Volume 1 – Arco 5
Capítulo 54: Os Ratos
As fileiras dos mortos-vivos avançaram sem qualquer aviso sonoro. Nenhum grito, nenhum rugido, nenhum som além do arrastar de ossos, passos trôpegos e o som das carnes pútridas batendo umas contra as outras.
Começaram a correr em sincronia, como um enxame guiado por puro instinto. Mas logo, a falsa ordem se quebrou. Alguns começaram a ficar para trás, enquanto outros, mais velozes ou mais deformados, tomavam a dianteira.
Eram desorganizados. Irracionais. Imprevisíveis.
Os vermes rastejavam pelo chão, lentos demais para acompanhar os bípedes. Não eram uma ameaça imediata, suas frágeis carcaças seriam incineradas antes mesmo de cruzarem a cortina de chamas que Kaji mantinha adiante.
Os corpulentos, eram o problema. Suas carnes inchadas, deformadas e resistentes serviam de armadura. Eles seriam a ponta de lança, esmagando qualquer coisa no caminho.
A única barreira entre aquela maré podre e a cidade de Shenxi era um punhado de guerreiros.
Tolos. Ingênuos.
À direta, uma entidade flamejante, um colosso de fogo vivo, rugia, suas chamas dançando com violência suficiente para atrair metade do exército para si.
À esquerda, um paladino de armadura platinada, sem espada, sem escudo, apenas seus punhos cerrados e olhos que não conheciam o conceito de recuar.
E, ao centro, uma muralha de carne, aço e convicção. Uma barreira de escudos imóvel, inabalável, aguardando o impacto iminente.
O chão tremia. Cada passada dos mortos fazia o solo vibrar como tambores de guerra, anunciando um conflito que já não podia mais ser evitado.
Erina, a Capitã, sentia o medo escorrendo pela espinha de seus homens. Sentia o peso da dúvida corroendo seus pensamentos. Precisava arrancar isso deles, precisava que cada um fosse mais do que apenas si mesmo. Precisava que se tornassem uma extensão de sua própria vontade.
Não podia permitir que um só morto-vivo passasse.
Sem tambores. Sem trombetas. Sem canções. Apenas sua voz.
— Estão com medo — Sua voz cortou o silêncio, tão afiada quanto uma lâmina. — Mas acham que é a coragem que faz esses cadáveres correrem?
Seu olhar cruzou o de cada um.
— Eles não têm sentimentos. Não têm medo. Não têm dúvida. Não têm coragem, nem esperança. São apenas cascas vazias...
Do seu lado, Sebastian, um vampiro, um morto-vivo, permaneceu em silêncio. Entendia perfeitamente o que sua capitã queria dizer.
— E olhem para vocês. Todos vocês estariam como eles agora, se não tivessem feito uma escolha. A escolha de ficarem aqui. A escolha de lutarem. A escolha de desafiar esse destino miserável que tentam impor a nós.
Todas as escolhas que fizeram em vida... cada decisão, cada renúncia... trouxeram vocês até esse momento. E se este é o momento mais importante das suas vidas... não permitam que o medo da morte apague quem vocês são. Porque a morte... é o único inimigo que ninguém vence.
Os mortos estavam mais perto. O som dos ossos, da carne e da terra se misturava ao silêncio sufocante dos vivos.
— Se este for nosso último dia — Sua voz agora soava como um trovão —, então que seja um dia vivido com coragem! Que nossos gritos sejam de FÚRIA, não de desespero! agora... gritem, meus soldados!
— Aaaaaah! — responderam.
Fraco.
— Isso não me convence! — Avançou dois passos. — Lembrem-se do porquê estão aqui! Lembrem-se de suas famílias, seus filhos, seus irmãos, suas esposas, seus pais! Vocês são a última linha de entre eles e o fim!
— AAAAHHHHH! — O grito foi mais forte, mais cheio de vida.
Não o suficiente.
— NÃO! — Bateu a mão no escudo, o som metálico reverberando. — Ainda não é suficiente! Ouçam! Ouçam seus corações! Sintam! Pela primeira vez... pela primeira vez vocês irão mostrar ao mundo seu verdadeiro valor! Sua verdadeira FORÇA! Então GRITEM!
