Volume 2 – Arco 10

Capítulo 105: Partida

Apesar do alívio por não terem de enfrentar os Renascidos, todos ainda estavam tensos demais para conseguirem dormir em suas camas. Não sabiam com exatidão o motivo que os incomodava, apenas tinham a impressão de que o perigo era iminente; inescapável. 

Sentiam que aquele quarto não era mais um lugar de confortável. Havia se transformado em uma cela onde aguardavam o julgamento pelo destino. 

Kenshiro permanecia sentado à beira da cama por alguns segundos, os punhos cerrados, respirando de forma lenta e controlada. Seus pensamentos giravam em círculos:  

“Se o Império ainda me considerar um criminoso quando o destacamento chegar, o conflito será inevitável. Mas... conseguiremos mesmo sair vivos daqui? Todos nós?” 

Cada cenário que passava por sua mente terminava em sangue, luta e perdas. 

Erina, ao seu lado, percebia cada linha de tensão em seu rosto. Apesar do cansaço, mantinha-se alerta, sentindo o peso da responsabilidade não apenas por si mesma, mas pelo grupo inteiro.  

Seu olhar percorreu cada um dos aliados.  

Zhen e Xin mantinha-se sentados, encarando um ao outro. Não conseguiam encontrar palavras de conforto que não resultassem em mentiras ou exagero. O simples, carregado, olhar era o que tinham a oferecer. 

Takashi e Sebastian encaravam a janela aberta, aproveitando da refrescante brisa da noite. Suas mentes perdidas em seus próprios pensamentos e reflexões; questões pessoais, os quais não queriam compartilhar com seu grupo. 

Gurok, impaciente, ansioso por natureza quando estava ocioso, mexia nos equipamentos buscando uma distração. Havia polido tão perfeitamente os itens que mais um pouco acabaria prejudicando seus materiais. 

Vaelis e Soren tinham uma brincadeira simples, quase inofensiva. Com seus respectivos elementos, colocavam em prova aquele que seria mais forte: queriam ver se o calor do fogo conseguia derreter o gelo, ou se o frio pudesse apagar as chamas. 

Fox, por outro lado, parecia ser a única exceção. Deitado de costas, com as mãos cruzadas atrás da cabeça, dormia tranquilamente, como se nada no mundo pudesse lhe tocar.  

Seu semblante sereno era um lembrete silencioso de que, mesmo em tempos sombrios, havia quem permanecesse inabalável. 

O relógio marcava 1 da manhã, e a quietude do quarto só tornava o tique-taque do relógio ainda mais audível, como uma contagem regressiva para o inevitável.  

Ninguém conseguia pregar o olho; o silêncio apenas aumentava a expectativa. 

Cada rangido da madeira do chão, cada sussurro do vento pelas frestas, parecia anunciar a chegada do destacamento do Império. 

Sem se dirigir a palavra, Kenshiro se levantou da cama. Seus passos eram leves, quase silenciosos, mas a firmeza de sua postura transmitia a todos que havia uma decisão a ser tomada. Seus olhos percorreram o grupo, refletindo uma mistura de determinação, preocupação e responsabilidade.  

Nenhum deles precisou perguntar o que ele pretendia; o olhar dele dizia tudo. 

Erina se ergueu imediatamente, sentindo a mesma necessidade silenciosa de acompanhar o marido. Seus olhos encontraram os dele, cheios de compreensão e de uma pergunta muda. 

Sem que nenhuma palavra fosse trocada, cada membro do grupo se levantou também. Não havia hesitação, não havia dúvida; apenas a aceitação silenciosa de que enfrentariam o que viesse, juntos. 

***

Imerso em seus sonhos, Fox ainda sentia o peso e a lembrança da última conversa com seu mestre, como se cada palavra ecoasse em sua mente através dos anos. 

Reiji havia retornado de uma aventura solitária, trazendo consigo um recém-nascido. A criança dormia tranquila na cama de seu mestre, alheia ao mundo, enquanto Fox aguardava no térreo, sentado à mesa, observando a dança hipnótica das chamas na lareira. O calor era leve, suficiente para fazê-lo recordar os invernos rigorosos que passara treinando sob o olhar exigente de Reiji. 

