Volume 1 – Arco 5

Capítulo 53: Alvorada Tardia

O grupo corria em direção à torre em ritmo acelerado. 

Ela não ficava muito distante de Shenxi. Bastava cruzar a ponte sobre o lago e seguir adiante, passando por algumas árvores, até se deparar com um campo livre de qualquer folhagem.

E lá estava a torre, destacada e intocada no horizonte. 

Antigamente, aquele campo fora tomado pela flora local, mas Zudao desmatou os arredores para abrigar seu exército. Agora, muralhas de madeira reforçada, torres de vigia e estacas pontiagudas protegiam o perímetro, impedindo qualquer aproximação ou ataque direto. 

O grupo de Erina era pequeno. Mesmo somando os guardas revoltosos ao seu lado, não chegavam a mais de cinco dezenas. Enquanto isso, Zudao possuía milhares. 

— Como deveríamos prosseguir? — perguntou um dos soldados, esforçando-se para não demonstrar nervosismo. Parecia ser o líder dos demais. 

A mente de Erina trabalhava mais rápido do que nunca, analisando sob pressão. Três estratégias já haviam se formado em sua cabeça: Kaji poderia avançar com toda sua fúria, servindo como um aríete humano; ou poderia simplesmente atrair a atenção dos soldados, seja com um incêndio, seja com sua própria presença chamativa, permitindo que o grupo se infiltrasse despercebido; ou, por fim, poderiam avançar com gritaria, simulando serem muito mais numerosos do que realmente eram. 

Quando estava prestes a ordenar, o chão tremeu. Forte. 

Todos cambalearam, exceto Sebastian, que manteve-se firme, olhando em volta. 

— Isso... não foi um terremoto — concluiu, com olhos atentos. 

O Sol estava próximo de se pôr, e a torre bloqueava seu centro, deixando apenas os raios escaparem pelas laterais.

Nada fora do comum. 

Mas havia algo errado. 

O Sol não deveria brilhar assim. 

Isso porque não era o Sol. 

Das janelas e frestas da torre, um brilho absurdo, quase divino, começou a emanar. 

O grupo, instintivamente, recuou. Um medo frio percorreu suas espinhas. Parecia mais uma artimanha de Zudao.

Todos concluíram o pior, exceto Zhen. Ele, diferente dos demais, não demonstrava medo. Seus olhos, feridos, brilhavam com admiração. Seu corpo inteiro tremia em reverência. 

Seus lábios se moveram, e suas palavras quase não foram ouvidas. 

— O quê? — perguntou Kenshiro, tentando entender. 

Zhen ergueu um pouco mais a voz, e, com um sorriso de quem reconhece uma antiga lenda diante dos próprios olhos, respondeu: O Herói... Budai, o Iluminado... voltou. 

Não houve tempo para processarem aquilo. Outro tremor veio, ainda mais violento. Todos foram jogados ao chão, até mesmo Sebastian, até então impassível. 

A torre cedeu em seguida. 

Rachou ao meio, como se tivesse sido partida por uma mão divina. Pedaços enormes despencaram, esmagando soldados de Zudao e destruindo a maior parte das defesas erguidas. 

Erina não pensou duas vezes. 

Em frente!! — gritou, agarrando a oportunidade que o destino acabara de lançar a seus pés. 

Antes mesmo que dessem o primeiro passo, foram surpreendidos. 

Ali, de joelhos, bem diante deles, estava um monge. 

Seus trajes estavam rasgados, mas sua pele reluzia como ouro à luz do crepúsculo. 

Era Budai. 

Eu peço perdão — disse, abaixando ainda mais a cabeça. 

Erina se aproximou, surpresa. 

— Perdão, pelo quê? 

Budai ergueu o rosto. Seus olhos, de um âmbar brilhante, refletiam uma serenidade quase sobrenatural. 

Eu os menosprezei — Sua voz era serena, carregada de sinceridade. — Erina Waltz,  Kenshiro Torison — Fitou-os.— Agora que minha razão me foi devolvida... pude ver tudo o que vocês enfrentaram. Toda a dor, todo o sacrifício, toda a coragem. 

Erina tentou interromper: — Não precisa... 

Budai continuou: Eu conheço bem o estado em que este mundo se encontra. E como o último Sol da humanidade... juro, aqui e agora, minha obediência e lealdade a vocês dois. 

O silêncio tomou conta. 

O casal se encarou, atônito. Por um instante, parecia que o próprio tempo havia parado. 

Budai, então, completou, com um sorriso que misturava leveza e força: 

Isso — Budai, completou, com um sorriso que misturava leveza e força —, é claro... se me aceitarem. 