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!
O chão parecia vibrar não mais pelos mortos, pelos vivos.
Erina sorriu. Seus olhos agora brilhavam intensamente em dourado. Não havia um traço sequer de medo.
Os mortos, percebendo que não poderiam simplesmente contornar, dividiram-se.
Metade lançou-se contra Kaji, atraídos pelas chamas devoradoras.
Uma parcela menor avançou contra Gurok, o paladino platinado, como se quisessem provar que punhos não bastavam.
O restante investiu contra a barreira de escudos. Apostando que, na força bruta, poderiam esmagá-los.
Erina não recuou.
— NÃO DEEM UM ÚNICO PASSO PARA TRÁS! — Sua voz ecoou, preenchendo cada fibra dos que estavam atrás dos escudos. — E MOSTREM AOS MORTOS... O PODER QUE A VIDA NOS DÁ!
Zhen, de punhos cerrados, sentiu uma força crescer dentro de si. Uma energia que não vinha de seu pai. Vinha dela. Da mulher à frente de todos. Da Capitã. De Erina.
O fogo interior de Kaji queimava como um vulcão prestes a se romper. A fumaça escapava por frestas da armadura flamejante, soprada com tanta pressão que criava um som agudo, metálico, quase como um apito fantasmagórico, um presságio daqueles que ousassem enfrentá-lo.
Os mortos avançaram contra ele como formigas famintas, cercando-o por todos os lados, esperando que o número esmagasse sua vontade.
Kaji respondeu pisando com força no chão. Uma explosão de fogo e lava varreu tudo ao redor. As chamas se ergueram como colunas infernais, devorando carne, ossos e qualquer matéria que tivesse o azar de estar próxima.
Os que estavam mais perto não tiveram sequer tempo de gritar, foram reduzidos a cinzas, dissolvendo-se no ar em um estalo flamejante.
Mas os que vinham logo atrás, ignoraram o destino dos primeiros. Seguiam correndo, tropeçando uns nos outros, cegos pela ausência de medo.
Patéticos. Fracos. Kaji abriria um sorriso, se sua forma de combate permitisse.
Enquanto isso, Gurok aguardava. Paciente. Imóvel.
Os mortos vinham até ele pela frente, como se ele fosse nada além de uma pedra no caminho.
Quando estavam perto o suficiente, Gurok enfiou as mãos na bolsa sem fundo e puxou de dentro um porrete colossal. Maior que uma lança de matar cavalos. Mais pesado que um martelo de guerra.
Com um giro brutal, desferiu um golpe lateral. Ossos se partiram. Dezenas de cabeças voaram ao mesmo tempo, acompanhadas de pedaços de coluna, braços e costelas.
O impacto foi tão violento que o porrete escapou de suas mãos, voando pelos ares, desaparecendo entre as árvores distantes, e levando consigo um bando de pássaros que fugiu, assustado.
Gurok nem se importou. Mergulhou as mãos na bolsa novamente e puxou dois martelos de guerra idênticos, o mesmo modelo que havia usado em Altunet.
Para outro, seriam armas pesadas, desequilibradas, impossíveis de manejar com agilidade. Para ele, eram como simples bastões.
Com um sorriso selvagem, girou os martelos. Sabia que aquela era sua chance de provar a Erina sua força. Sua promessa. Não deixaria um único cadáver passar.
BAM! BAM! BAM!
As fileiras dos mortos finalmente colidiram contra os escudos da tropa de Erina.
— FORÇA! — gritou ela, os olhos brilhando em dourado.
Nenhum passo para trás. Nenhum sequer.
Os soldados empurraram com tudo, bloqueando a carga dos mortos, e então, em movimento sincronizado, as lanças perfuraram.
A carne podre cedeu fácil, rasgando-se como papel molhado. A resistência era quase nula, para os soldados aquilo parecia outro milagre. A sensação da lança atravessando os corpos alimentou uma ilusão poderosa: a de que haviam se tornado algo mais. Mais fortes. Mais imbatíveis.
