Volume 2 – Arco 10

Capítulo 104: Véu Lunar

A leitura dos jornais foi proveitosa — embora inútil. 

Não descobriram nada que os ajudasse diretamente em sua jornada. Apenas fragmentos de informações dispersas sobre o continente: rumores sobre o aumento dos bandidos nas estradas, a decadência e desaparecimentos dos mercenários, aventureiros e viajantes; os grupos conhecidos pela magia e aparência singulares. 

Tudo o que envolvia o Império era debatido com fervor, cada palavra pesada como se pudesse esconder uma armadilha. A linha entre verdade e manipulação tornava-se cada vez mais indistinta. 

Enquanto os outros discutiam, Kenshiro folheava distraidamente um jornal regional de poucos dias atrás. Seus olhos, acostumados a buscar entrelinhas e nomes esquecidos, pararam de repente. 

O som do papel sendo amassado por seus dedos atraiu a atenção dos demais. 

— Aquele idiota... — murmurou. 

— O que foi? — perguntou Sebastian, erguendo a cabeça. 

Ah, nada... 

Erina, curiosa, inclinou-se para ver.  

— “Gideon...” — leu em voz alta, tentando recordar-se de qualquer coisa, falhando no processo. — É um conhecido seu? 

— Quem seria esse? — perguntou Takashi. 

Kenshiro suspirou, percebendo que já não escaparia da conversa. 

Entregou o jornal. O grupo se reuniu em torno da mesa, lendo as manchetes em voz alta, cada um completando o outro, como se montassem um quebra-cabeça maldito. 

— “Enviado para o Lamaçal...” 

— “...Gideon, sobrevivente do Incidente dos Descentes...” 

— “...é a nova esperança para conter...” 

— “...a crescente apreensão do...” 

— “...lado dos orcs.” 

As vozes foram morrendo, até que o silêncio reinou. Todos voltaram o olhar para Kenshiro. 

— Gideon era meu colega de academia imperial — começou ele, a voz arrastada pela lembrança. — Um grande pé no saco no início, arrogante, metido... Mas depois do Incidente, as coisas mudaram. Nunca chegamos a ser amigos, mas... havia respeito. 

Erina se aproximou.  

— Quando foi a última vez que o viu? 

Kenshiro fitou o vazio, como se buscasse uma lembrança distante.  

— Quando ele se formou. Suas últimas palavras para mim foram: “Você me envergonha.” — E riu, de forma leve, quase nostálgica. 

Não havia somente dor quanto às últimas palavras de Gideon, o espadachim também guardava saudade. 

Antes que alguém pudesse comentar, a porta se abriu de súbito. O som seco ecoou pelo quarto. 

Os gêmeos Remanescentes — Skadi e Surtr — estavam à porta, trajando suas armaduras. 

Fox vinha logo atrás, silencioso, com o rosto sério. 

O clima mudou. A leitura cessou. Cada um se levantou instintivamente. 

Já haviam se passado dias desde o confronto contra Ajax. Erina vestia novamente sua armadura negra; Kenshiro trazia as espadas em seu cinto junto de sua armadura restaurada. 

Gurok havia consertado o equipamento de todos.  

Estavam prontos — descansados, refeitos e armados. 

— Por favor, sigam-nos — disse Skadi, com a voz firme. 

Ninguém questionou. Obedeceram. 

Do lado de fora, a cidade adormecia calmamente sob o efeito do feitiço imperial, impedindo que qualquer som pudesse alcançar os ouvidos de seus habitantes. 

Por alguma razão, semelhante à noite em que enfrentaram Ajax, nenhum dos guardas comuns da cidade estava presente para fazer as patrulhas. 

— O que houve? — perguntou Erina, a voz contida, o passo firme. 

— Nolan estava vasculhando documentos na prefeitura — respondeu Surtr —, tentando entender por que tantas pessoas estavam retirando seus pertences e fugindo às pressas. 

— Acontece que Ajax recebeu um alerta do próprio Império — completou Skadi. — Um grande número de Remanescentes está vindo para cá. Se nada for feito, a cidade cairá antes do amanhecer. 

— Então era isso que Nolan esteve fazendo todo esse tempo... — murmurou Kenshiro. 

Fox se aproximou, com o olhar pesado.  

— Conversei com ele também. E, apesar de não ser nossa obrigação, penso que deixar uma cidade inteira à própria sorte seria tão perverso quanto os planos do metamorfo que derrotamos. Concordam? 

— Sim! — responderam de imediato. 

— Aham... — Kenshiro cruzou os braços, o olhar suspeito. — É claro que eu concordo. Mas... passamos dias trancados lendo jornais. E tenho certeza de que, se meu nome tivesse saído da lista dos mais procurados, eu saberia. 