Erina e Kenshiro se olharam por um segundo, incapazes de conter a euforia.

— É claro que te aceitamos!

***

Enquanto isso, nos escombros da torre, os soldados restantes lutavam desesperadamente para remover pedaços das paredes caídas. Procuravam pelo seu senhor, na esperança de encontrá-lo vivo. 

Aqui! — gritou um deles. — Tem alguém aqui! 

Ao afastarem um enorme bloco de pedra, depararam-se com um jovem, caído ao lado de um poço agora partido, rachado até as entranhas da terra. 

Sangue escorria por seu corpo, mas seus olhos estavam bem abertos, cheios de pavor e fúria, não pelo próprio estado, pelo que via à sua frente. 

Quem é você?! — perguntou um dos soldados, empunhando a lança. 

Não... não... NÃO! — gritou o jovem, encarando os destroços do poço. Seu corpo tremia, as mãos apertavam os cabelos ensanguentados. — NÃO!!! 

Caído ao chão, viu uma pequena joia, trincada, semienterrada na terra negra. Sem perder tempo, segurou-a com força e a levou até o solo. 

Do chão seco, uma raiz brotou, fina no início, depois grossa, serpenteando ao redor da joia. Em questão de segundos, a raiz se entrelaçou, moldando-se na forma de um novo cajado, vivo, pulsante, como se fosse feito de carne e madeira. 

Ergueu-se lentamente. Seu olhar se voltou para o horizonte, e ali, à distância, viu aquilo que mais temia e mais odiava: O Herói Budai. De pé. Vivo. Ao lado de seus aliados. 

Fogo subiu por suas veias. Seu rosto se distorceu em uma expressão de pura fúria. 

Identifique-se imediatamente! — exigiu um dos soldados, firme, mesmo que o medo começasse a apertar seu coração. 

O jovem não respondeu com palavras. Apenas ergueu a mão. 

No mesmo instante, todos os que estavam por perto, levaram as mãos ao pescoço, sufocando-se. Seus olhos saltaram, suas bocas se abriram, tentando puxar um ar que não vinha. 

Eu sou Yong — Sua voz carregava um ódio gelado, cortante —, seus humanos imprestáveis. 

A mão fechou-se num gesto de controle absoluto. 

E como seu senhor, sua santidade, usarei seus corpos para atingir meu objetivo. Morram. 

Os corpos pararam de se debater. Suas peles, antes pálidas de medo, tornaram-se arroxeadas, quase negras. Dos olhos, narinas, bocas e ouvidos, uma fumaça densa, púrpura, começou a escapar, como se algo corroesse seus interiores. 

Eles não caíram. 

Começaram a se mexer.

Suas pupilas sumiram, substituídas por um brilho fantasmagórico. Suas veias saltavam em tonalidades escuras, quase negras. 

Yong girou o cajado no ar e, com a ponta cravada no chão, deu a ordem que selaria o destino daquele campo. 

Matem todos — Sua voz era gélida, cruel. — Sem deixar um único ser com vida. 

***

É claro que te aceitamos! — responderam juntos, Erina e Kenshiro. 

O momento de euforia foi abruptamente interrompido. Gritos começaram a ecoar de todos os lados. 

Não vinham apenas dos soldados ao lado de Erina. Na direção da torre, os soldados de Zudao também urravam, se contorcendo no chão, como se estivessem sendo rasgados por dentro. 

Budai e Zhen, ao ouvirem, entenderam imediatamente. Sem perder tempo, correram de soldado em soldado, repousando as mãos sobre suas cabeças. Ao toque, uma fumaça negra — os vermes — era expulsa violentamente, evaporando no ar como se queimassem sob uma luz invisível. 

Ao lado do pai, Zhen voltava a sentir a força de seus encantamentos.

O que... foi isso? — perguntou Takashi, com a flecha semi-armada, olhando em volta, apreensivo. 

Yong — respondeu Budai, cerrando os punhos. — Ele está readquirindo o controle. 

Ao ouvir aquele nome, Zhen ficou momentaneamente paralisado, os olhos arregalados, como se um abismo se abrisse sob seus pés. Mas apertou os dentes e logo se recompôs. Aquele não era o momento para se deixar levar. 

Então, viram: fileiras intermináveis. 

Os soldados mortos-vivos começavam a se organizar diante da torre. Suas carnes retorcidas se regeneravam dos pedaços esmagados, como se a própria morte não passasse de um inconveniente. Eram semelhantes a Jonas, o grupo sabia bem o quão difícil seria abatê-los. Torciam para nenhum deles explodirem como ele. 

