Volume 2 – Arco 10
Capítulo 102: Discussão
Não importava de fato quem perguntava — Tharion não parecia disposto a responder nenhuma daquelas dúvidas. Seu sorriso era de quem dominava a própria presença, e o silêncio em torno dele era quase uma resposta por si só.
Mas uma voz, firme e impaciente, finalmente rompeu o encanto.
— Esperem um pouco, todos vocês! — A voz de Anastasia soou cortante, clara como o som de vidro se partindo. Todos se voltaram para ela. — É sério isso?! Ele aparece aqui, derrota cada um de vocês sem esforço, e só porque a espada dele pesa... o quê, dezenas de toneladas? Vocês deduzem que ele é alguém bom?
O olhar dela passou por todos, um a um. A cada palavra, a indignação ganhava força.
— Esqueceram da confusão com o metamorfo? Ou até mesmo da Varelith? — A última palavra saiu carregada de amargura, e o silêncio que se seguiu fez o ar parecer mais denso.
Fora um sermão merecido — e, talvez, necessário. Ainda assim, nem todos pareciam dispostos a dar-lhe razão.
Tharion apenas suspirou, afastando-se do grupo de curiosos que o rodeava.
— Não seja por isso, minha cara — disse com um meio sorriso e um brilho zombeteiro nos olhos. — A bondade... sempre foi algo que exalei como um perfume natural.
Fez uma breve pausa, erguendo o queixo de modo teatral.
— Agora... o que acha de trazer um pouco de vinho para eu molhar a garganta? — completou com desdém encantador.
O tom foi tão casual que parecia natural vê-lo dar ordens em uma casa que nem sequer era sua.
Anastasia piscou, incrédula. Por um momento pareceu que o fulgor em seus olhos se transformaria em uma chama literal.
— Eu só acho que ninguém deveria merecer confiança apenas por aparência... — disse, contendo o impulso de dizer mais.
E então, com um gesto seco, virou-se e bateu a porta atrás de si.
O impacto reverberou como um aviso: alguém ali ainda tinha juízo.
Tharion observou a porta fechada por alguns segundos, o sorriso ainda no rosto.
Depois virou-se para o grupo, o mesmo sorriso agora levemente inclinado, como se nada daquilo tivesse a menor importância.
— Isso não foi muito legal — comentou Erina, sua voz um misto de censura e desconforto.
— Ah, relaxem — respondeu Tharion, dando alguns passos na direção deles. Seu tom era despreocupado, mas havia uma gravidade quase imperceptível em suas palavras. — A questão aqui não é a maneira como eu agi...
Parou diante de todos. Os olhos de Tharion, antes serenos, ganharam um brilho frio e afiado.
— ...mas quem contou a uma estranha sobre essa jornada.
O ar pareceu mudar. A atmosfera antes leve e curiosa transformou-se em algo pesado, sufocante. A voz de Tharion era baixa, mas ecoava como um trovão contido.
Sebastian sentiu os músculos ficarem tensos, um suor frio escorrendo por sua nuca.
— Fui eu — disse Kaji, mantendo seu fogo timidamente baixo. — Tive um momento de fraqueza e acabei desabafando com ela. Falei coisas além do que devia.
Tharion o fitou longamente, o olhar impassível. Então, suspirou e passou uma das mãos pelo rosto, como quem carrega o peso de uma paciência exaurida.
— Anastasia não está tão errada — disse Fox, cruzando os braços. — Você ainda precisa conquistar nossa confiança... ou, ao menos, a minha.
Tharion retirou a mão do rosto, e seu sorriso reapareceu — um sorriso cansado.
— Para esse caso — disse, sentando-se na beira da cama e recostando-se com a elegância de quem estava em casa —, eu permito que Erina e Kenshiro façam as apresentações.
Seu tom era desinteressado, mas o comando estava lá, disfarçado sob o verniz da casualidade.
Os olhares se voltaram para o casal.
Erina respirou fundo antes de dar um passo à frente.
— Pois bem... — começou, sua voz ecoando com sua firmeza comum. — Todos vocês devem se lembrar... Depois da morte de Reiji Torison, eu e Kenshiro decidimos abandonar a jornada. Achamos que seria melhor nos escondermos, nos afastarmos de tudo.
Lembravam-se da informação das noites que compartilhavam ao redor das fogueiras
— Mas então — continuou —, um homem apareceu, trazendo consigo a Crônica... Aquela que vimos na AMA. E como todos devem saber, ela mostrou coisas que não podemos simplesmente ignorar.
Kenshiro completou, a voz baixa, carregada de respeito:
— Esse homem... é Tharion.
