Volume 1 – Arco 5
Capítulo 51: Decisão
Erina e Xin ainda estavam ajoelhadas no topo da muralha, abraçadas, compartilhando um raro momento de paz. Pela primeira vez em muito tempo, ambas se permitiam um instante de conforto.
A cavaleira sentia-se completa. Havia conquistado mais do que uma subordinada, tinha ao seu lado alguém de quem verdadeiramente gostava. Libertar Xin não fora apenas um ato de justiça, fora um ato de amor, de proteção.
Xin, por sua vez, sentia algo que jamais imaginara. Sua liberdade, antes um sonho distante, agora parecia pequena quando comparada ao carinho, à aceitação e à tranquilidade que encontrara naquele grupo e, principalmente, nos braços de Erina.
Mas o mundo não pararia apenas para que desfrutassem daquele instante.
— Perdão, Erina — chamou Takashi, a voz interrompendo suavemente o silêncio. — Acho que era essa movimentação que você quis dizer, não é?
Erina se desvencilhou do abraço, levantando-se com um suspiro, caminhou até a beirada da muralha, onde o arqueiro apontava.
Lá embaixo, a divisão de Kenshiro estava perseguindo Jonas. Corriam desordenados pelas ruas, derrubando barracas, assustando civis, causando um tumulto generalizado. O oficial, desajeitado, corria em direção ao portão da cidade, tropeçando e se esgueirando entre becos.
Dificil acreditar que nenhum deles houvesse conseguido alcançá-lo.
Ao ver aquilo, Erina compreendeu imediatamente. Sorriu de lado, satisfeita. Já sabia qual decisão Kenshiro havia tomado.
Então, voltou-se mais uma vez para sua amiga. Segurou-lhe as mãos com firmeza e, olhando-a nos olhos, disse: — Xin, eu lhe prometo: Zudao pagará pelo que fez a você e sua à cidade.
Sem dizer mais nada, Erina caminhou até a beirada da muralha. Parou. Inspirou. E então, no exato momento em que Jonas se aproximava do portão... saltou.
Simplesmente se jogou.
Seus dois subordinados observaram a cena, impassíveis. Nenhum dos dois pareceu se surpreender. Pelo contrário, havia até certo tom de comédia naquilo, embora não conseguissem formular nenhuma piada no momento.
— Quer... sua capa e sua máscara de volta? — perguntou Xin, quebrando o silêncio.
— Pode ficar — respondeu Takashi, apoiando-se no arco, enquanto observava Erina cair. — Não preciso mais deles.
Xin não percebeu, mas Erina, no instante daquele abraço, havia curado suas cordas vocais.
***
Kenshiro e seu grupo perseguiam Jonas pelas ruas. O oficial estava a poucos metros do portão, tropeçando e esbarrando em barracas, desesperado por escapar.
Foi quando...
BAM!
Algo pesado caiu sobre ele.
Uma nuvem de sangue explodiu no impacto, espalhando pedaços de carne e vísceras pela rua. As paredes, o chão e até os mercadores próximos foram tingidos de vermelho. A própria armadura de Erina parecia agora pintada de escarlate, pingando sangue fresco.
O que restou de Jonas mal podia ser chamado de corpo.
Erina o segurava pelos cabelos, levantando o que sobrou.
Parte da mandíbula havia se soltado e pendia frouxa. Do umbigo para baixo nada restava, exceto uma cascata de intestinos escorrendo. Seu braço esquerdo estava arrancado, jogado em algum lugar atrás dela; o direito, embora ainda preso, estava destroçado, com os ossos atravessando a carne.
— Ele ainda tá vivo? — perguntou Kenshiro.
Erina chacoalhou o pedaço de carne. Uma sequência de gemidos abafados escapou.
— Sim.
Zhen olhou ao redor, preocupado. Pessoas começavam a se aglomerar, guardas se aproximavam; não pareciam dispostos a intervir.
— Devemos levá-lo pra algum lugar mais privado — sugeriu, tenso.
Erina lançou um olhar gélido na direção dele.
— Não. Quero que toda a cidade veja isso.
A chegada de Takashi e Xin marcou o início do interrogatório.
Erina balançou Jonas mais uma vez, estapeando seu rosto deforme.
— Vamos, vamos... acorda, seu merda.
Os olhos inchados e cobertos de sangue se abriram, tremendo. Por alguns segundos, ele pareceu perdido, até perceber onde estava. Seus olhos arregalaram-se num misto de choque e agonia.
