Volume 2 – Arco 11

Capítulo 108: Nictofobia

A escuridão do fundo do rio repousava sobre Erina — uma noite sem estrelas, densa e sem contorno. 

Era tudo o que ela podia ver, ainda que permanecesse de olhos fechados como uma morta. 

A água gelada cortava sua pele como mil lâminas, mas o frio já não a incomodava. 

Não o sentia. 

O que realmente a perturbava era o vazio à sua volta — aquela ausência absoluta de luz, como se o mundo tivesse sido apagado e ela existisse apenas no resto de um sonho que se desmanchava. 

Em toda a sua vida, Erina precisara de um toque de luz para dormir em paz: a chama trêmula de uma vela, a aura cálida de Kaji, ou até o brilho discreto de uma lamparina esquecido no canto do quarto. 

Somente fora capaz de dormir perfeitamente no escuro — quando estava envolta nos braços de Kenshiro, seu marido, seu farol. 

Naquele abraço, mesmo a noite parecia respirar. 

Mas agora, lançada novamente ao abismo, ela estava sozinha. 

Nenhum farol, nenhuma centelha. 

A escuridão a abraçava de um jeito perverso, como se ansiasse por finalmente tê-la sob seu domínio. 

Seria assim que morreria? 

Tão rápido, tão cru? 

Não... o destino não permitiria algo tão banal. 

Não para ela. 

Dizem que o medo da escuridão é coisa de criança — um resquício da imaginação ingênua. 

Mas quem, em sã consciência, teria curiosidade pelo desconhecido num mundo onde o mal espreita em cada sombra, onde ratos e lembranças se escondem sob o mesmo manto negro? 

A escuridão não é uma ausência — é uma presença. 

E Erina sempre soube disso. 

Talvez fosse um trauma antigo, nascido em algum porão esquecido da infância. 

Mas, ao longo da vida, seu medo se transformou em sabedoria. 

Ela sabia que quem abandona a luz, é devorado. 

Enquanto afundava em seus pensamentos, a água à sua volta deixou de parecer líquida. 

Ganhou peso. Forma. 

Mãos invisíveis emergissem das profundezas, tentando agarrá-la, afundá-la para mais longe da superfície. 

Não eram ilusões — eram presenças, espectros do rio, ou talvez de algo pior. 

Cada toque gélido se enrolava em seus braços, em sua cintura, e ainda assim, a dor era melhor que a escuridão. 

Sentir aquelas mãos era, ao menos, uma prova de que ainda existia. 

Erina manteve-se em silêncio. 

Nem gritos, nem bolhas de ar — apenas a quietude do desespero. 

Até que, de repente, um toque diferente atravessou o caos. 

Um toque quente. 

Algo — alguém — segurou sua mão. 

Dedos firmes, conhecidos, entrelaçando-se aos seus com a força de quem promete não soltar jamais. 

O calor subiu por seu corpo como um raio, dissipando o frio e, por um instante, até o medo. 

Era uma sensação que ela reconheceria entre mil. 

Ela não hesitou. 

A vontade de vê-lo foi mais forte do que qualquer lógica, qualquer dor. 

Abriu os olhos, mesmo que o escuro ainda tentasse devorá-la. 

E, com um fio de voz, como um sussurro que implorava para ser ouvido, ela chamou: 

— Kenshiro... 

***

O primeiro toque que Erina sentiu foi o da maciez. 

Um tecido quente, pesado, envolvendo-a como se quisesse impedi-la de escapar novamente. 

Por um instante, acreditou ainda estar no fundo do rio — mas o som que ouviu não era o do fluxo da água, e sim o farfalhar lento de tecido sendo agitado pelo vento. 

Quando abriu os olhos, o mundo já não era mais escuridão. 

Acima dela, o teto — não de pedra, nem de madeira — uma lona branca, espessa, imaculada. Uma tenda. 

A luz do sol filtrava-se suavemente através do tecido, banhando tudo em um tom âmbar e tranquilo. 

Erina demorou alguns segundos para compreender onde estava. 

A cama sob seu corpo era grande demais até para um casal de guerreiros, o colchão firme e o estofamento macio como nuvem. 

O lençol tinha textura de veludo, e a coberta parecia ter sido tecida com fios de ouro. 

Era conforto demais — luxo demais — para alguém como ela. 

“Nem mesmo os governantes do Império dormiam em algo assim”, pensou. 

