Volume 2 – Arco 10

Capítulo 100: Clímax

Interessante… 

Não esperava que alguém pudesse se apegar a algo tão… fútil. Uma trama de guerreiros feridos, de vitórias frágeis, de nomes que um sopro do tempo logo apagará. E, ainda assim, você permanece. Sempre insistindo. 

Você está mesmo… determinado a ver o fim desta história? 

Pois bem… 

Talvez eu lhe conceda algo em troca dessa teimosia. Uma recompensa pela sua obstinação. Afinal, poucos chegam até aqui sem desviar os olhos, poucos suportam a presença do que se esconde por trás da superfície desta narrativa. 

Então ouça com atenção. 

Não será um simples vislumbre, como as Crônicas envoltas em metáforas e símbolos. Não será o conforto das lendas, nem a névoa da incerteza. O que verá agora é a verdade nua. O fato. A certeza do que virá. 

Você entendeu? 

Embora os nomes não possam ser pronunciados — não ainda —, sei que você já os pressente. Sei que reconhece as silhuetas, que consegue ouvir os ecos de suas vozes. Você sabe de quem falo. 

Fufufu… 

***

Não existem mais razões para mentiras, bajulações ou véus de cortesia. O tempo das máscaras já terminou. Só restam os fatos. Nus, cruéis, imutáveis. 

O Império… falhou. 

Em sua arrogância, em sua presunção cega e em sua prodigiosa capacidade de nada fazer, permitiu que o pior dos males se libertasse. E, como uma onda de trevas, ele varreu o grande continente, arrastando cidades, vilarejos, muralhas e esperanças até chegar às portas da Capital. 

Tudo começou em meio a uma celebração. Um festival da Corte das Máscaras, anunciado como o maior de todos. E, de fato, foi. Entre danças, encenações e ilusões cintilantes, o público aguardava o último número, aquele que deveria coroar a noite. 

E foi ali, diante de todos, que a farsa se revelou. 

No centro do palco, entre aplausos e gargalhadas ainda ecoando, surgiu um General dos Remanescentes. Sozinho, desarmado, mas com uma presença que silenciou cada alma no recinto. Com voz firme, formalizou a guerra vinda do seu lado; apenas o Império havia feito, sem uma resposta de seu adversário. Uma declaração sem precedentes. 

Soldados imperiais avançaram. Até um dos heróis imperiais tentou impedi-lo. Mas o General desapareceu como se nunca tivesse estado ali, deixando apenas o peso de suas palavras. 

E, apesar da ousadia, o Império permaneceu calmo. Seguro. Confiava na imensa muralha de Aranost, a fortaleza indestrutível que separava as terras geladas dos Remanescentes do coração fértil do continente.  

A muralha, diziam, jamais cairia. 

Até que caiu. 

Ninguém soube dizer como. Nenhum relato é claro, nenhuma verdade foi preservada. Só havia a certeza de que a barreira ruíra. E com ela, a guerra atravessara o limiar do impossível. 

O que se seguiu não foi um cerco. Não foi um exército marchando. Foi algo muito pior. 

Das Geleiras avançou um monstro, uma calamidade em forma viva, que arrasou uma cidade inteira em uma única noite. Nenhuma muralha, nenhum soldado, nenhuma estratégia fora capaz de contê-lo. Somente um herói imperial conseguiu pôr fim à criatura. Mas a lição foi clara: aquilo era apenas o começo. 

E o Império… nada fez. 

Ironia ou destino, não importa. Os tronos permaneceram mudos, os generais hesitaram, e os governantes preferiram reuniões e promessas vazias.  

Enquanto isso, o Herói do Povo, aquele que não era prestigiado pelo Império, que não recebeu seu título pelo reino a que servia, mas pelas pessoas que protegia, ergueu-se. 

Ele mesmo organizou a evacuação das cidades, conduzindo famílias inteiras até a Capital. E pagou o preço: precisou desobedecer às ordens imperiais, enfrentando outros heróis em batalha para salvar aqueles que o Império abandonara. 

Como se tudo estivesse previsto, o verdadeiro horror veio a seguir. 

Os Renascidos. 

Eles surgiram das terras mortas, ergueram-se das cinzas, arrastaram-se para fora de seus túmulos. Não em um local isolado, mas em todo o continente, como se a própria terra tivesse sido amaldiçoada. 

Cidades que não foram evacuadas a tempo desapareceram do mapa. Não restaram corpos, nem testemunhas. Apenas silêncio e fumaça. 

E, como se obedecessem a um instinto sombrio, os Renascidos marcharam em direção à Capital. A última fortaleza. O último refúgio. O lugar onde tudo seria decidido. 

Eram o maior exército que o mundo já testemunhara. 