Eles não estão aqui por vocês — disse Budai, tomando a dianteira, os olhos dourados fixos na horda. — O alvo é Shenxi.  Mortos-vivos priorizam grandes concentrações humanas. Eles avançarão de qualquer forma, a qualquer custo. Se ficarem no caminho, vão tentar matá-los. Mas a maioria vai simplesmente ignorar vocês. 

E o plano? — perguntou Erina, com a voz firme, embora o peso da responsabilidade lhe apertasse o peito. 

Budai respirou fundo, ajoelhando-se como se fosse saltar. 

Distraí-los. Atraiam quantos puderem. Eu cuidarei de Yong — Olhou por cima do ombro e sorriu. — Eu sei que vocês dão conta. 

E, sem qualquer sinal, som ou rastro, Budai desapareceu. 

Erina nem piscou. Já virou-se, apontando: Kaji. 

SNAP! FWHOOSH! 

Com um estalar de dedos, uma cortina de chamas se ergueu atrás do grupo, fechando o caminho que levava diretamente a Shenxi. Uma muralha viva, ondulante, queimando como se fosse o próprio inferno. 

Kaji, cuide de metade deles. — Ela puxou seu escudo para frente, segurando-o com ambas as mãos. — Quero que queime até não sobrar sequer as cinzas. 

O tom era frio, calculado. Mas a fala era dirigida aos seus subordinados. Um lembrete, uma confirmação de ordens. 

Gurok — O olhar dela se voltou para o paladino. — Você está livre para sair da formação. Use tudo. Arremesse, esmague, exploda... apenas mantenha uma distância onde eu ainda consiga te curar, e que você não nos acerte no processo. 

O orc sorriu, balançando os ombros. 

Xin. Takashi — Ela os olhou, e ambos já empunhavam chicote e arco, respectivamente. — Vocês cuidam dos que escaparem. Não deixem passar nenhum. Não errem. 

Mas antes que a formação se completasse, algo ainda pior surgiu. 

Eles... — disse um dos soldados, engolindo em seco. 

Dos escombros, do chão rachado, dos espaços entre pedras e cadáveres, um enxame negro começou a se formar. 

Centenas de milhares de vermes. 

Rastejando, se contorcendo, subindo uns sobre os outros. Formando um tapete vivo que se estendia até perder de vista, cobrindo os pés dos mortos-vivos, serpenteando por entre as pernas deles, como se fossem suas sombras. 

E quanto a eles? — perguntou outro soldado, com a voz trêmula. 

Erina apertou o punho. Seu olhar era de aço. 

As chamas cuidarão deles — respondeu, sem hesitar. 

Se virou para Zhen. 

Se alguém for infectado, você sabe o que fazer. Não deixe que eles tomem ninguém, entendido? 

Sim, Capitã! — respondeu o monge, já preparado, com as mãos tremendo de energia dpurada. 

Quanto a Kenshiro nenhuma palavra foi dita. Não era necessário. 

Ele estava ali. Ao lado dela. Sabia o que precisava ser feito. Como sempre soubera. 

Se posicionou. Ombro a ombro. Espadas em mãos. 

Pronto para fatiar qualquer coisa que ousasse se aproximar de sua esposa, de seus aliados, da cidade. 

Todos os demais, comigo! — bradou Erina, erguendo o escudo. — Escudos e lanças à frente! 

E assim, como uma muralha de carne, aço e fogo, ergueu-se a última defesa entre Shenxi e os Ratos. 

***

Yong observava seu exército de mortos-vivos se reorganizar. Ainda não era tão grande quanto desejava, mesmo assim, a visão lhe provocava um êxtase quase orgástico. 

A cada cidade... a cada vila... meus números só irão crescer... — sussurrou para si, saboreando a ideia de um continente inteiro ajoelhado diante dele.

Seu devaneio foi interrompido de forma brutal. 

CRACK! 

Algo invisível o acertou com uma força absurda. Yong foi lançado para trás, tão rápido que sua visão sequer pôde acompanhar o que o atingira. Seu crânio foi o ponto de impacto, partiu-se como cerâmica rachada, sangue e fragmentos ósseos voando em todas as direções.

Quando recobrou a atenção, viu Budai. De pé. Punho cerrado. Sangue escorrendo pelos nós dos dedos. 

Quase... duas mil mortes... — disse o Herói, caminhando lentamente em sua direção, os olhos ardendo em dourado.

No mesmo instante, algo se arrastou para fora da cabeça rachada de Yong. 

Um verme. Mas não qualquer verme. 

