compreendia. Ainda assim, sabiam que despertaria logo. 

Estavam todos reunidos em torno da fogueira. As chamas, antes caóticas pela tempestade de vento, agora tremeluziam com uma serenidade estranha, projetando sombras que dançavam sobre os rostos cansados.  

O espadachim descansava na cama de Aline, o rosto pálido, o peito subindo e descendo devagar. 

Arturo quebrou o silêncio. 

— Peço desculpas por tudo — Sua voz soou grave, sincera. — Não é da minha natureza desconfiar dos outros, muito menos de meus amigos. Mas os tempos andam... confusos. Nunca se sabe em quem confiar. 

Erina cruzou os braços, o olhar firme. 

— Nós entendemos — Pausou por um instante. — O que aconteceu com meu marido? 

Os olhares se cruzaram entre os companheiros, hesitantes. Takashi foi o primeiro a falar. 

— Você não sabe? 

Gurok completou, coçando a barba. 

— Pela sua calma, achamos que já tivesse visto isso antes. 

— Não — respondeu Erina, fria, quase distante. — Foi a primeira vez que o vi daquele jeito — Baixou o tom, como quem fala mais consigo mesma do que aos outros. — Ele também nunca me contou sobre Walter e Olivia... Ainda que... algumas coisas façam mais sentido agora. 

— O que quer dizer? — perguntou Xin, curiosa. 

— Nada — Desviou o olhar, encerrando o assunto. 

Arturo limpou a garganta, retomando o foco. 

— Pode não parecer à primeira vista, mas Kenshiro é... — Buscou as palavras com cuidado — uma criança traumatizada. Ele vive tentando provar seu valor para todos, talvez acreditando que, se fizer o bastante, um dia se sentirá digno de si mesmo. 

Lance, sentado próximo à fogueira, remexia as brasas com um graveto. A luz do fogo refletia em seus olhos, tornando-os quase dourados. 

— Ele ignora tudo o que faz certo — disse, em voz baixa. — E se martiriza por cada erro, mesmo quando a culpa não é dele. 

Erina suspirou. 

— Quando o tio dele morreu — murmurou —, Kenshiro disse: “eu não pude salvar nenhum dos dois.” 

Drake, o único que permanecia de pé, cruzou os braços. 

— Imaginamos que a outra pessoa seja... a menina. 

O grupo de Erina trocou olhares confusos. Nenhum deles sabia quem era Anna, nem o peso que ela carregava na alma do espadachim. 

Erina, no entanto, lembrava-se de cada gesto, cada olhar perdido de Kenshiro desde o incidente em Shenxi. Havia percebido o padrão, o mesmo tormento: ele nunca se perdoava por aquilo que ele não esteve presente para tentar impedir. 

E naquele instante, o pensamento a atravessou como uma lâmina fria: 

“Se ele se culpa tanto por não estar presente... o que aconteceria se ele falhasse estando lá?” 

A ideia era intolerável. Nenhum destino terminaria bem, se o próprio coração dele insistisse em ser seu maior inimigo. 

O silêncio caiu novamente sobre o grupo, pesado e denso.  

A fogueira crepitava baixinho, como se temesse perturbar a quietude que os envolvia. 

— Vocês poderiam nos contar um pouco mais sobre vocês? — perguntou Vaelis, com o tom respeitoso, a curiosidade visível nos olhos. — E sobre como conheceram Kenshiro? 

— Sim! — exclamou Xin, inclinando-se animada. — Quero muito saber o que ele aprendeu com vocês. Como ele era quando criança? 

Aline hesitou. As mãos dela se entrelaçaram nervosamente, os dedos se tocando em um ritmo ansioso. 

— Bem... — murmurou, quase pedindo desculpas com o olhar. — Se ele não quis contar, não acho que tenhamos o direito. 

O silêncio que se seguiu foi frustrante. O grupo trocou olhares desanimados — haviam tantas perguntas, e cada resposta parecia estar atrás de uma parede que ninguém ousava atravessar. 

— Não entendo. — Havia irritação na voz de Takashi. — Qual a razão de tantos segredos? Que mal faria a gente saber do passado? Eles não confiam na gente? 

As palavras dele ecoaram entre as chamas da fogueira, provocando murmúrios silenciosos. Era claro que muitos compartilhavam do mesmo sentimento, embora poucos tivessem coragem de dizê-lo em voz alta. 

Na ausência de Kenshiro, todos os olhares acabaram recaindo sobre Erina. Ela manteve-se firme, o peso da expectativa atravessando-a como lanças por cada olhar. Sabiam que, se alguém poderia revelar algo, seria ela — e, ao mesmo tempo, era a última pessoa disposta a fazê-lo. 

Antes que Erina respondesse, Morgan interveio. Sua presença sempre parecia dominar o espaço, mesmo sem elevar o tom de voz. 