Mesmo que todos já o suspeitassem, ouvir aquilo dito em voz alta causou impacto.
Tharion não era apenas um guerreiro de força inumana. Era o homem que havia causado tudo aquilo. O responsável pela jornada e todas as consequências que se seguiram com ela.
E, por um instante, ninguém soube se deveriam se sentir honrados... ou aterrorizados.
— Espera um pouco! — disse Sebastian, erguendo a voz com urgência. Seu olhar estava distante, a mente girando em espirais de dúvida. — Eu li a memória de vocês, e... bem... agora que penso sobre isso... não consigo me lembrar bem da aparência dele.
Tharion ergueu uma sobrancelha, divertido.
— Não se preocupe, mordedor de pescoços — respondeu com um meio sorriso. — É um feitiço que utilizo. Ninguém consegue se lembrar de mim por completo. Uma pequena proteção... que mantém minha identidade oculta.
O tom de voz era quase relaxado.
— E por qual razão você faria isso? — perguntou Zhen, desconfiado, as mãos entrelaçadas atrás das costas, como quem tenta esconder o nervosismo.
— E qual outra seria? — disse Tharion, abrindo os braços, teatral. — Para não me tornar um alvo. Assim como aconteceu com os falecidos Heróis.
Quase como se estivessem em luto, ficaram em silêncio por alguns instantes.
— Mas... com toda a sua força — resmungou Gurok, coçando o queixo com a ponta dos dedos grossos —, existe mesmo necessidade de se esconder? Varelith é mais forte que você?
Tharion o encarou como quem observa uma criança que acabara de dizer uma tolice monumental.
— O quê? — Seu sorriso desapareceu. — Não seja tolo, verdão. Ninguém é mais forte do que eu. Nem mesmo aquela vadia.
O modo como ele disse “vadia” fez alguns estremecerem. Havia um ódio antigo em sua voz — um rancor que parecia vir de antes mesmo da própria história.
Takashi, encostado na parede, cruzou os braços.
— Então... qual seria a razão?
Tharion soltou um suspiro longo. Por um instante, a arrogância em seu rosto deu lugar a algo quase humano: cansaço.
— A verdade é que Varelith é mesmo poderosa. Nunca foi, e nunca será, a mais forte — disse, sua voz agora mais grave —, mas sua persistência é um inferno. Se eu não permanecesse oculto, ela acabaria me vencendo... pela exaustão.
Zhen inclinou a cabeça.
— Se me permite dizer, parece que você a conhece bem.
Tharion riu, sem alegria.
— A Varelith? Aquela maldita... Eu a enfrento há séculos. Talvez milênios. — Passou os dedos pelos cabelos brancos, lembrando. — Sempre a venci, é claro, mas... nunca encontrei uma maneira de derrotá-la de forma definitiva.
O olhar dele se perdeu por um instante — distante, nostálgico, talvez até arrependido.
— E sinceramente... — continuou, a voz ficando mais baixa —, agora que penso sobre isso, não sei se deveria ter tanto orgulho assim.
Erina, atenta, percebeu o tom pesaroso.
— Por quê?
— Porque eu não estava lá — O olhar de Tharion tornou-se escuro. — Quando ela matou os Heróis e Reiji Torison... quando ceifou Kenzou Torison... nem mesmo quando destruiu Shenxi. Eu não estive presente.
— Você sabe sobre Shenxi? — perguntou Xin, a voz embargada.
Tharion a fitou por um momento.
— Sei. E lamento muito por ter chegado atrasado naquele dia. Eu não fui... rápido o bastante.
Antes que alguém pudesse dizer algo, uma nova voz atravessou o ar.
— E pode explicar como chegou aqui tão rápido, então? — perguntou Anastasia, os braços cruzados, atrás de todos.
Sua chegada passou despercebida por todos, que ainda digeriam as palavras do homem.
Trouxe o vinho como fora ordenado. A bandeja estava na cama mais próxima da porta.
Tharion ergueu o olhar até ela, um leve brilho de desprezo atravessando seus olhos.
— Eu senti múltiplas Essências sendo utilizadas aqui — respondeu, cada palavra arrastada com desdém. — Vim o mais rápido que pude.
Anastasia não se intimidou.
— Até onde eu sei, houve uma explosão colossal em Shenxi. Foi sentida até pelos magos — Seu tom era acusatório. — E você demorou dias para aparecer.
— Você fala como se eu tivesse feito de propósito... — disse Tharion, com um meio sorriso.
— E quer que eu veja de outro jeito?! — rebateu Anastasia, avançando um passo.
Encarando-se nos olhos, sentiam como se faíscas pudessem ser geradas pelo desprezo mútuo.