Era maior que os outros. Seu corpo não era úmido nem translúcido, era coberto por placas escamadas, densas, rígidas como armaduras naturais. Pequenas patas alinhavam-se ao longo de seu corpo, lembrando uma centopeia demoníaca. 

Seus olhos — sim, olhos — brilhavam em um tom púrpura, pulsante, maligno. 

Então... você é a rainha — constatou Budai, frio. 

Sem perder tempo, avançou. 

SMASH! Um chute certeiro. 

O golpe esmagou não só o verme como afundou ainda mais o que restava da cabeça de Yong no chão. 

CHIIIIIIIIIIIIIIII!  O grito da criatura ecoou de forma aguda, ensurdecedora, uma nota de puro desespero e dor. 

Budai se surpreendeu ao ver que, mesmo após aquele golpe, a criatura ainda estava viva. 

Olhou de relance para o exército. E então percebeu. 

Alguns mortos-vivos desabaram, os corpos tornando-se inertes. Ao mesmo tempo, vários vermes comuns, antes espalhados pelo campo, se retorceram violentamente e esvaiam-se ao vento. 

Budai apertou os olhos. 

Então é isso — murmurou. — Vocês compartilham suas “vidas”. Uma colônia viva. Cada morte de vocês dois... eles morreram em seus lugares. A menos, que não haja mais nenhum deles.

O corpo de Yong estremeceu. A cabeça começou a se regenerar, os ossos se rearranjando, a pele se refazendo. E a rainha, esguia e odiosa, arrastou-se de volta para dentro de seu crânio. 

Ainda que seja um Herói — rugiu Yong, arfando, com a voz reverberando não apenas dele, mas também da criatura em sua cabeça —, você não vai me matar antes que eu infecte... cada maldita ser humano... daquela cidade. 

Seriam aquelas palavras dele? Ou da rainha? 

Budai não se abalou. Apenas respirou fundo. 

Se eu estivesse sozinho... talvez fosse verdade — Apertou os punhos, fazendo sua própria aura vibrar em ondas douradas. — Mas você esqueceu do maior poder da humanidade, Rato. 

Deu um passo à frente, a sombra dele se alongando, recortada pela luz do Sol poente. 

Somos uma espécie que sobreviveu porque caminhamos juntos. Construímos cidades, sociedades, leis... Um sistema onde o mais fraco encontra força no outro. Evoluímos não pela sorte, mas pelo esforço conjunto. 

Os olhos de Yong estreitaram. Seus dentes cerraram. 

Vocês... — Cuspiu. — Vocês humanos roubaram. Pilharam as espécies deste continente. Roubaram nosso lar, nossas florestas, nossos recursos... e quando chega nossa vez, somos os vilões? 

Seu corpo tremeu. A rainha parecia amplificar seu ódio. 

Não... Estamos apenas restaurando a ordem natural. 

Budai não desviou o olhar. 

Talvez... você não esteja completamente errado — Sua voz carregava uma tristeza honesta. — Mas eu não luto pelos humanos de ontem. Eu luto por um amanhã melhor. Onde sejamos mais do que fomos... Onde possamos ser mais do que nossas falhas. 

Por um segundo, o silêncio pairou. 

Os pecados da sua espécie nunca serão esquecidos, Herói — Yong cerrou o cajado. — Vou matar... cada um de vocês. Até que não reste mais NINGUÉM. E se não for eu... outro tomará meu lugar. 

Que seja— respondeu Budai. 

O Herói avançou, veloz como um raio. 

CRACK!  Um soco direto na garganta de Yong, esmagando sua traqueia. 

O Rato caiu de joelhos, arfando, salivando, agarrando-se ao próprio pescoço em desespero. 

Quando ergueu os olhos viu o Sol. De pé. Com o luz solar atrás dele, moldando sua silhueta. 

Que venham todos os Ratos e todas as Sombras que ousem se levantar contra nós — As mãos do Herói se fecharam. Sua aura explodiu em chamas douradas, cristalinas, quase sólidas. — QUEIMAREI TODOS VOCÊS COM O PODER DA MINHA LUZ! 

FWHOOOOOOOSH!  A energia rasgava o ar ao seu redor. 

Yong, trêmulo, ergueu o cajado. 

BOOM!

Dezenas de raízes brotaram, rasgando o solo, perfurando em todas as direções, como lanças, tentando atravessar Budai por todos os ângulos.

Budai saltou para escapar.

Em sua queda, girou o corpo, concentrando sua Essência em seus membros. 

Pronto para enfrentar aquele grande mal.

Ao mesmo tempo... 

O exército dos mortos-vivos avançava, em fúria, contra a linha de defesa de Erina. 

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