O mestre nunca explicara a ausência constante de seu Servo. Fox sentira, por vezes, uma pontada de solidão, sabia que não havia questionamento que pudesse mudar os desígnios de seu mentor. 

Quando ouviu o rangido da escada, levantou-se rapidamente. Reiji havia se despido de seus equipamentos, ficando apenas com a roupa comum. 

— Por favor, me siga — disse Reiji, a melancolia transparecendo em sua voz. 

Fox o acompanhou até o armazém ao lado da cabana, um lugar que sempre ficara fechado e proibido a curiosos.  

Sua abertura fora mais anticlimática do que Fox gostaria; não sabia o que esperar, apenas que seu queixo caísse ao chão por qualquer coisa que fosse no mínimo épico.  

Seja lá o seu conteúdo, mantinha-se ocultado pelas lonas. 

Reiji caminhou até uma delas, erguendo a lona e liberando uma nuvem de poeira que dançou nos raios de luz que atravessavam pela abertura da porta do armazém. 

— Cof! Cof! Cof! Mas… o que é isso, mestre? — perguntou Fox, engolindo em seco diante do que via. 

— É um presente — respondeu Reiji, aparentemente abatido —, por todos esses anos de lealdade, coragem e devoção que você demonstrou a mim. 

Fox se aproximou cauteloso, tocando a armadura antiga com a ponta dos dedos. Assim que seu contato se deu, uma chama suave brilhou sobre o metal, iluminando o armazém em tons de dourado e vermelho. Presa ao cinto da armadura, havia uma katana que exalava uma presença quase viva. 

— Um dos meus ancestrais forjou esta armadura e esta espada há muitos anos — continuou Reiji, com os olhos fixos no pupilo. — Ainda que a razão de sua existência nunca tenha sido revelada, quando eu e meu irmão a vimos pela primeira vez, tivemos certeza: ela fora criada como homenagem ao Kaji, nosso Servo, ao seu espírito leal e honesto.  

Fox, ainda hipnotizado, via a armadura criando padrões enquanto iluminava. Diferente do fogo incontrolável, para um ser vivo dócil e contido, esperando um comando para demonstrar todo o seu poder. 

—  Meu irmão nunca gostou de cores chamativas. E sinceramente, eu não consigo ver tais qualidades em mim mesmo. Por isso, achei melhor dá-la para alguém que possuísse semelhanças. 

Reiji entregou a katana com cuidado, quase como se estivesse oferecendo parte de sua própria alma. Fox a sacou, sentindo o peso perfeito, o equilíbrio ideal. O brilho vermelho e dourado da lâmina encantou seus olhos; ao realizar uma série de cortes apenas para testá-la, pequenas chamas dançavam, moldando o ar à medida que a lâmina cortava o vento. 

Conseguiu perceber que a armadura responderá à espada, fazendo seu brilho ficar mais intenso conforme a lâmina aproximava-se, escurecendo ao finalizar qualquer ataque. 

— Isso é incrível, mestre… Mas… — Fox guardou a espada de volta à bainha —, parece que está se despedindo de mim. 

— E estou — respondeu Reiji, quase em um sussurro, olhando para o horizonte do armazém. 

O choque quase fez Fox derrubar a espada. 

— Sei que é repentino, mas ironicamente, agora vou ser pai. Não posso mais me aventurar ao seu lado. 

— Meu senhor… — Fox sentiu um nó se formar em sua garganta. 

— Mas eu não entregaria esses presentes se não soubesse do que você é capaz — continuou Reiji. — Já alcancei meu ápice há muito tempo. O que me resta é deixar que a próxima geração me supere. E você, Fox… você deve ser o portador desse futuro. 

Fox encarou a armadura e a espada com um misto de apreensão e respeito.  

Ainda que honrado, não conseguindo encontrar palavras ou maneiras para expressar sua gratidão, perguntava-se se realmente era digno de presentes tão formidáveis. 

