Volume 2 – Arco 10
Capítulo 98: Descanso
A batalha, enfim, chegara ao fim. O silêncio que se espalhava pela praça era quase agonizante depois de tantas horas de gritos, aço contra aço e magia crepitando no ar. A vitória fora conquistada, ao custo de suor, sangue e um desgaste que parecia ter arrancado parte da alma de cada um deles.
Seus líderes jaziam no chão, corpos imóveis, respirações frágeis e irregulares. Estavam desmaiados, sem qualquer sinal de que despertariam tão cedo. A visão daqueles que sempre foram pilares de força agora caídos provocava um peso sufocante no peito dos companheiros.
A lembrança da última vez que aquilo ocorrera, a destruição e massacre que Shenxi, veio a eles instantaneamente.
O sol começava a despontar no horizonte, tingindo o céu com tons de laranja e dourado. Seus raios se infiltravam pelas ruas estreitas e alcançavam lentamente a praça, como dedos de fogo iluminando o rastro da carnificina.
Logo, a cidade despertaria.
Homens, mulheres e crianças sairiam de suas casas, e a visão que teriam seria a de milhares de corpos espalhados diante da prefeitura; um problema do qual tinham de resolver o mais rápido possível.
— Ahhh...! o que nós fazemos com todos esses corpos? — perguntou Xin, com a voz trêmula, levando a mão à boca enquanto seus olhos percorriam o chão coberto de mortos.
— Mesmo que conseguíssemos recolher todos — retrucou Zhen, esfregando as mãos nervosamente contra a roupa suja de sangue —, não teríamos como levá-los para fora da cidade sem sermos vistos. Seria impossível...
Um silêncio pesado se instalou entre eles, até que Gurok quebrou a tensão, a voz grave ecoando pela praça:
— Que tal... fazer um buraco?
Takashi quase perdeu o fôlego de tanto indignar-se. Virou-se bruscamente para o companheiro, olhos faiscando.
— Ficou maluco?! No meio da praça principal? Bem na frente da prefeitura? Quer chamar mais atenção do que já temos?
Gurok encolheu os ombros, semicerrando os olhos, antes que pudesse retrucar, uma voz calma e firme cortou o ar:
— Talvez possamos ajudar.
Skadi surgiu da penumbra ao lado de seu irmão, Surtr. Os dois Generais Remanescentes finalmente haviam despertado.
Sem Ajax, a máscara que os controlava não era diferente de uma vestimenta comum; a manipulação mental se dissipara.
Surtr avançou um passo, apoiando seus machados contra o ombro, e declarou com convicção:
— Só precisaremos dos dois magos conosco. Não se preocupem... devolveremos todos sem danos algum.
A proposta pairou no ar como um feitiço perigoso. Na ausência do casal e de Fox, não tinham certeza sobre quem tomarem uma decisão em conjunto.Foi então que todos, quase instintivamente, se voltaram para Sebastian — o mais próximo que tinham de um líder no momento.
O vampiro permaneceu imóvel, o rosto coberto por uma expressão indecifrável. Ele encarava os irmãos com os olhos semicerrados, os músculos tensos, como se estivesse esperando um conflito a qualquer momento. Ainda não confiava, ainda temia uma traição.
Foi então que seus ouvidos captaram o som metálico de uma tranca se movendo. Uma porta distante se abriu, seguida de passos cautelosos. Outras logo se seguiriam. As pessoas estavam a sair de suas casas. O tempo acabara.
— Rápido! — exclamou Skadi, sua voz firme, mas urgente. — Peguem o casal e sumam daqui!
Sem hesitar, Gurok pegou os dois líderes desacordados como se fossem sacos de grãos e disparou rumo à hospedaria, os demais logo atrás.
Na pressa da fuga, esqueceram-se de Fox e da armadura de Erina, abandonada entre os destroços. Takashi, no entanto, não se permitiu esquecer dos pertences de Kenshiro. Ainda sentindo dificuldades para respirar, recolheu a armadura gasta e quebradiça, junto do cinto e as espadas.
— E agora? — murmurou Vaelis, sem conseguir esconder a apreensão em sua voz. — O que vamos fazer?
Soren permanecia ao lado de sua companheira, contido e tímido.
Skadi lançou um olhar rápido para Surtr. O irmão sustentou seu olhar por um instante, e um sorriso silencioso se formou no rosto de ambos.
***
Na hospedaria, antes mesmo de atravessarem a porta de entrada, concordaram entre si em encenar uma farsa simples: fingiriam ser um grupo de bêbados voltando de uma madrugada de excessos.
Como haviam perdido a hora, ficaram trancados numa taverna durante o toque de recolher até serem liberados.
Kenshiro e Erina, ainda inconscientes, seriam apresentados como os que haviam “desmaiado” pelo caminho, vítimas do destilado barato.
