Volume 2 – Arco 10
Capítulo 99: Intruso
Fox despertou apenas quando a luz dourada do sol atravessou os telhados da cidade e repousou sobre seu rosto. A claridade o obrigou a abrir os olhos devagar, piscando contra o brilho incômodo.
Logo percebeu algo estranho: estava encostado na parede imponente da prefeitura, o corpo apoiado contra a pedra fria. As conversas e o barulho cotidiano da praça o atingiram como um soco. Onde antes houvera sangue, gritos e a devastação da batalha, agora não restava nada. O chão estava limpo, polido como se tivesse sido lavado. Nenhum corpo dos imperiais, nenhuma arma quebrada, nenhum traço da carnificina. Até seu próprio grupo havia desaparecido.
Assustado, levantou-se de um salto, os músculos ainda doloridos do combate. Foi então que notou: um brilho sutil, quase invisível, escapava de sua pele em ondas frágeis, como fagulhas de magia dissipando-se ao vento. Não sentia dor, nem fraqueza, mas havia algo diferente nele — embora não conseguisse compreender o quê.
— Finalmente acordou? — disse uma voz calma, próxima demais.
Fox virou-se, instintivamente levando a mão à sua espada. Skadi estava ali, surgida do nada ao seu lado.
— Como você...? — balbuciou, desconfiado.
Antes que pudesse terminar, Surtr materializou-se à sua outra margem com a mesma naturalidade, como se sempre tivesse estado ali.
— Magia, meu caro Herói do Povo — explicou ele, com um sorriso quase divertido. — Nós o ocultamos da visão de todos.
Os dois irmãos não vestiam mais suas armaduras de guerra.
Skadi trajava um vestido azul-escuro que caía até quase o chão, discreto no corte, mas elegante, com um decote modesto e ombros descobertos.
Surtr parecia absurdamente comum: uma camisa simples de linho e uma calça cortada até os joelhos, como um trabalhador qualquer.
Essa normalidade, no entanto, só tornava a presença deles ainda mais perturbadora.
— Certo... — murmurou Fox, passando a mão pelos cabelos desalinhados, ainda tentando recuperar o fôlego da realidade. — Vocês fizeram o mesmo com os imperiais?
Skadi respondeu sem hesitar:
— Não. Para isso, contamos com a ajuda daqueles magos.
Surtr completou com desdém:
— Não são exatamente especiais, mas pelo menos sabem seguir ordens.
Fox estreitou os olhos.
— E... o que fizeram, então?
Os irmãos trocaram um olhar silencioso, como se compartilhassem o mesmo pensamento. Quando falaram, foi em perfeita sincronia, como uma única voz:
— Forçamos a decomposição acelerada de seus corpos até não restar nada.
— Sem um funeral...? — perguntou Fox, chocado. Recuando um passo.
— Não havia tempo para isso — Skadi respondeu com frieza, os olhos fixos nele como lâminas de gelo.
— E não podíamos arriscar que voltassem como Renascidos — completou Surtr, com uma naturalidade que fez o estômago de Fox se revirar.
Ele sentiu um incômodo profundo apertar-lhe o peito. Sempre aprendera a respeitar os mortos, fossem aliados ou inimigos. Viu seu mestre receber um funeral simples, e esse gesto havia significado o mundo para ele. O medo de não ter esse mesmo destino em caso de sua morte voltava agora com mais força.
— E os meus homens? — perguntou, temendo pelo pior. — O que aconteceu com eles?
Skadi inclinou levemente a cabeça, o olhar suavizando-se um pouco.
— Não conseguimos ver a luta inteira, mas estão todos vivos.
— Aquele espadachim e a cavaleira... — disse Surtr, e pela primeira vez parecia genuinamente animado. — Eles conseguiram usar o poder da Essência. Ainda que de forma tosca.
— O quê?! Eles... como...? Como que foi?
Skadi levou a mão delicadamente ao queixo, tentando se lembrar.
— Foi parecido com o seu, imagino. Durante o combate, seus olhos brilharam em dourado, e seus corpos foram tomados por uma força e velocidade muito além do normal.
— Chegaram até a resistir contra os ataques de Ajax carregados de Essência — acrescentou Surtr, quase rindo de prazer com a lembrança. — Mas não conseguiram criar os seus próprios.
Fox ainda lutava para processar tudo aquilo.
— Vocês parecem saber... bastante sobre esse poder.
Os irmãos sorriram com a mesma calma perturbadora.
— É claro — responderam em uníssono. — Não seríamos Generais se não soubéssemos.
Skadi inclinou-se levemente para frente, sua voz descendo para um tom mais sombrio.
— Para falar a verdade, você teve sorte por termos conseguido nos conter.
Surtr deixou o sorriso se transformar em algo mais feroz:
— Do contrário...
— ...você teria... — continuou Skadi.
— ...morrido em menos de um segundo — finalizaram juntos, com perfeição cruel.
Como se quisessem provar seu ponto, seus olhos brilharam em dourado por um instante. O ar ao redor vibrou, pesado, como se uma tempestade fosse desabar a qualquer momento. Eles tinham controle absoluto sobre suas próprias Essências, dominando-as como se fossem parte natural de seus corpos. Fox, em contraste, só conseguia acessá-las em momentos de desespero, quando a morte quase o tocava; e ainda não aprenderá a utilizar todas as suas propriedades além do aprimoramento físico.
A tensão se quebrou quando Skadi abriu espaço para ele.
— Agora vá. Se junto aos seus companheiros.