Preferiria a humildade de uma armadura amassada, uma espada desgastada ao mal uso de tais equipamentos. 

— Você nunca precisou de uma armadura, mestre. 

— E você também não precisa — disse Reiji, com um sorriso triste. — Mas presentes não são feitos apenas para utilidade. São símbolos de afeto, de confiança, de esperança. 

Tocado pelo primeiro, e mais poderoso, gesto carinhoso de seu mestre, estava pronto para abraçá-lo. No entanto, percebeu que Reiji já se encontrava do lado de fora do armazém. 

— Tranque tudo quando sair — disse Reiji, a voz agora distante. 

Fox ficou parado por alguns segundos, sentindo o silêncio profundo do armazém e o peso da responsabilidade recém-adquirida.  

Ele estava sozinho, mas não completamente; carregava consigo os desejos de seu mestre, a expectativa de superar os limites, de tornar-se alguém digno. 

Com determinação, vestiu a armadura e empunhou a katana. Cada peça parecia moldar-se ao seu corpo como se tivesse sido feita para ele, e não apenas para protegê-lo, mas para lembrá-lo do legado que agora carregava. 

Pouco tempo depois, o Império reconheceu suas façanhas, e Fox recebeu seu título: A Raposa Flamejante, um herói cuja lenda começava ali. 

***

— Fox, acorde — disse Erina, já vestida com sua armadura negra. — Estamos de partida. 

Fox abriu os olhos com dificuldade, o sono ainda pesando sobre seus membros.  

— O que está acontecendo aqui? — murmurou, a voz rouca e arrastada. 

— Nós vamos partir — disse Kenshiro, ajustando as manoplas. — É isso que está acontecendo. 

— O quê? Por quê?! — Fox se ergueu rapidamente da cama, o coração acelerado. 

— Não recebemos nenhuma notícia sobre a retirada da condição de criminoso de Kenshiro — disse Takashi, tentando manter a calma, a preocupação transparecendo pela maneira que segurava o arco. 

— E Nolan também não demonstrou nenhum interesse em nos retribuir por nossa ajuda — completou Kaji, dentro de sua lamparina, presa à Erina. 

— Mas nós não podemos simplesmente sair assim! — protestou Fox. 

— Podemos — disse Erina, firme, com um olhar que não admitia discussão —, e vamos. Agora, vista-se. 

Fox hesitou. Um instante de orgulho e responsabilidade o fez considerar exigir que sua autoridade fosse respeitada, mas rapidamente percebeu que aquela liderança temporária já havia cumprido seu propósito. A confiança de Erina parecia restaurada, e ele poderia finalmente soltar as rédeas, ao menos por enquanto. 

Sem mais razões para conversas, todos mantiveram-se em silêncio; caso fosse necessário qualquer comunicado, fariam em Signês.  

Não ousariam sair pela porta da frente, o piso de madeira da hospedaria poderia acordar qualquer um de lá. Não saberiam como explicar a saída deles durante o toque de recolher obrigatório. 

O feitiço imperial impedia apenas os sons de fora de adentrarem. 

Anastasia não precisava saber da partida. Sabiam que ela tentaria convencê-los a levá-la com eles; não tinham tempo para aquela discussão, nem o interesse. 

Quando o último deles deixou o quarto, Erina segurava Kaji firmemente em sua lamparina, uma luz cálida emanando do recipiente, quase como se os seguisse com atenção protetora. O quarto voltou ao normal, diminuindo de tamanho e dissolvendo silenciosamente toda a decoração cuidadosamente criada pelo Servo.  

Cada objeto, cada detalhe que lembrava o lar que o casal havia construído juntos, desapareceu. Ambos sentiram um aperto no peito, um nó de nostalgia misturado à melancolia. Era um adeus silencioso ao conforto do lar, à rotina que já não podiam mais ter. 

Em absoluto silêncio, seguiram pelos telhados, passos calculados para não produzir ruído. O vento frio da madrugada atravessava suas roupas e armaduras. Soren e Soren não se atreveriam a utilizar seus elementos para aquecer o grupo; não queriam que fossem perceptíveis. 