Assim que empurraram a porta de madeira, seus corpos assumiram comportamentos infantis e exageradamente teatrais. Riram alto, tropeçaram uns nos outros, arrastaram palavras e gesticularam com descontrole. Aos olhos de qualquer observador atento, pareciam tão convincentes quanto uma trupe circense improvisando um número cômico. Mas, paradoxalmente, a encenação surtiu efeito: ninguém teve coragem de questionar.
Quem ousaria contrariar ou zombar de um orc bêbado e mal-humorado?
O simples rosnado que Gurok deixou escapar bastou para fazer os curiosos baixarem os olhos, como se de repente encontrassem mais interesse no chão de tábuas do que no estranho cortejo que subia as escadas.
Ao abrirem a porta do quarto, depararam-se com uma cena inesperada.
Kaji estava em sua forma como fogo da lareira, como de costume, seus olhos aparentavam estar “úmidos”. Diante dele, ajoelhada no tapete, Anastasia tentava consolá-lo com palavras suaves, sua expressão não dava lugar à fraqueza.
— Vocês... voltaram! — disse ela, surpresa, a voz embargada.
Xin, ainda ofegante da fuga, estreitou os olhos, desconfiada.
— Você, aqui?
Anastasia ajeitou-se, como se tivesse sido pega em flagrante, ainda ajoelhada no tapete.
— O Kaji... começou a chorar de madrugada — respondeu, em tom quase de desculpa. — Tive medo de que ele acordasse os demais, então resolvi vir acalmá-lo.
Todos voltaram seus olhares para Kaji. O pequeno Servo, envolto em seu brilho flamejante que oscilava como uma vela prestes a apagar, assentiu em silêncio antes de finalmente falar:
— Quando o alarme soou... perdi a ligação com a lamparina de Fox, a carruagem... e a armadura. — Sua voz quebrou, carregada de dor. — Pensei que... o pior tivesse acontecido. Eu não conseguia sentir nenhum de vocês...
Lágrimas incandescentes deslizavam pelo canto de seus olhos, queimando a lenha com intensidade ao tocá-la.
Ainda que Kaji perdesse a ligação com vários dos pertences que assumira, aparentava ter voltado para o último local onde esteve seguro e estável; seu ponto de controle. Por essa razão, o quarto mantivera-se inalterado, ainda que Anastasia pudera ouvi-lo, mesmo que o quarto não devesse emitir nenhum som para fora.
— Então... vocês conseguiram? — perguntou Anastasia, ansiosa, inclinando-se para frente. — Derrotaram o metamorfo... o Ajax?
A pergunta caiu como uma pedra no silêncio. Xin, num impulso, deu um passo ameaçador em direção a ela, pronta para encurralá-la.
— Como você sabe disso?
Os demais retribuíram com olhares que iam da dúvida à apreensão, cada um carregando uma suspeita.
Por um momento, Anastasia pareceu ter sido pega no flagra, ficando paralisada e sem conseguir encontrar justificativas que a livrassem daquela situação.
Sebastian sentiu um arrepio gelado percorrer lhe a espinha. Se descobrissem que fora ele a expor tantas informações, poderia ser considerado um traidor.
Kaji, percebendo o rumo perigoso da conversa, brilhou com intensidade para chamar atenção.
— Talvez... eu tenha contado coisas demais.
— Quanto você contou? — pressionou Xin, desviando-se de Anastasia para encarar o pequeno Servo.
Ele encolheu-se, o brilho do corpo diminuindo, envergonhado.
— Algumas coisas... aqui e ali... Tipo... tudo?
O silêncio foi seguido por expressões ambíguas. Não sabiam se deviam sentir-se traídos, desapontados... ou se apenas deviam rir da ingenuidade e da sinceridade de Kaji.
Quem ali poderia julgá-lo?
O pavor da solidão, a ausência de qualquer vínculo com o grupo durante a noite... ninguém tinha o direito de apontar-lhe o dedo. Talvez apenas Kenshiro e Erina, quando despertassem.
— O importante é que estão vivos — Anastasia quebrou o clima tenso, erguendo-se e forçando um sorriso. — Fico feliz que tenham voltado. Agora, vou deixá-los descansar. Até mais!
Ela já caminhava para a porta quando Xin, num tom ríspido demais, a deteve:
— Espera!
A jovem congelou por um instante. Xin, consciente de que seu tom havia soado agressivo, pigarreou e corrigiu-se, tentando soar mais polida:
— Poderia... por gentileza, trazer alguns panos limpos e água fresca? Estamos exaustos.
Anastasia relaxou os ombros e sorriu com leveza.
— É pra já!
Assim que ela saiu, os membros do grupo trocaram olhares silenciosos, surpresos — e até orgulhosos — pela maneira como Xin lidara com a situação.