— É isso que pensam? — perguntou calmamente, apoiando o queixo sobre a mão. — Que o passado é um direito de todos? Que precisam conhecer a dor do outro para validá-lo? 

As chamas refletiam em seus olhos roxos, e a xícara que flutuava ao seu redor girava lentamente, como parte de um ritual hipnótico. 

— Por que o passado importa tanto — continuou ela — se não podem mudá-lo como o futuro, nem apreciá-lo como o presente? O passado só serve para duas coisas: melancolia e nostalgia. E nenhuma delas ajuda no julgamento de quem está vivo agora. 

Deu um pequeno gole em seu chá, com uma elegância natural, cuidando para não se inclinar demais e esbarrar em ninguém. O aroma das ervas quentes se misturava ao do fogo e à brisa da manhã, criando uma atmosfera densa, quase cerimonial. 

— Parem e pensem — disse ela, olhando cada um nos olhos. — Vocês são as mesmas pessoas desde que entraram neste grupo? “É claro que somos”, diriam. Mas pensem de novo: quem vocês seriam se não estivessem aqui, sob as ordens de Erina e Kenshiro? 

As palavras pareciam vagas à primeira vista, mas, conforme o silêncio se alongava, começaram a penetrar lentamente nas mentes dos presentes. Cada um revisitava seu próprio passado — suas quedas, seus pecados, o momento em que foram acolhidos. 

Morgan observava todos em silêncio, satisfeita por ver a reflexão tomando forma. 

Com exceção de Fox e da dupla de magos, todos sabiam, no fundo, que seus destinos haviam sido traçados para a morte — ou coisa pior — antes de conhecerem Kenshiro e Erina. 

Mas essa gratidão silenciosa não era submissão. Ninguém ali devia nada ao casal. Eles haviam escolhido ficar, lutar e se unir. 

E então, quando a fogueira estalou, Erina quebrou o silêncio, sua voz baixa, mas firme como uma lâmina sendo desembainhada: 

— Kenshiro e eu nunca pedimos o passado de ninguém para julgá-los. Apenas estendemos a mão. Talvez seja hora de aprenderem a fazer o mesmo. 

As chamas oscilaram, refletindo nos olhos dela. E naquele instante, ninguém mais teve coragem de questionar o que o casal guardava no passado. 

Enquanto Soren e Vaelis pareciam alheios a tudo que acontecia ao redor, Fox observava atentamente os Cavaleiros de Camelot. Não apenas o grupo principal, mas também os milhares de soldados que compunham o exército imperial. Cada gesto, cada comando, cada olhar entre eles — tudo se movia com uma harmonia assustadora, fruto de anos de disciplina e lealdade cega. 

Aos poucos, Fox começou a perceber algo que ninguém havia notado até então: o grupo de Erina e Kenshiro era um reflexo imperfeito daquele que agora os hospedava.  

As hierarquias, a dinâmica, a tentativa de parecer coeso mesmo em meio ao caos — tudo parecia uma tentativa desesperada de imitá-los. Como se, copiando sua força e sua ordem, pudessem evitar as tragédias que os perseguiram até ali. 

E, talvez, pensou o Herói do Povo, fosse essa a origem da mudança que ambos — Erina e Kenshiro — haviam sofrido desde o incidente em Shenxi. 

Um leve som de passos sobre a grama o tirou de seus pensamentos. 

— Olá, pessoal. 

A voz era cansada, reconhecível.  

Kenshiro se aproximava lentamente, com olheiras profundas e o semblante abatido. O esforço de conter os ventos havia drenado quase toda a sua energia. Parecia mais leve, exausto, como alguém que despertou de um sonho ruim apenas para perceber que o pesadelo ainda o cercava. 

O silêncio o acompanhou até o centro do círculo.  

O grupo, ainda envergonhado pela cena anterior, evitava o olhar dele.  

Ninguém parecia ter coragem de iniciar qualquer conversa, o clima apenas ficando mais pesado, até que Erina se levantou e o recebeu com um abraço apertado e um beijo breve — um gesto simples, o suficiente para romper o gelo. 

Kenshiro ficou corado na hora. O toque da esposa o acalmou, e o constrangeu diante dos risos abafados que se seguiram. Tentando disfarçar o embaraço, sentou-se ao lado dela, olhando para o fogo que ainda ardia no centro do acampamento. 

— Está se sentindo melhor? — perguntou Lance. 

— S-sim... — respondeu o espadachim, evitando o olhar do mentor. 

— Então me diga — continuou Lance, apoiando o cotovelo sobre o joelho e inclinando-se levemente —, o que pretende fazer agora? 

Kenshiro coçou a cabeça.  

— Você diz... sobre a jornada? — Fez uma pausa. — Seguir em frente, eu acho. 

Lance balançou a cabeça lentamente.  

— Estou falando das Sombras e dos Ratos. — O tom era frio, direto. — Imagino que já tenham cruzado com alguns. 

O grupo inteiro se sobressaltou. 