Takashi liderava, ágil como uma sombra, guiando cada salto e cada manobra com precisão. 

Durante o trajeto, desviavam-se constantemente de guardas, sombras e vigias, mantendo-se sempre afastados das beiradas instáveis dos telhados. Cada toque, cada deslize, fazia com que o coração disparasse, mas a coordenação do grupo era perfeita. 

Ao chegarem ao estábulo, o cenário parecia surpreendentemente tranquilo. A carruagem estava ali, guardada com cuidado, assim como a armadura de Kaji em sua forma de cavalo; 

Sem a presença do dono, ainda conseguiriam retirá-los sem alarde.  

Tinham o problema de fazer Kaji se reconectar com tais itens, algo um pouco demorado, podendo chamar atenção de qualquer guarda minimamente atento.  

Aqueles com maior capacidade furtiva se separaram para cobrir os arredores do estábulo. Precisavam alertar sempre que uma patrulha aparecia. 

Mas a verdadeira dificuldade estava por vir: sair dali sem serem vistos.  

Para chegarem até o portão, era impossível não cruzarem com um guarda. Ainda que o incapacitassem, era preciso aceitar que a fuga não passaria despercebida. 

Sebastian, um pouco afastado, ainda estava tentando calcular uma rota de fuga alternativa, enquanto os demais se preparavam seus equipamentos para um possível embate. 

Foi então que uma figura familiar surgiu de relance, deslizando entre as sombras de um dos becos estreitos. 

— Anastasia? — Sebastian sussurrou, surpreso. — O que está fazendo aqui? 

A jovem correu até ele com agilidade, os olhos brilhando de preocupação, como se cada segundo fosse precioso para que ninguém mais percebesse sua presença. 

— Acha mesmo que eu deixaria vocês partirem sem se despedir? — disse ela, ainda ofegante pelo esforço da corrida, um sorriso iluminando seu rosto, apesar do cansaço evidente. — Para onde pretendem ir agora? 

— Não está pensando em seguir a gente, está? — perguntou Sebastian, firme, tentando controlar o tom para não alarmar os demais. 

— Quem sabe? Fufufu... — Anastasia respondeu, com um riso leve, quase infantil. 

— Anastasia, é sério, você não pode vir com a gente. É perigoso — insistiu Sebastian. 

— Eu sei... só — disse a garota, cerrando os punhos, a determinação brilhando em seus olhos. — Espero que saibam... ainda irei encontrar vocês. Tenham certeza disso! — completou, seu sorriso misturando coragem e uma leve travessura. 

Ao olhar para trás, viu Erina sinalizando para ele se aproximar, iriam partir.  

A cavaleira não percebera Anastasia, o corpo do vampiro a escondera. 

— Não se preocupe — disse a garota, inclinando-se para frente, como se pudesse transmitir segurança. — Vou garantir que vocês consigam sair em segurança! 

Antes que Sebastian pudesse dizer qualquer coisa ou tentar impedir, Anastasia desapareceu em um dos becos, movendo-se como uma sombra entre a escuridão da cidade. 

— Sebastian! — chamou Erina, sua voz firme e autoritária. 

O grupo não tinha mais tempo. Era hora de partir. Sebastian permaneceu em silêncio, guardando para si qualquer comentário sobre Anastasia. O receio de que aquela informação pudesse atrapalhar a fuga era grande demais. 

Milagrosamente, nenhum guarda apareceu durante todo o caminho até o portão da cidade. Nem mesmo os vigias de rotina estavam presentes. 

Enquanto todos se perguntavam para onde tinham desaparecido os guardas e se algum deles seria pego de surpresa, Sebastian não conseguia tirar da mente dúvidas a respeito do que Anastasia havia feito. 

Um misto de admiração e apreensão tomava o seu peito, enquanto os limites da cidade se aproximavam e a liberdade parecia finalmente ao alcance, ainda que incerta. 

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