Skadi e Surtr trocaram um olhar rápido, impassíveis. 

Fox ergueu as mãos, conciliador.  

— Quanto a isso, Nolan pediu paciência. Disse que o pedido foi feito com urgência. 

Hm. — Kenshiro suspirou. — É só que... o destacamento do Império pode chegar a qualquer momento. E não tenho garantias de que não estejam vindo por minha causa. Nolan pode muito bem estar nos segurando até a hora certa de me entregar. 

O pensamento pairou sobre todos como um veneno. 

Sabiam a maneira que o casal tinha de punir os traídores. 

RROOOAAARRRGHHHHHHH-UUURRHHHHHHH-AAAAAARGHHHH!!! 

O som foi tão brutal que fez as janelas vibrarem. Um rugido — monstruoso, ensurdecedor — misto de dor, raiva e fome. 

O chão pareceu estremecer sob seus pés. 

— O que foi isso?! — perguntou Xin, o coração acelerado. 

Os gêmeos se entreolharam, as mãos indo automaticamente às armas. 

— Eles chegaram — disseram em uníssono. 

E a noite, que até então dormia em silêncio, enfim despertou em gritos. 

(...) 

Do topo da muralha, a visão era aterradora em sua escala e simplicidade: um mar de corpos que se movia como se tivesse vontade própria. Não era um exército ordenado, com estandartes e formações — era uma massa informe, uma maré de cadáveres que se erguiam e recuavam num compasso macabro.  

A quantidade só por si era sufocante; o som que produziam — um conjunto de gemidos, rosnados e sussurros rasgados — poderia congelar o sangue nos corações mais calejados. 

Mesmo os veteranos, que já haviam confrontado monstros e bandidos sem conta, sentiriam o peso daquele espetáculo. Havia algo primitivo e abjeto nos Renascidos: a ausência de técnica tornava seus ataques mais brutais, e a brutalidade, curiosamente, prolongava a agonia.  

Eles não decapitavam limpidamente; trituravam os membros, mordiscavam carne, arrancavam olhos, despedaçavam carne com uma satisfação perversa. Cada execução rasa era, na verdade, uma fábrica de novas mortes malditas — porque a dor extrema e a ausência de um enterro honrado forjavam, em seguida, outro Renascido. 

Por isso seus números nunca paravam de crescer.  

A muralha, por mais imponente, era uma linha fina de defesa; e do lado de dentro, entre a selva de pedra e a vida que se agitava sob suas vigas, havia apenas aquele grupo entre os mortos e os inocentes. 

— Onde estão os guardas da cidade? — Xin fez a pergunta em voz alta, como se buscasse uma presença reconfortante no vazio. 

— A informação sobre os Renascidos era restrita — explicou Fox, a voz baixa, tensa. — Só Ajax e seus homens sabiam. Nolan preferiu não tornar público para evitar pânico generalizado. 

Kenshiro rangeu os dentes.  

— Novamente, as mentiras e segredos do Império — Sua voz carregou desprezo e um cansaço que vinha de ver governantes escolherem silêncio até que fosse tarde demais. 

Skadi não perdeu tempo em ir ao ponto prático.  

— De toda forma — disse ela, cortante —, quantos de vocês conseguem usar a Essência? 

A pergunta pairou no ar, e Zhen, sempre prático, rebateu:  

— Por que quer saber isso agora? 

Surtr deu um passo à frente, era quase natural responder por sua irmã, e vice-versa. 

— Essência é praticamente a única maneira de matar um Renascido de forma definitiva. 

Seus olhos encontraram os de cada um do grupo, medindo reações.  

Kaji, em sua lamparina tremulando, tentou um raciocínio prático:  

— Mesmo queimando até virar cinzas… 

Soren, querendo demonstrar serviço, fez bailar uma pequena chama entre os dedos — um truque precário, mas que ofereceu algo visual à conversa. 

— Queimar é temporário — disse Surtr, com a frieza de quem não se prende a esperanças. — Depois de algum tempo, mesmo em cinzas, seus corpos simplesmente voltam. 

Skadi complementou:  

— Um simples golpe carregado de Essência é o suficiente. Com um simples toque, eles se desfazem. É uma fraqueza mortal, embora poucas pessoas a dominem; hoje em dia poucos sabem canalizar a Essência com precisão. 

Zhen, rememorou Shenxi: o encontro com os mortos de Yong. Lembrou-se de Jonas — o primeiro que enfrentaram — que não fora derrotado pelas lâminas comuns. E, de repente, a memória clara: no combate seguinte, praticamente todos ali, inclusive soldados da cidade, foram capazes de erradicar os mortos-vivos, ainda que não fossem propriamente renascidos.  