Essa ilusão era tudo o que precisavam.
Kenshiro mantinha-se como uma lâmina viva. Cada movimento de suas espadas era uma dança precisa. Girava, cortava, separava membros, derrubava qualquer coisa que se colocasse em sua frente. A cada golpe, uma onda de mortos caía, como se ele fosse o vento e eles, folhas secas.
O grande escudo de Erina esmagava os corpos com golpes secos, abrindo espaço, derrubando fileiras inteiras como peças de dominó.
Zhen era como pura luz. Cada golpe de suas palmas faiscava, cada toque parecia desconectar os mortos da própria realidade. Suas mãos brilhavam como sóis em miniatura, e todo cadáver que ele tocava simplesmente apagava.
Mas assim como um rio que ignora pedras em seu caminho, os mortos simplesmente desviavam. Aqueles que não batiam de frente contra os escudos, fluíam para os lados, tentando contornar, ignorando completamente Xin e Takashi, como se sequer entendessem o perigo que representavam.
Xin e Takashi mantinham-se atentos, controlando os flancos.
As flechas voavam como enxames de vespas. Mas eram disparadas de um único arco. Takashi movia os braços com uma velocidade tão absurda que parecia estar manipulando várias cordas de um instrumento invisível. Seus disparos nunca erravam. Cada flecha atravessava olhos, bocas, gargantas, e mesmo quando não matava no impacto, fazia com que os alvos tropeçassem, caíssem, e fossem pisoteados pelos próprios aliados.
Xin, com sua expressão fria, dançava entre os flancos. Seu chicote estalava como um trovão, arrancando cabeças, braços, pernas. Os mais distantes eram atingidos por pedras disparadas em velocidade absurda, cada uma com força suficiente para atravessar um crânio, derrubando três ou quatro atrás.
Ambos tinham munição de sobra. Gurok tinha cuidado disso.
Ainda que a linha de defesa fosse brutalmente eficiente, parecia que os números não tinham fim.
Por mais que caíssem, mais surgiam.
Mais ossos. Mais carne. Mais vermes rastejando. Mais olhos vazios, mortos, encarando a vida como um predador faminto encara a presa.
O rio da morte parecia interminável.
***
Budai caía dos céus como um martelo divino, mirando direto em Yong.
As raízes se esticaram em sua direção, tentando agarrá-lo no ar.
THAK! THAK! THAK!
O Herói rebateu todas, golpeando as pontas das raízes com a ponta dos dedos. Cada uma que tocava, quebrava. Fragmentos de madeira voavam, estilhaçando-se como vidro.
BAM! Yong foi cravado contra o chão.
Sem perder tempo, Budai começou uma sequência de socos diretos no peito do Rato. Cada golpe fazia a terra estremecer. Cada impacto era uma milha de carne podre se desfazendo, uma legião de vermes sendo pulverizada.
Se havia algo que realmente diminuía as fileiras daquele exército, era a fúria crua do Herói.
A rainha, ela percebeu. Entendeu que seus filhos estavam à beira da extinção.
De repente, a rainha disparou. Saltou da boca de Yong como uma flecha viva, mirando a cabeça de Budai.
Se tivesse sorte, bastaria um só golpe. Cravaria seus dentes em seu cérebro, tomaria seu corpo.
O Herói apenas inclinou a cabeça.
Ela voou, errando o alvo. Subiu, até despencar, caindo bem no meio do campo de batalha.
Irritada. Desesperada.
CHIIIIIIIIIIIIII! seu grito atravessou o campo como uma lâmina.
Todos os mortos pararam instantaneamente. Começaram a recuar. Corriam até ela, formando um círculo, protegendo-a.
Erina viu aquilo, não hesitou nem por um segundo.
— AGORA É A NOSSA VEZ! AVANÇAR! — bradou, já começando a correr.
Seus aliados não ficaram atrás.
Takashi, que já havia entendido quem era o alvo prioritário, correu até Gurok: — Preciso de altitude! Me lança!