Mas então... Ele sorriu. E logo começou a gargalhar.
— Hah... HAHAHAHAHAHAHA! — A risada, rouca, cheia de bolhas de sangue, percorreu as ruas, deixando todos, civis, soldados e até membros do grupo, desconfortáveis.
— Seus pobres coitados, não conseguem ver?! — Cuspiu ele. — Minha fé em meu Deus... minha fé em Zudao... me protege da dor! A dor não me toca! Vocês não arrancaram nada de mim!
O olhar de Erina apertou, transbordando desprezo.
Houve um breve silêncio. Um silêncio que parecia segurar a respiração de toda a cidade.
E então...
— AAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!!!
O grito rompeu o ar.
— Oh... Me desculpe... — A voz de Erina soou como veneno puro, um sussurro sádico. — Por acaso... o fim da minha magia fez a dor voltar? — Ela apertou ainda mais o queixo destruído de Jonas. — Seu “Deus” me parece tão... falso. Mas se você quer tanto acreditar nele...
Jonas se debatia, ou melhor, se tremia, já que não havia muito corpo para reagir.
— N-NÃO! POR FAVOR! FAÇA A DOR PARAR!! — implorou, chorando, babando, arfando, afundado num poço de desespero absoluto.
Erina respirou fundo. Suavemente, sua magia voltou a anestesiar a dor dele. Jonas relaxou, arfando pesado, soluçando.
— Agora escute bem — A voz de Erina se tornou uma lâmina gelada. — Você já está morto. A única escolha que te resta é como serão seus últimos momentos. Quer uma morte rápida? Ou prefere sentir cada segundo do inferno antes de chegar lá?
Jonas soluçou, olhos marejados, respirando com dificuldade.
— O que... o que vocês querem?
— Zudao. Budai. Shenxi — respondeu Erina, impassível. — Quais são os planos do seu mestre?
As pessoas se amontoavam cada vez mais. Curiosidade, medo, horror. Nem mesmo os guardas, enrijecidos, de mãos nas lanças, ousavam fazer qualquer coisa.
— Minha... minha santidade... — gaguejou Jonas, tentando reunir forças. — Zudao... não quer fazer mal a ninguém... nem ao Herói... nem a vocês... — Sua boca se retorceu num sorriso febril. — Ele só quer... levar todos... todos... até Deus... criar o paraíso... sob Sua orientação... AAAAAAARGH!!! — gritou, quando Erina desfez o feitiço mais uma vez.
— A dor só vai aumentar... se você continuar me enrolando — rosnou.
— Ele quer Budai como aliado! — disparou Jonas, desesperado.
— O QUÊ?! — Todos do grupo exclamaram ao mesmo tempo.
— Isso é impossível... — disse Kenshiro, estreitando os olhos.
— Não é... não é não! — respondeu Jonas, rindo entre soluços. — Assim como fizemos com o seu orc... quando Budai ver Deus... ele também se curvará... e fará tudo que Zudao quiser...
Aquele pensamento paralisou a todos.
O medo não estava mais apenas no rosto dos civis. Estava no olhar dos guardas e do grupo.
E Jonas percebeu. Ele sentiu. E riu.
— Agora vocês entendem, não é...? — Cuspiu sangue. — Não há escapatória. Não existe saída pra nenhum de vocês...
Erina, sem expressão, deixou que a dor voltasse ao corpo mutilado dele.
Mas Jonas não gritou.
Ele apenas respirou fundo e sorriu, mesmo com a mandíbula pendurada.
— Não adianta... eu já tô acabado mesmo... — sussurrou. — Só é uma pena... que eu não vá viver o suficiente... pra ver vocês... morrerem... nas mãos... do Herói que tanto veneram...
Erina estalou o pescoço, como quem se livra de um peso.
— Já me cansei da sua voz. — puxou Jonas, estendendo-o à frente como um saco de lixo.
— Eu também — respondeu Kenshiro, sacando a lâmina.
— Então... eu irei na frente... — sussurrou Jonas, com seu último suspiro. — Tenham... uma boa morte... todos vocês...
SHINK!
A cabeça, ou o que restava dela, foi separada com facilidade.
O corpo desabou no chão, espalhando mais uma vez um mar de sangue e restos.
Por alguns segundos, ninguém disse nada.