O evento se destacava na mente de Zhen como um nó a ser desatado. 

A imagem de Erina surgiu como uma peça faltante no quebra-cabeça.  

“O que ela fez naquele dia?”, perguntou-se.  

Fox, que entendia a urgência, começou a listar nomes com o cuidado de um comandante:  

— Além de mim, Kenshiro, Erina, Zhen e Takashi conseguem usar a Essência. 

Houve um breve ruído coletivo; surpresa, dúvida, depois aceitação.  

— Eu? — murmurou Takashi, surpreso. 

Ninguém se demorou a reagir ao espanto do arqueiro; a agenda prática urgia.  

— Quanto aos demais — continuou Fox, com a voz firme —, cuidem da contenção. Nós, que temos Essência, atacaremos nos pontos vitais. Incapacitem, nós liquidamos. 

 A estratégia era seca, direta: divisão de papéis, uso de força máxima aonde fosse realmente eficaz. 

— Não tenho objeções — disse Skadi, cruzando os braços 

— Nem eu — disse Surt, imitando sua irmã. 

A noite parecia comprimir o espaço entre eles e os mortos: o ar tornava-se mais espesso, a luz das tochas projetava sombras tremeluzentes e as respirações se sincronizavam em tensão.  

A muralha envelhecia ao redor, testemunha silenciosa de uma escalação que nenhum papel de jornal poderia descrever em toda sua verdade. E ali, no limiar entre o muro de pedra e a massa que avançava, cada escolha importava. Cada falha poderia ser pior que uma derrota — poderia ser o ponto de não-retorno para toda a cidade. 

Porém, o que estava prestes a acontecer iria abalar todo o plano, desestabilizando qualquer estratégia já concebida para conter os mortos-vivos. 

Ei! Quem seria aquele? — exclamou Surtr, a incredulidade e o temor misturados em sua voz. 

Do lado de fora da muralha, Tharion caminhava com passos calmos, quase indiferentes, segurando sua espada com uma naturalidade que irritava e fascinava ao mesmo tempo. Talvez fosse a luz da lua refletindo em seu metal, ou a própria aura da noite que o tornava ainda mais imponente, mas algo na sua presença fazia todos observarem-no. 

A lâmina emitia um brilho platinado, suave e frio, lembrando a Lua cheia em seus dias mais luminosos. Seu apelido não podia ser mais apropriado: Lâmina Lunar. 

A aproximação de Tharion não passou despercebida pelos Renascidos. Apesar de sua desorganização e selvageria, podiam sentir a aproximação de qualuquer ser vivo; seus corpos hesitaram por um instante. 

— Aquele imbecil! — Surtr rangeu os dentes, erguendo-se da muralha, pronto para saltar e confrontá-lo. 

— Esperem um pouco! — Kenshiro agarrou-o a tempo, segurando-o firme pelo braço 

— O que pensa que está fazendo?! 

— Apenas observe… — respondeu Kenshiro, com um olhar fixo em Tharion. 

Skadi decidiu confiar, mantendo-se imóvel, consciente de que qualquer interferência poderia atrapalhar. Surtr, por outro lado, ainda se debatia internamente entre o impulso de atacar e a necessidade de confiar no julgamento da irmã. 

Tharion ergueu a cabeça e, ao perceber Kenshiro e Erina observando-o, acenou com um sorriso tranquilo.  

— O que ele está fazendo? — Fox perguntou, vendo o exército dos mortos avançando com um rugido baixo e constante. 

— Está se despedindo — murmurou Erina, os olhos fixos, uma mistura de fascínio e temor atravessando seu peito. 

A espada de Tharion começou a emitir uma luz crescente, quase dolorosa de se encarar. 

Então, em um movimento fluido, quase poético, Tharion girou a Lâmina Lunar de um lado para o outro. O corte foi majestoso, amplo, e por um instante, o mundo pareceu parar. 

As fileiras de mortos-vivos, tantas vezes consideradas intermináveis, começaram a ceder. Estavam sendo partidos ao meio. As metades evaporavam antes de tocar o chão. Um silêncio mortal se seguiu, exceto pelo sutil estalo do ar cortado pela lâmina. 

Em segundos, o que era um mar incontrolável de monstros se transformou em nada. Nem gemidos, nem sussurros; apenas o vento e o brilho residual da Moonblade que se dissipava lentamente. 

E então… Tharion desapareceu.  

Não houve fumaça, nem magia visível — apenas o vazio onde ele estivera, deixando para trás um pequeno grupo de testemunhas atônitas, incapazes de processar a magnitude do que tinham acabado de presenciar. 

