Volume 1 – Arco 5
Capítulo 52: O Sol
Dentro da grande torre de Zudao, Budai estava crucificado.
Uma piada cruel. Alguém que pregava a filosofia e o fim das religiões estava prestes a se tornar vassalo de um autoproclamado santo.
Diante dele havia um poço. Sua profundidade era impossível de medir. A luz sequer atravessava sua borda, consumida por uma escuridão absoluta. Um buraco que parecia, de fato, não ter fundo.
Zudao estava ao lado dele, passando os dedos lentamente pelas bordas como quem acaricia algo precioso.
— Isso nem sempre esteve aqui, sabia? — disse ele, com um sorriso sereno. — Originalmente, esse poço ficava nos esgotos de Shenxi. Eu... não entendi ao certo o que ele fazia lá, nem qual era seu propósito— Seus olhos brilharam. — Até eu ouvir o Seu chamado.
Budai estava tonto. O sangue que escorria de suas mãos e pés, perfurados pelos grandes pregos, formava uma poça sob ele. Sua respiração era curta, entrecortada. Mantinha-se acordado apenas por pura força de vontade, e orgulho.
— Infelizmente — Continuou Zudao —, eu era fraco demais para receber seu presente. Mas ele viu algo em mim. Algo útil: ambição. Então, me apresentou sua fiel companheira. Ela havia recebido seu dom, embora tenha ficado debilitada logo depois.
Seus olhos se perderam no vazio do poço, quase em êxtase.
— Ela era magnífica. Capaz de gerar incontáveis filhos a partir do próprio corpo. E assim, eu permiti que ela habitasse em mim. Juntos, traríamos o paraíso para os humanos, e seus filhos.
— Hah... — Budai sorriu, cuspindo sangue. — É claro que você também tem um verme na cabeça...
Sua aparência oscilava. Seus músculos definhavam, os ossos ficavam visíveis. E então, num esforço, sua carne se regenerava, tentando manter a juventude. Sabia que se sua mente cedesse, envelheceria em segundos. Morreria.
SCCREEEEE! Um chiado horrível ecoou de dentro do poço.
— Shh... sh, sh, shh... — Zudao acalmou, acariciando as bordas. — Não falem assim perto das minhas crianças...
— É isso que elas são... goste você ou não.
— Não, não... você está enganado. Elas são crianças. E, como todas as crianças, um dia vão crescer. E você — Olhou para Budai com um sorriso sereno —, vai ajudá-las nesse caminho.
Um verme começou a emergir do poço. Era maior que os outros, chegando até a altura do próprio Zudao. A criatura se enrolou ao redor do seu pescoço, como um animal carinhoso, roçando a pele enrugada do velho.
— Como você... — Budai apertou os olhos. — Como conseguiu fazer tantas pessoas acreditarem que "isso", fosse um deus?
Zudao deu um sorriso melancólico.
— Me diga você — respondeu, inclinando a cabeça. — Como um Herói, reconhecido, reverenciado, permaneceu sozinho todos esses anos? Mesmo depois de construir um templo capaz de abrigar centenas?
Budai abaixou a cabeça. Seu peito doía mais do que os próprios pregos.
— A resposta, não poderia ser mais óbvia. Humanos... estão sempre procurando uma resposta ilógica para as questões da vida. Você ofereceu a verdade. Eu, ofereci... esperança.
— Mentiras — Cuspiu Budai.
— Exatamente aquilo que eles querem — Sorriu Zudao. — Eles precisam de alguém que os guie. E esse será o meu papel.
Com passos calmos, se aproximou do Herói crucificado. O verme se deslocou, deslizando pela madeira, subindo primeiro pelos pés ensanguentados de Budai, depois pelas pernas, contornando o peito, até alcançar seu rosto.
Ficou ali, imóvel, encarando-o.
— AGH! — Budai se contorceu, puxando os braços, mas os pregos nem sequer se moveram. — Você é patético, Zudao! Aquelas pessoas só queriam sair da cidade! E você... Você as matou! E depois ainda usou seus ensinamentos pra manipular e amedrontar Shenxi!