Ao redor, o interior da tenda imitava uma casa: móveis de madeira polida fincados sobre o solo gramado, pequenas luminárias suspensas, cortinas brancas e bordadas com o símbolo imperial. 

O ar cheirava a flores secas e mel quente. 

Tentou se mover, mas sentiu um peso suave em sua mão. 

Baixou os olhos e viu o motivo: Kenshiro. 

Ele dormia sentado ao seu lado, ainda vestindo parte de sua armadura, a cabeça apoiada no colchão, os dedos entrelaçados aos dela com força. 

Mesmo no sono, parecia temer que ela desaparecesse outra vez. 

— Amor… — murmurou, acariciando os cabelos dele. 

O toque bastou. Kenshiro abriu os olhos lentamente, confuso por um momento, até que a viu. 

Então, sem aviso, ele a envolveu num abraço, apertado, urgente, quase desesperado. 

Erina sentiu o coração dele bater contra o seu, e entendeu — ele havia chorado por ela. 

Ficaram assim por alguns segundos eternos, até uma voz interromper o reencontro. 

— Vejo que acordou, enfim — disse uma mulher à entrada da tenda. Sua voz era gentil, baixa, como o toque de uma pena. — E bem a tempo! O café está sendo servido. 

Erina virou o rosto. 

A visitante era alta, esguia, com cabelos claros presos em um nó simples. 

Apesar da postura tímida, havia nela algo elegante — uma nobre que tentava parecer comum. 

Curvava-se ao falar, talvez para disfarçar a própria altura. 

Erina nunca a tinha visto antes. 

Mas o olhar rápido que a mulher lançou para Kenshiro não passou despercebido. 

Era um olhar de quem já o conhecia — e bem. 

— Quem é ela? — perguntou Erina, tentando soar casual, mas o leve estreitamento de seus olhos denunciava o ciúme. 

Kenshiro tossiu, claramente pego de surpresa. 

— É… foi quem nos emprestou a cama. — Forçou um sorriso nervoso. — Bem confortável, não acha? 

— Então já dormiu aqui? — cruzou os braços. — Com ela? 

O silêncio que se seguiu foi denso o bastante para esmagar o ar da tenda.  

Kenshiro piscou, procurando desesperadamente uma rota de fuga. 

— Vamos, vamos! — disse, levantando-se de súbito e oferecendo-lhe a mão. — Não queremos perder o café com os outros, certo? 

Erina olhou para a mão estendida, mas não a pegou de imediato. 

Seu olhar dizia mais do que palavras: essa conversa ainda não terminou. 

Kenshiro, por sua vez, fingiu não perceber — mas o rubor em seu rosto e o desconforto em seu sorriso entregavam tudo. 

Erina ainda tentava reunir seus pensamentos quando atravessou a cortina da tenda — e quase perdeu o fôlego. 

Do lado de fora, um oceano de pessoas se estendia até onde a vista alcançava. Homens e mulheres em trajes militares, bandeiras ao vento, lanças fincadas no solo, o tilintar de armaduras e vozes se misturando em um coro caótico. 

O ar cheirava a ferro, fumaça e pão recém-tostado. 

Estava em um acampamento militar imperial — um dos maiores que já vira. 

As tendas formavam ruas improvisadas, e entre elas, carroças passavam carregando armas, barris e provisões. Era como um vilarejo em movimento, uma pequena cidade feita de lona e disciplina. 

Mesmo em tempos de guerra, raramente se via uma concentração dessas fora das fortalezas ou das muralhas das cidades imperiais. 

Aquilo era… incomum. Inquietante. 

— Esse é o destacamento que Nolan mencionou? — perguntou, a voz entre o espanto e a desconfiança. 

Kenshiro, que caminhava um passo à frente, apenas virou o rosto com um sorriso cansado. 

— O quê? Não, não é — Fez um gesto com a cabeça, chamando-a. — Agora venha. 

Ele parecia conhecer cada caminho daquele labirinto de tendas. 

Sabia onde pisar, quem cumprimentar, para onde ir — como se tivesse crescido entre aquelas fileiras. 

Erina começou a se perguntar quanto tempo havia dormido… ou quanto tempo o marido passara ali. 

— Amor, sério — insistiu. — Onde estamos? Quem são essas pessoas? O que está acontecendo? 