Não uma tropa formada por juramentos ou bandeiras, mas por rancor. Por desespero. Por corpos que haviam sido privadas de uma morte justa. Cada Renascido era a soma de sua dor e de sua revolta, a lembrança encarnada de que no Império morrer injustamente não era exceção — era regra. 

Marchavam sem sede, sem fome, sem medo. Apenas com o eco de sua vontade inquebrantável de continuar existindo. 

E, ao contrário dos exércitos comuns, não podiam ser detidos por lanças, flechas ou fogo. Somente ataques carregados pela Essência podiam lhes dar o descanso definitivo. Mas esse segredo, naquela altura, era privilégio de pouquíssimos. 

O Império, cego em sua arrogância, não levou a ameaça a sério. Riu dos relatos, confiou em muralhas e discursos vazios. Pouco se importaram quando a Primeira Muralha fora destruída, era previsto. 

Até que sua Segunda Muralha caiu. 

O som de sua ruína ecoou por todo o continente como um trovão de morte. Não houve mais espaço para desdém ou indiferença: o pânico tomou a Capital inteira. 

E, com a muralha em escombros, a Capital estava oficialmente cercada. 

Havia um plano, no papel. Um cálculo cuidadoso que garantia suprimentos para meses de cerco. Mas, como sempre, o Império falhara até em sua própria organização. O que deveria durar meses seria consumido em três dias. 

O desespero corroeu os grandes primeiros. 

Alguns políticos, governadores e nomes da nobreza escolheram a saída mais covarde: a lâmina contra a própria garganta, o veneno nos lábios, a queda dos palácios para não conhecerem a fome. Outros, ainda piores, trancaram-se em mansões abarrotadas de suprimentos, recusando-se a dividir sequer uma migalha com os que morriam do lado de fora. 

A justiça clamava por seus nomes. Mas justiça não era mais um luxo possível. 

O Herói do Povo, último dos heróis imperiais, único digno desse título, não desperdiçou tempo em caçadas ou julgamentos. Ele tinha uma única prioridade: manter viva a Capital, ainda que fosse apenas por mais um dia, mais uma noite, mais uma respiração.  

Organizou os restos das forças imperiais, ergueu barricadas, inflamou os que ainda tinham forças para lutar. Tudo na esperança de que o tempo — o mais cruel dos aliados — pudesse, de alguma forma, mudar o destino que se fechava sobre eles. 

Mas o tempo não trouxe alívio algum. 

Quando já não havia ratos suficientes para alimentar a fome, quando soldados e civis mal conseguiam se erguer das pedras onde dormiam, o verdadeiro responsável por todo o mal ergueu-se. 

Ele surgiu montado em um dragão decapitado, o responsável pela destruição da segunda muralha, a carcaça pútrida da criatura sustentada apenas por feitiçaria profana. Cada passo do monstro morto estremecia o chão como se o próprio mundo se contorcesse sob seu peso. 

Uma capa negra como breu arrastava-se atrás de si, ocultando o rosto onde, de fato, não havia mais carne para ser mostrada. Apenas sua armadura — prata escura, marcada por séculos de batalha — refletia a luz da lua. No topo da cabeça, uma coroa de espinhos cravava-se em seu crânio vazio, símbolo grotesco de uma realeza que não deveria existir. 

Ali estava o soberano dos mortos, aquele que não marchava com o exército dos Renascidos… mas que o era. 

E diante de sua presença, a Capital soube que não lutava mais por sobrevivência. Lutava contra o próprio fim. 

Por que não deixar essa história mais... pessoal? 

— Rei dos Ratos — disse o Herói, fitando seu inimigo. 

Mesmo com o céu coberto de nuvens negras há semanas, ainda restava uma centelha de esperança nos corações que resistiam. Aquele Sol oculto, que nem a chuva ousava acompanhar, continuava a existir em silêncio — invisível, mas lembrado. 

Mesmo após perderem mais de oitenta por cento de seus soldados em tentativas desesperadas de romper o cerco dos Renascidos… 

Mesmo quando cada morte parecia apenas alimentar o exército do inimigo… 

Ainda assim, todos acreditavam nele. 

Em ___, ________, o Herói do Povo. O Guerreiro do Sol. 

Mas o próprio guerreiro já não tinha mais planos. Nem estratégias. Nem milagres a oferecer. 

Do alto da última muralha, observava o mar interminável de cadáveres. Centenas de milhares de Renascidos aguardavam em silêncio, como um oceano cinzento prestes a se erguer e afogar a Capital. Ele já havia destruído tantos que perdera a conta, mas era como lutar contra a própria areia da praia: cada punhado eliminado era substituído por mais mil. 

“Nunca venceremos…”, pensou. 