Fox hesitou por um instante, mas começou a caminhar. Já estava prestes a virar a esquina quando a voz trovejante de Surtr ecoou atrás dele:
— Ah, e uma última coisa! Quando quiserem recuperar a armadura da moça... procurem-nos junto do Governador na prefeitura!
(...)
Durante seu caminho de volta, Fox refletia em silêncio. Cada passo parecia mais pesado que o anterior, não por cansaço físico, mas pelo peso de suas próprias dúvidas.
Pensava em sua trajetória até ali, em tudo o que conquistara e no quanto havia mudado desde que partira como simples aprendiz de Reiji Torison.
Seu mestre jamais demonstrara conhecer o poder da Essência. Na verdade, nunca sequer parecera precisar dela. Vencia batalhas apenas com disciplina, técnica e convicção.
Fox, por outro lado, recorria à Essência apenas nos momentos em que a morte quase o abraçava. Usava-a como último recurso, mas cada vez que o fazia, perguntava-se: seria isso um sinal de poder ou de fraqueza?
Era realmente merecedor de suas vitórias se dependia de um poder oculto que não dominava? Ou era apenas um farsante, carregado por uma chama que mal compreendia?
Talvez a única maneira de não ser assombrado por essa dúvida fosse aprender a dominar a Essência. Os gêmeos não pareciam dispostos a ensinar-lhe nada. Restava-lhe procurar outros guias, perder-se nos livros… ou arriscar-se a descobrir sozinho.
— Com licença… você é o Fox, não?
O coração de Fox quase parou.
“Essa voz…!”
Virando-se devagar, encontrou um velho enorme. A barba longa e branca descia como um rio, lembrando as histórias infantis de um espírito festivo que trazia presentes aos bons e carvão aos maus.
Fox não se enganou. Por trás da aparência de bondade havia uma presença sufocante. Reconheceu de imediato a aura que fazia sua pele arrepiar e seu sangue gelar.
— Ajax… — murmurou.
O idoso sorriu, apoiando-se em uma bengala que mais parecia o tronco retorcido de uma árvore antiga.
— Não se preocupe. Não vim aqui para lutar.
Fox permaneceu tenso. Se Ajax tivesse desejado sua morte, já teria feito quando ainda estava de costas. Forçou-se a ouvir, apesar do instinto que gritava para fugir.
— Nã-nãão… se pr-pr-pr…eocupe…! Nããão vim… a-a-aqui… para… lutar…
Le-levantou… só uma… mão… ou era… a outra? Ben-ben-bengala… tronco… árvore… ou… não… não…
###
A voz deixou de ser voz. Tornou-se ruído. Tornou-se algo errado.
…fala… não… fluxo… travado… não… não… ouvir… palavras… ou… não… entender… entender… entender…
.
.
.
Peço desculpas. Você não estava interessado em Fox, não é?
Que tal voltarmos… para onde a história realmente deveria estar?
(...)
De volta à hospedaria, Fox mal respirou. Subiu as escadas como se cada degrau fosse um inimigo a ser vencido, sua mente acelerada e o coração pesado pelo pressentimento. Queria apenas confirmar com os próprios olhos que todos estavam bem.
Ainda se lembrava de tudo que Ajax lhe contara; mal sabia se deveria considerá-lo um inimigo naquele momento. Devido às circunstâncias, achou melhor apenas esquecer do assunto naquele momento.
Quando abriu a porta de seu quarto, o ar pareceu se esvair de seus pulmões.
Havia uma figura nova entre eles.
Um intruso.
Kenshiro e Erina permaneciam deitados na cama, inconscientes, vulneráveis. Ao redor, os demais jaziam no chão, derrotados sem sequer terem tido chance de lutar. O quarto, que antes servira de refúgio, agora se tornara um campo silencioso de ruína.
No centro, erguia-se um homem. Empunhava uma espada colossal, larga e pesada como se fosse uma muralha em forma de lâmina. O fio reluzia sob a luz bruxuleante da lareira, apontado diretamente para o casal adormecido, como se nada fosse mais urgente ou importante do que arrancar-lhes a vida.
E apenas Anastasia ainda estava de pé. Pequena, trêmula, porém com o olhar fixo no invasor. Tentava enfrentá-lo, ainda que seu corpo delicado denunciasse a inutilidade da coragem. A cena feria Fox como uma lâmina invisível: aquela jovem não poderia resistir nem por um instante.
Seu corpo reagiu antes da mente.
Sacou a katana num movimento feroz.
— IMPULSO!
Rasgou o ar, avançando em um salto. Passou por Anastasia em um sopro, protegendo-a com o próprio movimento, e num instante sua lâmina já roçava o pescoço do inimigo.
O impacto, no entanto, não foi o que esperava.
THINK!
A espada gigantesca aparou o golpe com naturalidade, como se fosse uma criança brincando com um galho contra um adulto armado.
Fox mal teve tempo de pensar no próximo movimento — recuar, girar, golpear de novo. O invasor foi mais rápido.
Um único chute.
Um simples e brutal golpe na barriga, mas com uma força tão avassaladora que o ar escapou de seus pulmões num estalo. Seu corpo voou como um boneco, esmagando-se contra a parede de madeira.
A dor foi imediata, a escuridão veio ainda mais depressa. Por um instante, acreditou ter perdido a consciência.
Quando voltou a se perceber, o mundo parecia distante, enevoado. E ali estava ele: o homem, parado à sua frente. Sua sombra cobria o quarto inteiro. A espada colada em sua garganta, fria como gelo, ameaçava ceifar a chama que ainda restava em seu peito.
Fox, o Herói do Povo. A Raposa Flamejante. O homem que enfrentara 2 Generais. Fora vencido.
Assim, facilmente.
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