Gurok não questionou. Pegou o elfo pelos ombros e o jogou como uma lança viva aos céus.
No ar, Takashi puxou sete flechas de uma vez. Disparou.
Sete linhas azuladas, das quais somente ele podia ver, cortaram o céu, cada uma atingindo a Rainha. Ela gritou, debatendo-se, cuspindo fluidos negros.
Desesperados, os vermes começaram a se jogar sobre ela, criando uma barreira com seus próprios corpos. Os mortos-vivos também se reuniam, criando um muro para protegê-la.
Mas já era tarde. Todos sabiam exatamente o que fazer. Todos sabiam o quanto eram fortes.
O avanço foi devastador. Cortavam caminho por entre os mortos como se atravessassem um campo de mato alto. Golpes, estocadas, chamas, aço, encantamentos, tudo trabalhava como uma colheitadeira viva.
Kaji formou uma esfera incandescente em suas mãos. Uma bola de fogo tão densa que tremulava como se fosse líquida.
— MORRAM TODOS! — gritou, lançando-a.
Mas alguns cadáveres se jogaram na frente, absorvendo a explosão. Seus corpos carbonizados voaram em pedaços, protegendo, mesmo que por pouco, a Rainha.
Estavam quase lá. Quase.
Mas então, tiveram de pararam.
Algo começou a se formar.
Os vermes começaram a se empilhar, subir uns sobre os outros, girando, girando... Como se tivessem descoberto uma nova lógica biológica, se moldaram em um corpo.
Negro. Disforme. Vivo.
Se mexiam, pulsavam, se rearranjavam constantemente, como se milhares de músculos estivessem lutando para manter aquela forma coesa.
Acha impossível? E o que é, então, um ser vivo, senão um amontoado de seres menores, de células, de organismos, de pedaços interdependentes? Ah... me desculpe. Não quis atrapalhar.
Erina deu um passo para trás. O medo que há muito tempo não sentia apertou seu peito.
A criatura nem os olhava. Simplesmente ergueu sua cabeça e abriu a boca para o céu. Uma esfera de energia púrpura começou a se formar, crescendo, girando, vibrando.
Era instável. Mortal. Uma bomba viva.
Alguns vermes se desfizeram, literalmente se sacrificando, alimentando a esfera com suas próprias existências.
Xin entendeu antes de todos. Seus olhos arregalados.
— BUDAI! — gritou. Sua voz atravessou o campo inteiro.
O Herói parou. Seus punhos ainda esmagando Yong, mas seu olhar agora estava voltado para trás.
E então viu. Viu o monstro. Viu a esfera. Viu o poder de um Rato tomando forma.
— A CIDADE! — gritou Xin, sua voz tremendo, sua alma gritando.
— HAHAHAHA! — Yong gargalhava, ainda com sua face desfigurada. — O que vai fazer agora, “Herói”? Vai sacrificar todos os cidadãos por um bem maior?
Os olhos de Xin se tornaram rubros. Dor. Agonia.
Budai sabia o que era certo. Sabia que era inevitável. Sabia, acima de tudo, o que um Rato poderia fazer caso não fosse detido ali, agora.
Mas também sabia... sabia que não estava sozinho.
— A luz da humanidade ainda irá te cegar, Rato... — disse, sem olhar para Yong.
Seus olhos estavam fixos no futuro. Em Zhen. Seu filho.
O garoto estava lá, de pé. Pronto. Disposto a se sacrificar por todos. Pela cidade. Pelos seus companheiros. Por Budai. Por Xin.
Pela primeira vez, Budai escolheu ser egoísta.
— AAAAAHHH! — rugiu, correndo.
Manteve seu braço esticado, mirando o peito da criatura. Não queria derrubá-la. Queria perfurar. Queria alcançar a Rainha.
O corpo inteiro da criatura começou a tremer. A esfera de energia quase estava completa. Até Budai tocá-la...
KRAZZZZ-BOOOOOOM!
O impacto foi tão violento que a esfera explodiu antes de ser disparada.
Uma tempestade púrpura se espalhou. A cidade estava salva.
Por enquanto.
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