— O que foi isso?! — Surtr gritou, a voz cheia de espanto, olhando para o casal que também permanecia sem palavras. 

Erina permaneceu imóvel, olhos arregalados, tentando absorver a grandeza daquele instante. Kenshiro, por sua vez, sentiu o peso da realidade: algumas forças não se compreendem, apenas se respeitam — e Tharion era, sem dúvida, uma delas. 

Os gêmeos ainda tentavam assimilar o que haviam presenciado. Cada pensamento parecia lento, quase doloroso, enquanto a magnitude do que tinham visto se desenrolava em suas mentes. 

— Quem era aquele sujeito?! — Surtr perguntou, a voz entrecortada, quase um grito. 

— Um amigo da família — disse Kenshiro, tentando soar natural, mas percebendo que qualquer explicação soaria insuficiente diante daquilo. 

— Acha mesmo que vamos acreditar nisso?! — Skadi retrucou, indignada, os olhos brilhando com incredulidade. 

— Por que estão tão… eufóricos? — Fox perguntou, franzindo o cenho. 

Poucos notaram, mas os olhos dos gêmeos estavam envoltos por uma fina camada dourada ao redor das pupilas. Uma manifestação sutil de Essência, tão tênue que passaria despercebida para qualquer observador casual, mas presente o suficiente para indicar que a experiência fora algo muito além do comum. Mesmo fora de combate, eles pareciam capazes de sentir a energia de forma cotidiana. 

— É sério que nenhum de vocês viram?! — insistiu Surtr, a ansiedade crescendo. 

— É claro que não — respondeu Skadi, tentando se manter firme. 

— Vocês não puderam ver o mesmo que a gente — disse Surtr, a frustração evidente em sua voz. 

— Do que vocês estão falando? — Zhen perguntou, confuso, a curiosidade se misturando com cautela. 

Os gêmeos respiraram fundo, tentando organizar as palavras antes de explicar o inexplicável. 

— Devem ter visto a espada brilhando, não? — perguntou Surtr, seus olhos ainda fixos no vazio onde Tharion desaparecera. — Todos vocês notaram o brilho, mas… não foi só isso que aconteceu. 

— Quando ele realizou aquele corte — continuou Skadi, a voz carregada de reverência e assombro —, ele não apenas atacou fisicamente. Ele criou uma lâmina carregada de Essência. Uma onda pura de energia que cortou todos os Renascidos conforme ela avançava. 

Todos olharam para Kenshiro, lembrando-se de seus ataques de vento, e alguns até sussurraram baixinho sobre a magnitude daquele feito. 

— Com certeza é diferente — disse Fox, ainda absorvendo a cena. 

— Não é só o fato dele conseguir usar Essência — disse Skadi, gesticulando como se tentasse medir algo invisível no ar —, mas a magnitude! Um golpe daquele tamanho gasta uma quantidade absurda de energia. E mesmo assim, ele saiu sem qualquer sinal de cansaço aparente. 

— Qual é o máximo que vocês conseguem? — Kenshiro perguntou, quase desafiando os gêmeos. 

— Mesmo nas condições ideais — respondeu Skadi, analisando mentalmente —, combinando nossas forças, talvez conseguíssemos fazer metade do que ele fez. 

— Mas morreríamos logo em seguida — Surtr completou, a voz baixa, quase assustado. — Se usássemos toda a Essência de uma só vez, não sobraríamos vivos. 

— E aquele sujeito… — continuou Skadi, a incredulidade evidente —, ele ainda tinha energia para gastar depois de um ataque daquele tamanho. 

O grupo permaneceu em silêncio por alguns segundos, todos absorvendo a dimensão do poder que haviam testemunhado. Tharion não era apenas um guerreiro excepcional; era uma força da natureza, uma entidade capaz de reconfigurar o campo de batalha com um único gesto. 

Porém, a mente de todos rapidamente se voltou para o verdadeiro perigo: Varelith. Se até mesmo Tharion não conseguia derrotá-la de forma definitiva, quais seriam as chances deles contra a ela? 

— Não adianta ficarmos pensando sobre isso agora — disse Skadi, a voz firme, encerrando o assunto sobre Tharion. — Por favor, voltem para o quarto de vocês. Peço desculpas por incomodá-los desnecessariamente. 

— Não seja por isso — disse Erina, mantendo a calma e oferecendo um leve sorriso. — Não havia como vocês saberem. 

E com essa breve e avassaladora demonstração de poder, todos se viraram para seguir o caminho de volta. O peso do que haviam testemunhado ainda pairava sobre eles.  

Cada um carregava consigo a lembrança daquele brilho platinado. 

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