— Tenha paciência, meu amor — respondeu com ternura, mas havia algo tenso em seu olhar. — Depois do café, eu te explico tudo. Eu prometo. 

A promessa foi dita como quem tenta conter uma verdade incômoda. 

Erina mordeu o lábio, irritada, mas cedeu. A cada passo, a sensação de desconforto aumentava. 

Não sabia se devia se sentir segura por estar entre aliados — ou em perigo por não entender por que estava ali. 

Quando chegaram ao centro do acampamento, uma gigantesca fogueira rugia diante deles, as chamas subindo como muralhas de luz. 

O calor a atingiu no rosto, e por um momento ela esqueceu do frio da noite anterior. 

Ao redor da fogueira principal, dezenas de pequenas fogueiras menores cintilavam. 

Sobre elas, chaleiras de ferro ferviam, liberando o aroma forte e amargo do café imperial. 

Soldados riam, discutiam, poliam espadas — uma rotina tão comum que chegava a parecer ensaiada. 

Mas o que mais a surpreendia era a familiaridade. 

Cada soldado que passavam fazia questão de cumprimentar Kenshiro com respeito — alguns com sorrisos sinceros, outros com reverências discretas. 

Ele retribuía a todos com um simples aceno ou inclinar de cabeça. 

Erina, um pouco perdida, tentou imitá-lo para não parecer deslocada. 

Era como assistir a uma peça da qual não lembrava ter participado. 

Seu coração, no entanto, se acalmou ao avistar rostos conhecidos. 

À frente de uma das fogueiras, seus companheiros estavam reunidos, sorridentes, como se nada de terrível tivesse acontecido. 

O café já estava servido, mas esperavam por ela antes de começar. 

O primeiro que notou sua chegada foi Kaji. 

E, curiosamente, fazia-se presente em cada uma das fogueiras, conversando com todos que tivessem interesse nele. 

Conversava animadamente com um grupo de arqueiros à direita, gargalhava com soldados à esquerda e, ainda assim, acenava para Erina e Kenshiro como se estivesse apenas e unicamente ali. 

Era uma cena quase sobrenatural, mas profundamente familiar. 

Afinal, Kaji não era humano. 

Era um Servo, um ser mágico de poder quase ilimitado, capaz de projetar sua presença em quantos lugares pudesse. 

E ainda assim, era sempre verdadeiro e eles mesmo, não importando com quantos conversasse ao mesmo tempo. 

— Que bom que você está bem! — A voz grave de Gurok foi a primeira a recebê-la, vibrando como um trovão contido. 

Sebastian apressou-se em servi-la: encheu uma xícara fumegante e, com um gesto educado, cedeu seu assento ao lado da fogueira. 

Takashi, que estava ao lado, levantou-se também, abrindo espaço para Kenshiro sentar-se junto à esposa. 

O calor da bebida e o cheiro de café torrado preencheram o ar. 

Erina respirou fundo, tentando se situar. 

— Vejo que estão todos bem — disse, levando a xícara aos lábios. Fechou os olhos por um instante, saboreando o gosto amargo e reconfortante. — Fico… aliviada. 

— Aliviados estamos nós! — respondeu Xin, com o habitual entusiasmo. 

Zhen, mais sério, acrescentou: 

— Você acabou sendo esmagada pela carruagem. Ficamos horas tentando tirá-la debaixo dela. 

Erina arregalou os olhos.  

— “Horas”? 

Fox, que se mantinha um pouco afastado, observando o fogo, completou: 

— Sua magia impediu que você morresse afogada. Mas ninguém sabia quanto tempo conseguiria resistir. 

Vaelis cruzou os braços, com o olhar sereno.  

— Soren e eu compartilhamos parte da nossa mana com você, para mantê-la viva. 

— Pessoal... — murmurou Erina, corando. — Vocês não deviam ter feito isso por mim... 

Antes que pudesse dizer mais, Kenshiro pousou a mão sobre a dela, interrompendo-a. 

— Não diga nada, Erina... — falou baixo, com os olhos fixos na chama. — Nós... não fomos nós que te salvamos. 

— Como assim? — perguntou, confusa. 

Um silêncio desconfortável caiu sobre o grupo. 

A alegria de poucos minutos antes dissipou-se. 

Os olhares fugiam, as mãos tremiam. 

Ninguém queria ser o primeiro a dizer o que todos sabiam: haviam falhado com ela. 

Então, de repente... 

— Então essa é a garota de sorte? 

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