Takashi quebrou o silêncio: — Vocês acham mesmo que é possível? Dominar um Herói?
Gurok respirou fundo, cruzando os braços.
— Quando foi comigo — Sua voz falhou por um instante —, eu não pude fazer nada. Nenhuma força de vontade é suficiente. É só uma questão de tempo.
— Sim — confirmou Xin, com um olhar vazio, frio. — Aquele verme... assume o controle, tão profundamente, que pode até criar votos de servidão. O voto nunca foi com Zudao... era com o verme. Mas como Zudao controla o verme...
Zhen apertou os olhos, tenso.
— E meu pai está debilitado. A demência atrapalha sua mente. Se fosse o Herói de antes, talvez, mas agora — Balançou a cabeça —, não tenho tanta certeza.
Kenshiro apertou os punhos.
— Não conseguiríamos vencê-lo nem que fosse um bebê que não sabe engatinhar. Isso... isso não pode acontecer!
E foi nesse instante que Erina parou. Seus olhos se arregalaram, como se uma peça esquecida do quebra-cabeça finalmente tivesse se encaixado.
— Esperem! O Sol. Na Crônica, o Sol representa os Heróis e a humanidade. Aquele momento em que o Sol brilhava, lutando contra aquele ser... Podia a gente tentando impedir que Zudao dominasse Budai.
O choque percorreu todos.
— Se esse é o caso, não podemos perder mais tempo! — exclamou Zhen.
— Aaaagghhh... — um grunhido abafado soou atrás deles.
Ao se virarem, o choque foi imediato.
Jonas estava de pé novamente.
Seu corpo havia se reconstruído, as partes se juntaram de forma grotesca, ainda que as marcas das separações permanecessem visíveis, cicatrizes escuras, pulsantes, queimando como carvão em brasa. Sua pele agora era de um tom púrpura doentio, e de seus olhos, boca e narinas escapavam finas filetes de fumaça, como se estivesse queimando por dentro.
— Um morto-vivo! — disse Sebastian, arregalando os olhos.
— Para trás! — ordenou Zhen, avançando rapidamente. Tocou a testa do cadáver e executou o mesmo encanto que havia usado em Gurok. — Liberar!
Sua mão brilhou intensamente.
Jonas simplesmente virou a cabeça, encarou-o e avançou, buscando cravar os dentes podres no braço do monge.
SHINK!
Duas lâminas brilharam. As mãos do morto foram decepadas antes que o mordesse.
Zhen foi puxado para trás, protegido por Erina e seu escudo.
— Isso não faz sentido... Deveria ter funcionado! — gritou ele, frustrado.
Embora não estivesse verdadeiramente enfraquecido, tanto o templo quanto seu pai eram fundamentais para que seus encantamentos alcançassem força suficiente para romper maldições como aquelas.
— “As regras não são iguais entre os mortos” — respondeu Erina, citando as palavras de seu antigo mestre.
— Perfurem o coração e cortem a cabeça! — ordenou Sebastian, experiente no assunto.
Takashi já puxava a corda do arco. A flecha voou, precisa, cravando-se no coração. Ao mesmo tempo, Kenshiro girou sua lâmina, decapitando-o.
O corpo não caiu.
Começou a inchar, inflando como um odre prestes a explodir.
Foi Erina quem percebeu o que estava prestes a acontecer.
— MERDA, AFASTEM-SE!
THUUM-CRAAASH!
Num único chute, ela lançou o cadáver inchado contra o portão de madeira. A estrutura cedeu em estilhaços.
BLORCH!
O corpo estourou, espalhando uma fumaça roxa espessa que cobriu toda a ponte.
Erina avançou, ergueu o escudo e estendeu um braço para o lado.
— Não se aproximem! — ordenou, com voz firme.
Um som cortante irrompeu da fumaça.
SCCREEEEE! Agudo, metálico, como o grito de um ferro em brasa rasgando carne.
Quando o nevoeiro púrpura começou a se dissipar, a visão ficou clara: dezenas de vermes.
Maiores, mais longos e mais resistentes do que os que haviam dominado Xin e Gurok. Não se desmanchavam. Eles se contorciam, farejando, buscando.
Bastou enxergarem as pessoas, e imediatamente começaram a rastejar na direção delas, rápidos, agressivos, frenéticos.
O pânico tomou conta.
— AAAAAHHH! — gritaram os civis, correndo em todas as direções.
Os guardas ergueram escudos e apontaram lanças.