— Acalmem-se, os dois, agora! — A voz de Erina rompeu o conflito, mais alta do que pretendia. — Sebastian, por favor, leve Anastasia para fora. Tente acalmá-la.
Anastasia hesitou por um instante, mas a mão de Sebastian em seu ombro a guiou suavemente até a porta.
— Vamos — disse ele, com um meio sorriso.
Quando a porta se fechou novamente, o quarto ficou em silêncio. O crepitar da lareira parecia ser o único som presente.
As palavras de Anastasia, no entanto, permaneceram. Como uma ferida aberta na mente de todos.
“Por que ele não apareceu em Shenxi?”
Tharion suspirou, apoiando os cotovelos nos joelhos e entrelaçando os dedos diante do rosto. Por um instante, seu olhar perdeu-se no nada, como se buscasse as palavras certas para traduzir algo que os demais jamais compreenderiam por completo.
— Está bem, está bem — começou, a voz carregada de uma ironia contida. — Sobre o elefante na sala...
Tharion ergueu um dedo, como um professor prestes a dar início a uma lição antiga.
— Existem diferenças fundamentais entre as energias Estamina e Mana quando comparadas à Essência.
Deixou que o silêncio fizesse o trabalho de captar a atenção de todos antes de continuar:
— Estamina e Mana são energias físicas. Corpo e mente. Simples assim...
Por séculos, acreditou-se que a mente — ou a inconsciência — não fosse algo físico. Que fosse etérea, uma chama separada do corpo. Essa arrogância — essa conveniência filosófica — foi uma invenção dos magos para se colocarem acima dos demais, afastando os ignorantes com palavras difíceis e círculos de giz.
A dupla de magos não conseguiu evitar o incômodo ao serem tratados como arrogantes. No entanto, não tinham coragem de defender os responsáveis por aquela dedução.
— Esse erro — continuou Tharion — só foi revelado quando a Essência foi descoberta. Porque ela... — apontou para o próprio peito — mexe exclusivamente com o espírito do indivíduo. Com a alma.
Uma leve oscilação percorreu o ar, como se a própria palavra “alma” tivesse peso.
— A mente e o corpo sempre estiveram conectados. São como duas metades de uma ponte que nunca deixam de se tocar. Só com a magia é que alguém teve a coragem de separar o que, desde o princípio, nasceu unido.
Levantou-se lentamente, caminhando pelo quarto enquanto falava. Sua sombra projetava-se sobre as paredes, dançando junto ao fogo da lareira.
— A prova disso está no subconsciente e no consciente. Dois lados distintos, mas um mesmo ser. O corpo humano é funcional com ambos, mas é capaz de se mover, pensar e agir mesmo quando uma das partes é silenciada. Por isso, ainda é possível usar Mana e Estamina mesmo quando suas partes primordiais estão avariadas. Difícil, mas possível.
Takashi o observava como quem tenta distinguir se o homem falava ciência... ou loucura.
— Os Renascidos, por exemplo — disse Tharion, virando-se subitamente. — Eles conseguem utilizar Mana e Estamina, mas jamais poderão tocar a Essência. Porque suas almas já não habitam mais os corpos que um dia chamaram de lar. São apenas cascas animadas por lembranças.
Então Tharion suspirou, os ombros caindo, e a voz perdeu parte da impostura.
— E, portanto... — voltou a sentar-se — enquanto a Essência é captada quase que instantaneamente, as explosões de Mana e Estamina viajam. Elas demoram. Podem levar horas... ou até dias para serem sentidas por quem está longe.
Fez uma pausa, olhando para as chamas.
— Quando percebi o que Kenshiro e Erina haviam feito... — sua voz ficou grave, contida — talvez Varelith já tivesse feito... tudo aquilo.
A lembrança amarga invadiu a mente de Xin.
— Mas nós usamos um portal — disse Xin, confusa. — Não ficamos nem um dia junto dos magos.
— Na verdade... portais não são instantâneos — explicou Vaelis. — Eles dão essa impressão por serem absurdamente rápidos. Mas a distância entre a AMA e o Continente é colossal. Mesmo com compressão de espaço, pode ter levado dois... talvez três dias.
— Três dias... — repetiram, baixo, o eco de entendimento percorrendo o grupo.
Tharion bateu duas palmas e reclinou-se sobre a cama, exausto de tanto falar.
— Mais alguma coisa que queiram saber? — perguntou, a voz rouca, quase entediada.
Um breve silêncio pairou. Então, todos se olharam, e, quase em uníssono, responderam:
— Sim.
Tharion fechou os olhos e soltou um leve riso.
— É claro que sim... — murmurou. — Nunca estão satisfeitos...
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