— Você sabe?! — disseram quase em coro. 

Arturo gargalhou, sua voz ecoando por todo o acampamento. 

— Hahahaha! É claro que sabemos! Achavam mesmo que o Imperador esconderia algo assim de nós? 

Os soldados próximos sorriram com orgulho, a expressão de Lance permaneceu séria. 

— Responda à pergunta, Kenshiro. 

Kenshiro respirou fundo.  

— Sinceramente? Eu não sei. Só... seguir até o destino final, e torcer para que seja o suficiente, de algum modo. 

Lance estreitou os olhos.  

— Uma jornada cega e sem garantias. — As palavras saíram como uma lâmina sendo desembainhada. — Foi por isso que você treinou tanto? 

O espadachim nada respondeu. 

Lance soltou um suspiro e se levantou.  

— Pois bem... — murmurou, e olhou para Arturo. — Seu grupo ainda está incompleto. 

Arturo cruzou os braços, abrindo um sorriso largo.  

— Sim, o garoto Ren. Ele será de grande ajuda. 

Antes que Kenshiro pudesse perguntar qualquer coisa, o acampamento começou a se mover. Como se uma ordem silenciosa houvesse sido dada, os soldados iniciaram o processo de desmontar as tendas e apagar as fogueiras. O chão tremeu sob o compasso das botas, o som metálico das armaduras se misturando ao eco das vozes e comandos. 

Em poucos minutos, o que antes era um vilarejo militar fervilhante começou a se transformar em uma planície ordenada, o caos se convertendo em disciplina. 

Kenshiro avançava entre os soldados, o som ritmado de suas botas ecoando em meio à confusão. Tentava alcançar Lance antes que o cavaleiro se perdesse de vista entre os soldados que cruzavam o pátio como um enxame desordenado. Mesmo em meio ao caos, Kenshiro desviava com destreza, os ombros roçando nas armaduras dos homens que passavam às pressas. 

— Mas senhor! — gritou, ofegante. — O Ren nem sabe o que aconteceu com Reiji! Ele já tem a própria vida agora. Não deveria abandonar tudo para se juntar a nós... 

Lance parou tão abruptamente que o som metálico de suas botas cortou o ar. O movimento fez o manto negro agitar-se como asas de um corvo. Lentamente, ele se virou. 

Os soldados, ainda que se movessem em plena desordem, pareciam possuir uma harmonia silenciosa quando passavam por ele — nenhum ousava tocá-lo, como se uma aura invisível delimitasse o espaço ao redor do Cavaleiro. 

— É o que você queria, não é? — disse ele, em um tom baixo, quase calmo demais para a intensidade que havia em seus olhos. 

Kenshiro piscou, confuso.  

— O quê...? 

— Que alguém assumisse o problema por você. Ou que ele simplesmente desaparecesse, como se o destino tivesse piedade. 

A vergonha o atingiu como uma lâmina.  

As palavras de Lance o atravessaram com a precisão de um golpe. Estava prestes a se afastar, quando sentiu o toque firme — e inesperadamente gentil — da mão do mestre em seus cabelos.  

Por um instante, foi como voltar à infância: o mesmo gesto de carinho, o mesmo calor que um dia o fez acreditar que poderia se tornar forte o bastante para proteger o mundo. 

— E você não está errado, meu pupilo — murmurou Lance, a voz grave, sem dureza. — Nenhum de nós é tolo o bastante para celebrar diante de um fardo. Mas somos os únicos capazes de carregá-lo. E por isso... é nossa obrigação. 

Ele ergueu o olhar para o horizonte, olhando para uma memória, ou uma visão de sua mente, da qual somente ele conseguia interpretar. 

— Fazemos isso para que os outros possam viver aquilo que o destino nos negou. 

O silêncio que se seguiu pesou mais que qualquer ruído de guerra. Kenshiro ergueu o olhar, e pela primeira vez viu no semblante de seu mestre algo que jamais imaginara: uma tristeza profunda, resignada, quase humana. 

— Eu já aceitei — continuou Lance, com um suspiro contido —, jamais terei a vida que desejo. Serei condenado a ver todos que amo partirem diante dos meus olhos... um a um. — Fechou os punhos, o maxilar tenso. — Talvez, quem sabe, eu tenha mais sorte na próxima vida. 

Ele respirou fundo, forçando a voz a não vacilar.  

— Mas tenho esperança de que você ainda possa. Que Ren ainda possa. Nem tudo está perdido para vocês. 

Sem mais palavras, virou-se e retomou o caminho, o manto arrastando um rastro de poeira no chão. 

Um pouco atrás, Erina observava o marido com o olhar distante.  

O turbilhão de soldados entre eles parecia um mar revolto, separando-os. 

Ela o via abrir e fechar os punhos em silêncio, como quem tenta decidir entre sustentar a esperança, ou finalmente aceitar o fardo inevitável. 

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