O grupo de Erina já se posicionava. Sabiam que, se ao menos um deles dominasse alguém, estariam todos condenados.
Os vermes saltaram.
— Malditos... sabem que são mais difíceis de acertar no ar! — rosnou Kenshiro, já cruzando as espadas.
Mas antes que alcançassem qualquer um...
FWHOOSH!
Uma parede de fogo surgiu diante de Erina, engolindo todos os vermes.
As criaturas queimaram, retorcendo-se, soltando chiados horríveis, até não restar nem cinzas.
— Obrigado, Kaji, — disse Kenshiro, respirando aliviado.
Kaji, em sua forma de combate, surgiu da lateral, passos pesados, olhar atento. Havia permanecido à margem da cena, esperando o momento certo para intervir.
— Estou sempre ao seu dispor — respondeu, com reverência.
Erina então ficou pálida. Seus olhos se arregalaram.
— É isso... — Sua voz tremeu, tomada por um medo genuíno. — É isso que Zudao planeja! Se o hospedeiro morre, essas coisas se multiplicam. E só o poder dos monges pode impedir.
— E eu não estou forte o suficiente — Acrescentou Zhen, decepcionado consigo mesmo.
— Se ele dominar Budai — Continuou Erina —, ninguém será capaz de detê-lo.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Todos entenderam. O terror os atravessou.
— Vamos! — ordenou, recuperando a firmeza.
Antes de partirem...
— Esperem! — gritou um dos guardas. — Por favor, deixem-nos ir com vocês!
Kenshiro ergueu uma sobrancelha.
— Acha que pode ajudar a impedir os planos do seu senhor? — questionou, cético.
— Ele não é meu senhor! — respondeu o guarda, com um tom quase ofendido. — Aceitamos esse trabalho para proteger nossas famílias!
— Não será necessário. Daremos conta — disse Erina, seca.
— Não é isso — Insistiu o homem. — Se ficarmos aqui, colocaremos todos em perigo. Para sermos admitidos como soldados, fomos obrigados a beber um líquido estranho de olhos vendados.
O olhar de todos imediatamente se voltou para Gurok.
— Então... todos vocês... — Kenshiro apertou os olhos, tenso.
— Sim! — responderam os soldados em uníssono. Alguns com vergonha, outros com medo.
Erina respirou fundo.
— Está bem — Sua voz soou mais grave, mais firme. — Escutem bem... todos vocês.
Os soldados se agruparam, atentos.
— É a primeira vez que eu lidero tantas pessoas juntas. As regras são simples e já as conhecem: disciplina, lealdade e obediência. Quero que sigam minhas ordens como se suas vidas dependessem disso, pois depemdem. Preciso que vocês cuidem de suas vidas, e principalmente, cuidem um dos outros. Mas acima de tudo, eu preciso que vocês tenham esperança; não pensem que irão vencer, saibam disso.
Hoje lutaremos juntos por um só objetivo: um amanhã. E venceremos, independentemente da quantidade de inimigos. Como sua capitã, é meu dever protegê-los, e isso eu farei. Mas não posso garantir que todos saíam vivos... se não acreditarem em mim.
Não apenas os soldados, mas seus próprios subordinados escutavam-na com atenção.
— Então, todos vocês, abandonem seus medos e suas dúvidas. Elevem a sua coragem e sua força. Sintam em seu corpo, em sua alma... esse não será o nosso fim!
Ao levantar a mão para cima, com o punho fechado, todos os soldados gritaram em euforia. As pessoas, assustadas pelas suas vidas, estavam enfim tendo esperança.
Zhen sentiu algo diferente. Uma energia fluindo, pulsando. Ao olhar ao redor, viu que não era o único. Todos pareciam mais fortes. Mais leves. Mais vivos. Foi quando compreendeu: aquilo não era apenas um discurso. Era a Essência.
Erina, sem perceber, sem treinamento e sem qualquer conhecimento, havia canalizado algo que poucos no mundo seriam capazes de fazer.
Zhen a encarou, perplexo.
“Erina... quem, de fato, é você?”, pensou, com um misto de temor e fascínio.
Erina retribuiu o olhar.
Sem dizer nada, mas perguntando com os olhos: “Posso contar com você?”
Zhen assentiu.
Já havia decidido. Iria segui-la. Até o fim. Fosse por dever, por curiosidade, ou talvez, porque no fundo, já não tinha mais nada além disso.
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