Zhen já havia aconselhado todos a terem paciência com a garota. Criada na escravidão desde a infância, sua mente fora moldada no sofrimento, nunca tendo a chance de amadurecer de maneira natural. As frequentes explosões de humor, a voz quase infantil, tudo era reflexo das correntes que um dia a prenderam; impedindo-a de crescer apropriadamente.
Mas algo mudara. Depois daquela interação com Anastasia, sua voz soara diferente, menos infantil, como se, aos poucos, estivesse aprendendo a desenvolver maturidade. Estava deixando de ser uma vítima.
***
Enquanto o grupo se reorganizava, aquele que fora esquecido permanecia sozinho, em meio a sonhos e lembranças que se entrelaçavam como véus de fumaça em sua mente.
Fox caminhava por uma estrada silenciosa, um caminho de terra batida coberto de pegadas que se estendiam até onde a vista não alcançava. Como uma criança ansiosa em um jogo inocente, ele fazia questão de encaixar seus pés exatamente sobre cada marca deixada à sua frente, como se temesse que um único passo em falso pudesse fazê-lo perder-se de si mesmo.
Durante todo o trajeto manteve a cabeça baixa, atento apenas ao chão, até que uma voz distante — familiar, grave e serena — atravessou o silêncio:
— Por que está fazendo isso?
O jovem ergueu os olhos, e diante dele surgiu a silhueta de um homem imponente. Era simples e, ainda assim, impossível de confundir: seu mestre, Reiji Torison.
O sol estava atrás do guerreiro, e sua luz intensa transformava seu corpo em uma sombra monumental. O rosto permanecia oculto, coberto pela penumbra, como se os céus não permitissem que Fox visse os olhos daquele a quem devotara tanta admiração.
— Estou... apenas seguindo os seus passos, mestre — A resposta escapou de sua boca antes que pudesse pensar.
Dentro de si, Fox sabia que não era o que realmente queria dizer. Aquela lembrança era apenas um reflexo antigo, talvez distorcido, de uma conversa ocorrida muitos anos atrás. Agora, revivia-a como espectador.
— Sim, isso é óbvio — A voz de Reiji soou firme, quase como aço batendo contra pedra. — Mas qual é a razão disso?
Fox sentiu o coração apertar.
— Eu quero ser como você.
Um silêncio breve, opressor, recaiu sobre a estrada.
Então, o mestre respondeu:
— Esse é um motivo tolo e ingênuo — Suas palavras foram afiadas, carregavam uma verdade que feria mais do que qualquer lâmina. — Não estou interessado em treinar alguém que não tenha uma motivação própria além de se tornar uma cópia malfeita.
— Não é isso... — murmurou Fox, tentando se explicar, as palavras lhe escaparam.
Ele tentou avançar, novamente encaixando os pés nas pegadas, de repente o solo cedeu. Sentiu o chão puxá-lo para baixo, como se raízes de grama se transformassem em correntes e o aprisionassem. Lutou, quanto mais se movia, mais preso ficava.
Sem perceber, Reiji já estava diante dele. Fox só notou sua presença quando viu o contorno das botas firmes ao lado de seu rosto.
— Se você deseja tanto ser igual a mim... — disse o mestre, ajoelhando-se lentamente. Mesmo assim, seu rosto permanecia oculto na sombra, inatingível. — Então o único caminho que encontrará será a morte. Entendeu?
A voz ecoou dentro de Fox como um trovão. Ele engoliu em seco e, com um fio de voz, respondeu:
— Sim, senhor.
Reiji estendeu a mão. Fox a agarrou com firmeza, sentindo o calor e a força que emanavam dela. O mestre o ergueu de volta, e quando Fox voltou a ficar de pé, Reiji fez-lhe apenas uma última pergunta:
— Quem você deseja se tornar, meu aprendiz?
O jovem respirou fundo, e desta vez, sua resposta veio carregada de convicção:
— Eu quero me tornar Fox. Se o preço disso for a morte, ainda que chegue antes da sua, eu aceito.
Reiji não disse mais nada. Apenas assentiu em silêncio, virou-se, retomando seu caminho adiante.
Fox o acompanhou. Mas, antes de dar o primeiro passo, lançou um último olhar ao chão. As pegadas ainda estavam ali, marcadas com clareza. Ele não as seguiu. Em vez disso, caminhou ao lado delas, erguendo a cabeça com a mesma postura de seu mestre.
Naquele instante, compreendeu que seguir os passos de Reiji não significava imitá-lo, mas honrá-lo com o peso de sua própria jornada.
"Ainda que meus feitos jamais se igualem aos seus, mestre Reiji... prometo que, enquanto viver, honrarei todos os seus ensinamentos."
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