— Até onde me lembro — Zudao sorriu —, nada daquilo teria acontecido se você não tivesse se atrasado.
— EU NÃO ME ATRASEI! — Budai gritou, com ódio. — Você chegou antes! Eles... eles só estavam lá antes do combinado... eu... — Sua voz falhou ao ver o verme se aproximando cada vez mais.
Zudao ergueu a mão, impedindo sua criança de adentrar na cabeça do Herói.
— Então, como recompensa — disse, com um sorriso largo —, pelos seus séculos protegendo a humanidade... vou revelar o meu maior segredo.
Seus olhos miraram Budai. Sua expressão mudou. Seu rosto parecia despencar. A pele começou a se soltar, escorrendo como cera derretida.
— O quê... — Budai arregalou os olhos, horrorizado.
Zudao levou as mãos ao próprio rosto, começou a arrancar a pele. A carne viva apareceu, latejante, pulsando, até lentamente se regenerar.
O rosto que surgiu não era de Zudao.
Budai ofegou. Sua expressão, um misto de surpresa e decepção.
— Yong... — sussurrou, como quem viu um fantasma.
— Impressionante, não é? — respondeu o jovem, sorrindo com o entusiasmo de um adolescente. — Eu enganei Zudao, enganei Feng, Lian... e até você! Eu enganei todos vocês!
— Mas... por quê? — Budai lutava para entender, a voz quebrada. — Eles eram seus amigos... TODOS ELES!
O sorriso de Yong se desfez. Seus olhos se estreitaram, tomados por uma raiva antiga, acumulada.
— Sabe o que é mais valioso do que amigos? — perguntou, trincando os dentes. — Uma família.
A raiva transbordou.
— Eles estavam se tornando isso. Uma família. E sabe onde eu ficaria? Em lugar nenhum! Não haveria espaço pra mim. Eu seria... esquecido. Substituído. Descartado — Seus olhos brilharam, insanos. — Mas agora... agora eu tenho uma família! UMA GRANDE FAMÍLIA! — Abriu os braços, apontando para o poço — E eu sou o pai. E você, Budai... vai fazer parte dela também.
Com um gesto sutil, o verme voltou a se mover.
— NÃO... NÃO, SEU DESGRAÇADO, NÃO...!!
Mas era tarde.
O verme se enfiou violentamente pela narina de Budai.
— AAAAAGGGHHHHHHHH!! — Os gritos foram tão altos que ecoaram por toda a torre.
Budai se contorceu, puxando os braços até rasgar parte da carne. Seu corpo tremia, seus olhos reviravam. Sangue jorrava do nariz, dos ouvidos, da boca.
E então... o silêncio.
Seu corpo pendeu, mole. Desmaiado.
Yong fechou os olhos, saboreando cada segundo ao sentir que o Herói estava, enfim, sob seu controle.
— Isso é... incrível! — Arfou, extasiado. — Nunca pensei que pudesse ter domínio sobre alguém tão poderoso! — Seus olhos se estreitaram. — Mas o que é isso? — Sorriu, irônico. — Parece que nosso monge tem um tumor no cérebro. Vamos remover isso.
Através do verme, Yong controlava tudo. Não apenas os movimentos, mas também a regeneração, a cura, até mesmo doenças ocultas se tornaram visíveis a seus olhos.
— Budai... abra os olhos.
O Herói obedeceu.
Seus olhos eram agora poços negros, tão escuros que pareciam não existir.
Yong sorriu, satisfeito.
— Agora, preste atenção — Se inclinou. — Ouvi dizer que vocês, Heróis, possuem um código. Um mantra. Algo que amplifica sua força. Estou certo?
— Sim — respondeu, sem emoção.
— Então recite — Os olhos de Yong brilharam — Quero vê-lo no ápice... No auge absoluto da sua força!
E ele o fez:
“Sob a proteção do Sol que me guia,
Deixo para trás toda dúvida sombria.
Ainda que apenas seu brilho eu reflita,
Como a Lua na noite, minha força habita.