“A menos que…” 

Seu olhar subiu até encontrar a figura sobre o dragão morto. Ali estava ele: o inimigo maior, o soberano da praga, a única peça que, se derrubada, talvez desse ao mundo uma última chance. 

O Herói respirou fundo. Não havia mais tempo para táticas, apenas para um ato final, insensato e desesperado. 

— VENHA ME ENFRENTAR!!! 

O grito ecoou pela muralha, atravessando a ventania e o lamento dos vivos e dos mortos. Era um chamado de fúria, dor e desafio — e chegou aos ouvidos do Rei dos Ratos. 

A resposta foi silenciosa, inconfundível. O dragão decapitado se ergueu no ar com um bater de asas pútridas, levando seu mestre ao céu nublado. O voo ressoava como um trovão profano, cada batida de asa espalhando o fedor da morte sobre os soldados que ainda resistiam no topo da muralha. 

O inimigo foi recebido por uma chuva de flechas, lanças e pedras de catapulta. Nenhum soldado havia recebido ordens para atacar, mas o instinto falou mais alto: todos desejavam a morte daquele que os havia condenado. 

O Herói não os culpava. Estava fazendo o mesmo. 

E, ainda assim, cada flecha e cada pedra ricocheteava contra a armadura escura ou despedaçava-se em vão contra a carne morta do dragão. Nada o detinha. 

O Rei dos Ratos pousou sobre a muralha com o peso de uma profecia. Não desceu da montaria. De cima, encarava o Herói, a coroa de espinhos brilhando em desafio, como se zombasse da própria luz que os homens ainda buscavam no céu sem sol. 

— Desistiu? — A voz do Rei era como um sussurro arrastado pelo vento, mas penetrava nos ossos como um frio inevitável. — Quer que eu mesmo acabe com vosso sofrimento e agonia? Então ajoelhe-se, e cortarei vosso pescoço. 

— Eu o chamei para acabar com esse conflito! — respondeu o Herói, firme, sem deixar transparecer o medo que devorava seu coração e consumia sua alma. 

— Não estou interessado em trégua, paz ou descanso — disse o Rei —, apenas em suas vidas. 

— Não foi isso que eu quis dizer — O Herói levou a mão até a espada. Seus dedos tremiam, mas não vacilavam. — Eu o desafio a um confronto direto! 

Um silêncio cortante se espalhou pela muralha. Até os mortos-vivos pareceram estagnar em expectativa. 

— E por qual razão você acredita que eu aceitaria? — O rato coroado inclinou-se, em zombaria. — Por que você seria tolo o suficiente para me desafiar? 

— Porque você veio até aqui… — o Herói respirou fundo, engolindo em seco. — Já aceitei que não posso vencer seu exército. Mas você… Se eu derrotá-lo, seu exército cairá junto, correto? 

— Sim. 

— E… — ele hesitou por um instante, então deixou a verdade escapar como uma lâmina. — Sei que a morte não é a única coisa que você almeja. Você deseja dor, sofrimento, agonia, desespero. Se me derrotar, imagine como ficará meu povo ao testemunhar minha queda. 

Um silêncio denso os cercou. O vento parecia cessar. 

O Rei sorriu, invisível sob seu manto. 

— Interessante… — murmurou. — Está mesmo disposto a sacrificar tantos pela sua esperança tola de me derrotar? Não seria mais proveitoso permanecer com eles até o fim? 

O Herói não respondeu. Seu silêncio era sua sentença. Seus olhos ardiam com a chama de uma determinação que não admitia recuo. 

— Pois bem… — disse o Rei, enfim. 

Ele ergueu a mão e sacou sua espada. A lâmina negra era mais que um metal: era um abismo materializado, um vazio que parecia devorar a própria luz ao redor. Quando a ergueu ao céu, um relâmpago rasgou as nuvens e iluminou a muralha, como se os céus aceitassem o pacto de sangue. 

O Herói retirou sua capa com um gesto decidido. A armadura que reluzia sob ela cintilava como fogo vivo — aquela que o havia transformado em lenda, símbolo de esperança entre os homens. 

E então o brilho aumentou, intenso, como se cada chama de fé e cada oração da Capital tivesse encontrado morada em seu corpo. 

Dos campos devastados até os abrigos abarrotados, todos viram. Todos souberam. 
O duelo havia começado. 

Porém, antes que pudesse sequer mover um músculo, o Rei estendeu a mão em direção ao Herói e fechou os dedos suavemente, como quem amassa um brinquedo frágil. 

Uma pressão invisível, esmagadora, desabou sobre o Herói. Seus ossos rangiam, seus músculos travaram, e até o simples ato de respirar tornara-se uma tortura. O ar em seus pulmões parecia mais pesado que pedra. 

Ao redor, o som do vento transformou-se em um rugido ensurdecedor, sufocando até os pensamentos do guerreiro. Apenas uma voz permanecia clara, ecoando dentro de sua mente, cruel e inevitável: a voz do Rei. 

— Formiguinha tola… Vocês nunca tiveram chance. — O timbre soava como mil sussurros misturados, um coro de agonia. — Permiti apenas que se esgotassem para que entendessem, no fim, a verdade: as consequências sempre retornam. Eu sou aquilo que provocaram. Eu sou o preço do vosso Império. 

O Herói fechou os olhos por um instante. Sabia que cada palavra continha parte da verdade. O Império havia erguido seu trono sobre sangue e injustiça. Extermínios, perseguições, massacres — cada crime tornava mais pesado o fardo de carregar o título de “herói imperial”. 

Mas também sabia que o povo não merecia pagar pelos pecados de seus governantes. Homens, mulheres e crianças que agora se amontoavam na Capital, famintos, aterrorizados, agarrados à esperança dele. 

O Rei dos Ratos não era justiça. Não era redenção. Era apenas outro tirano, um carrasco que vestia a escuridão para justificar sua fome de destruição. 

E, ao pensar nos companheiros que tombaram, nas vozes que jamais retornariam, algo dentro do Herói se ergueu. 

Sua armadura começou a irradiar, e logo um brilho dourado tomou forma ao seu redor, como se um segundo sol tivesse nascido no topo da muralha. 

Aos olhos dos soldados, era como se o próprio dia tivesse retornado depois de semanas de trevas. Um rugido de esperança percorreu as fileiras: 

— O Herói! O Sol ainda brilha! 

Gritavam, choravam, acreditavam. 

Com um esforço sobre-humano, o guerreiro se ergueu contra a pressão que o esmagava. Cada passo era um desafio contra o impossível, mas ele avançou, espada em punho, pronto para cortar a escuridão diante de si. 

O Rei, no entanto, nada demonstrou. 

Sem hesitar, fechou o punho por completo. 

E então, o impossível aconteceu. 

O brilho cessou. A armadura do Herói — aquela que havia feito dele uma lenda, símbolo de esperança — estilhaçou-se como vidro sob o peso das trevas.  

Pedaços dourados caíram em cascata, tilintando contra as pedras da muralha. Sua espada seguiu o mesmo destino, quebrando-se em fragmentos que cintilavam por um instante antes de apagar. 

E com a perda do símbolo, veio o castigo. 

A pressão retornou, multiplicada. Ossos quebraram com estalos secos. Pulmões foram comprimidos como couro vazio. Sangue escorreu pela boca do guerreiro enquanto ele urrava em dor. 

— Aaaahhhh! 

Os soldados gritaram também, não em coragem, mas em desespero. Queriam correr até ele, mas não podiam mover-se. Não acreditavam no que viam. Não aceitavam.  

O Herói não podia ser vencido. Não ele. 

Mas a realidade era cruel. 

O Rei o puxou para junto de si, como quem recolhe uma presa inevitável, ainda mantendo-o suspenso sob a força esmagadora. 

— Você deveria saber, formiguinha… — disse o rato coroado, erguendo sua lâmina —, a luz nada mais é que uma anomalia. A escuridão é a verdade, a única que permanece. Ela sempre existirá. 

Ele ergueu a espada, pronta para o corte final. 

— Enquanto a luz… se apaga. Inevitavelmente. 

***

Satisfeito? 

Agora você sabe o que o espera. 

E, claro — se sua memória não falha e sua curiosidade não está totalmente entorpecida pela vista do sangue — já percebeu a cruel verdade: não importa quem vença no fim. Ainda há outro mal à espreita, pronto para subjugar tanto o vencedor quanto os vencidos. 

Que mal seria esse? 

Fufufu… 

Você já o conhece, minha criança. 

Não precisa de nome quando a Essência dele pulsa em tudo o que você já viu e temeu. Diferente de nós, ele sempre esteve aqui; nunca nasceu, pois foi o primeiro de todos nós. 

Não é uma Sombra que se oculta ao longe. É quem se senta à mesa dos que celebram a vitória e sussurra promessas aos que lutam na lama do desespero. 

É um usurpador sutil — um sorriso que promete ordem enquanto arranca o último suspiro de liberdade; um monstro óbvio, uma coroa ainda mais afiada, pronta para furar o couro das esperanças. 

Qual dos dois será? Talvez ambos. Talvez nenhum. 

Talvez você queira que eu revele agora, aqui, o rosto e o nome desse outro horror. 

Mas ainda não é hora. Se quiser saber mais, bem… você já sabe onde procurar. 

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