E para cada Rato ou Sombra a me desafiar,
Com o poder da minha Essência os farei lamentar.”
Assim que a última palavra foi dita, o corpo inteiro de Budai explodiu em luz dourada.
Yong cambaleou, sentindo a energia crescente do Herói invadir até suas próprias veias através do verme.
— ISSO! AHH... ISSO... É PODER!! — gritou, extasiado, quase fora de si.
Quando o brilho cessou, Budai estava renovado. Sua aparência agora era de um jovem de vinte anos. Nem barba, nem cabelo longo, apenas músculos definidos e pele sem uma única imperfeição.
— Agora... — Yong segurou o próprio corpo, trêmulo de excitação — Ninguém mais poderá me deter!
De repente, um arrepio subiu por sua espinha. Algo estava errado.
— Impressionante... — disse Budai. Sua voz tinha emoção.
Yong congelou. Percebeu, apavorado, que não sentia mais o controle. Nada. Nenhuma conexão. O elo tinha sumido.
— Admito que, por um segundo, fiquei preocupado — Budai sorriu, abrindo e fechando os punhos. — Só não achei que você fosse ser tão idiota ao ponto de me fazer recitar nosso mantra. — Seus olhos dourados arderam. — Afinal, ele é um código exclusivo para Humanos. Não funciona com Ratos como você.
Sem esforço, Budai puxou os braços e pernas, arrancando os pregos de sua carne. Sua pele se regenerou na mesma hora.
— Se não se importa... — Seus cabelos cresceram rapidamente, formando um coque, e a barba voltou a preencher seu rosto. — Eu prefiro assim.
A aparência envelheceu, sua força permanecia no auge.
Yong arregalou os olhos, suando frio. Agarrou seu cajado e ergueu-o. De sua ponta, raízes se retorceram, transformando-se numa lança, disparando direto contra o coração do Herói.
CRAAC!
Com um simples toque do dedo, Budai parou o ataque.
Toda a madeira se desfez, as fibras se pulverizaram, até mesmo o cajado rachou, restando apenas a joia em sua ponta que caiu rolando pelo chão.
Yong se abaixou, tentando pegá-la. Antes que percebesse, um soco esmagou seu rosto. Seu corpo voou como um boneco de pano, esmagando-se contra a parede.
"SETENTA? Ele me matou SETENTA vezes?!", o pensamento de Yong era um grito desesperado.
— "Setenta mortes"... — respondeu Budai, lendo sua mente. — Com apenas 30% da minha força. — olhou para o próprio punho, apertando-o. — Estou mesmo... no meu ápice.
Yong se arrastou até a porta, apavorado.
— HOMENS! VENHAM! AGORA!! — gritou, usando a voz de Zudao.
Tentou abrir.
BANG!
O próprio crucifixo em que Budai estava antes voou, esmagando a porta, selando a saída.
Estava preso.
— Agora sim — Budai sorriu, seus olhos queimando como sóis. — Está vendo, Yong? Este é: Budai, o Iluminado! — Abriu os braços. — Uma mente ativa... em um corpo ativo!
Sem dar tempo, avançou. Agarrou Yong pelo pescoço como se fosse uma criança. Sem cerimônia, o lançou direto para dentro do poço.
— Vamos iluminar um pouco as coisas por aqui.
Deu alguns passos para trás, flexionou os joelhos e saltou, mergulhando no poço.
Seu corpo brilhou, transformando-se numa estrela cadente.
Durante a queda, seus olhos captaram tudo: o poço era muito mais do que um buraco. Parecia atravessar a própria crosta do mundo. Lá embaixo não havia água, havia um mar vivo, pulsante, fervilhando.
Milhões de vermes.
Cada um se contorcendo, empilhando-se, mordendo, reproduzindo. Uma colônia inteira. Uma cidade inteira.
Não importava.
Sua luz aumentou. O dourado se transformou em branco absoluto, como um segundo Sol sendo parido nas entranhas do mundo.
O poço, antes negro, se tornara pura luz.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios