Volume 1 – Arco 5

Capítulo 50: Escolhas Morais

Xin encarava a grande queda diante de si, no topo da muralha de Shenxi. Apesar de ser a menor muralha que já vira em qualquer cidade ou vila, a altura ainda era suficiente para ser fatal — se caísse do jeito errado, não sobraria nada além de ossos quebrados e silêncio. 

— Erina... — A voz de Takashi soou, tensa. — O que estamos fazendo aqui? 

— Vigie as ruas — respondeu ela, fria e indiferente. — Me avise se notar qualquer movimentação suspeita. 

Xin desviou os olhos. Lá embaixo, o reflexo dourado do sol dançava sobre o lago. A brisa soprava suave, tocando sua pele com carinho. Fechou os olhos por um breve instante, aproveitando, talvez, pela última vez. 

— Está na hora da sua entrevista — Erina cruzou os braços, firme. 

A jovem se virou e perguntou, por meio de gestos, sobre as perguntas.

— Não quero saber dos detalhes do seu passado. Não me importo como virou escrava, nem porque escondeu os planos de Zudao. O que eu quero saber — Apertou os olhos —, é se você é confiável. 

Xin respirou fundo. Respondeu que seu juramento anterior fora feito sob ordens de Zudao, seu verdadeiro senhor naquele tempo. E, na visão dela, isso apenas provava que era alguém leal — mesmo nas piores circunstâncias.

Erina arqueou uma sobrancelha.

— Escravos não são leais por vontade, mas por medo.

Xin explicou que qualquer escravo aproveitaria a primeira chance para fugir, mesmo que custasse a própria vida.

Erina assentiu.

— Sim... mas você não fez isso. Pelo contrário — sua voz ficou mais dura —, fez parte do teatrinho do seu mestre. Fez todos nós acreditarmos que queria morrer. 

As mãos de Xin tremeram. Por alguns segundos, não conseguiu responder. Depois, respirou fundo e sinalizou que o desejo ainda existia. Porém, o acolhimento deles a fazia esquecê-lo, na maior parte do tempo.

Erina avançou um passo. Seu olhar cortava como lâmina.

— Se era assim... Se você se sentia bem entre nós, e mesmo assim a morte era uma opção — apertou os olhos —, o que, exatamente, te deu tanto medo? Que tipo de punição te fez... nos trair? 

Xin abaixou as mãos. Queria dizer com sua própria voz. Forçou as palavras a saírem. 

— A... a morte... de todos... os... cida... dãos de Shenxi... — Sua voz era quase um sussurro, quebrada, falha. 

Takashi prendeu a respiração. 

— Se importa... tanto assim com eles? — Erina questionou, sem alterar o tom. 

— Si... cof... Sim. — Tossiu, lutando contra o próprio corpo. 

— Mais do que a própria vida? 

— Sim! — respondeu, com mais força. 

Erina caminhou até ela. Pousou a mão em seu ombro. Não havia conforto no gesto. Apenas frieza. 

— Então... isso significa que eu não posso aceitar você no meu grupo — Sua voz estava vazia. Quase decepcionada. — Me desculpe. 

Xin congelou.

— O... o quê...? — Sua respiração ficou curta, trêmula. — Não... Não... 

— Mas não se preocupe — Erina virou-se para observar as ruas, junto de Takashi. — Não vou matá-la. Você... conquistou sua vida de volta. 

— Mas... cof... cof... — Ela tentou falar, sua garganta falhou. — Eu... eu quero ir com vocês! 

— Você não tem nenhuma utilidade para mim — A sentença veio fria, direta, cruel. 

Xin apertou os punhos.

— Lá... em Altunet... cof... cof... eu... eu... 

— Eu sei o que você fez — A voz de Erina interrompeu, impiedosa. — E não me importa. 

Fechou os olhos por um segundo. Depois virou um pouco o rosto, sem olhá-la diretamente. 

— Eu não posso, e não vou, aceitar alguém que dá tão pouco valor pra própria vida. 

Se aproximou de Takashi, pousando a mão em seu ombro.

— Esse aqui... quase foi expulso — disse, apertando de leve. — Porque não confiava em si mesmo. 

Olhou diretamente para Xin. 

— Ao menos, em Altunet, ele aprendeu a se valorizar. A entender que sua vida tem um preço. E isso... isso é algo que nem eu, nem ninguém, pode ensinar.

Irritada, Xin cansou dos bons modos. Se ser educada não bastava, mostraria sua verdadeira face. 

Erina Waltz... — sua voz subiu, rouca, quebrada, mas firme. — Olhe pra mim. 

Erina não se virou. 

OLHA PRA MIM, SUA VADIA! 

O grito cortou o vento. Até Takashi se assustou. Nunca imaginara ouvir alguém se referir à capitã daquele jeito. 

Erina, no entanto, virou-se lentamente. Não parecia ofendida. Ou zangada. Apenas séria. 

Xin apertou os punhos. As lágrimas já molhavam seu rosto, e, entre gestos e palavras partidas, ela começou a soltar tudo que assombrava sua alma. 

Quer saber por que eu me importo tanto com essas pessoas? — Arfava. — Mais do que comigo mesma? Então escute... escute bem... 

Sua voz falhava, como se cada palavra fosse serrada na garganta. 

Eles... eles já passaram por muita coisa. Muita coisa. E... e fui eu uma das responsáveis.

Deu um passo para frente, respirando com dificuldade. 

Quando Zudao declarou aquele maldito governo religioso, quando virou uma Teocracia... ele selecionou... aqueles que não concordaram. — Apertou o peito, lutando contra a dor. — Lembra da “falta de comida”? Pois é. Segundo ele... era “falta de fé”. 

Abaixou os olhos, apertando os punhos até os nós ficarem brancos. 

Meus pais estavam na lista. Eu... eu me escondi com minha tia. Mas... — respirou fundo, lutando contra a própria garganta. — Mas eu... eu tentei salvá-los. 

Seus olhos tremiam, cheios de um ódio misturado ao desespero. 

Claro que fui pega. Fui presa junto deles... — Sua voz trincava —, naquela maldita torre.

Xin começou a tossir, dessa vez cuspindo sangue. 

Xin... — A voz de Erina suavizou, pela primeira vez quebrando. — Não precisa... 

CALE A BOCA! — gritou, com uma fúria que fez até a capitã dar um passo para trás. 

Respirou fundo, limpou a boca, e prosseguiu, arranhando cada palavra. 

Minha mãe foi a primeira. Enfiaram um daqueles malditos vermes nela... pela boca — Suas mãos tremiam, tentando reproduzir o gesto. — Ele foi descendo... até o estômago. E então... então ela começou a... envelhecer. 

Takashi tentava manter a atenção às ruas. Não conseguiu.

Os cabelos ficaram brancos... depois começaram a cair. A pele... a pele ficou fina, como papel, dava pra ver cada veia... cada osso... — Sua voz falhava mais uma vez — E então ela morreu. Bem na minha frente. O verme... saiu pela boca dela... e se desfez. Como se... como se tivesse terminado o trabalho. 

Xin segurou o peito, ofegante, quase desabando. 

Meu pai... meu pai ficou furioso. E Zudao... Zudao achou isso ótimo. “Sinal de força”, ele disse. — A voz ficou mais rouca. — Enfiaram outro verme nele... mas dessa vez, pelo ouvido. 

Suas pernas tremiam. 

Ele não envelheceu. Mas... — mordeu o lábio, o corpo inteiro tremendo. — Gritou. Gritou como... como eu nunca ouvi ninguém gritar. Os olhos saltaram... os dentes caíram, um a um...  Ele... ele bateu a própria cabeça no chão... até morrer. 

O silêncio que se seguiu foi pesado. Denso. Quase sólido. 

Takashi tremia. As mãos apertadas, o olhar vidrado. Lutava contra as próprias lágrimas, apertando os olhos, mordendo o lábio para não desabar. 

Erina não dizia nada.

E eu... sabe... sabe o que ele fez comigo...? — Tossiu forte, dobrando-se, quase sem conseguir respirar. — N-não... cof... cof... cof... 

Sua voz... simplesmente sumiu. 

Desabou de joelhos, frustrada, socando o chão. 

Erina se aproximou, ajoelhando-se ao lado. 

Não precisa continuar... eu já... 

Xin levantou a mão, negando com um gesto.

Disse que ela precisava saber.

E, sem voz, apenas nos gestos, ela contou o resto. Cada pedaço. Cada cicatriz. Cada dor. 

Erina segurava o choro. Seus olhos, vermelhos, denunciavam que sua máscara de indiferença havia se quebrado. 

Quando terminou... Xin respirou fundo. 

Droga... — Pigarreou, limpando o sangue. — Agora... cof... minha voz tá... cof... um pouco melhor... 

Erina tentou abraçá-la. Xin recusou. Se arrastou pra trás, ficando mais perto da beirada da muralha. 

Erina respirou fundo. Afastou-se um pouco, deixou que ela terminasse. 

Eu não quero piedade — Seus olhos brilhavam, cheios das lágrimas que escorriam. — Eu só... só quero... pagar minha dívida com essa cidade. Com essas pessoas. Eu quero ser livre... livre desse peso... dessa maldição... 

Depois, com uma delicadeza que ninguém esperaria dela, segurou o rosto da jovem com ambas as mãos, fazendo-a encará-la. 

Não há necessidade disso — Sua voz estava embargada. — Eu consigo ver, Xin. Você... você já é livre. 

Sorriu. Um sorriso gentil, sincero, raro. 

E quer saber... você tem uma personalidade admirável. Forte. Bruta... e linda. Estou ansiosa pra ver como vai se comportar daqui pra frente. 

E-eu... — Soluçou. 

Bem-vinda ao grupo, Xin. — Disse, estendendo os braços. 

Por alguns segundos, Xin hesitou. Mas então, largou todo o peso, toda a resistência. Jogou-se no abraço. Forte. Desesperado. Cheio de dor. Cheio de alívio. 

As lágrimas das duas escorriam, misturando-se. 

Xin não se sentia assim desde o último abraço que dera na mãe. 

E, de alguma forma... de algum jeito... estava fazendo isso de novo. 

***

Droga! — disse Zhen, admitindo para si mesmo que não conseguiria se libertar do espadachim. 

Para sua surpresa, Kenshiro simplesmente o soltou. 

HA! HA! HAHAHA! — A risada do orc fazia toda a situação parecer uma piada de mau gosto. 

O que está acontecendo aqui?! — perguntou o monge, irritado e envergonhado, ajeitando as vestes. 

Nossos líderes têm uma estranha mania de nos testar — respondeu Sebastian, cruzando os braços — Foi o que acabou de acontecer com você. 

Um "teste"? Como assim? Então... Xin... 

Ela está segura — disse Kenshiro, guardando suas lâminas. — Erina nunca teria coragem de matá-la, não depois de se apegar tanto. Claro, você não sabia disso. Eu só precisava confirmar algumas coisas. 

Que coisas? — Zhen apertou os punhos. 

Se havia algum motivo plausível pra confiarmos em você. E medir sua força. 

E como eu me saí? 

Kenshiro sorriu, de canto. 

Não esperava que nosso grupo tivesse dois “casais”. Mas laços amorosos costumam ser tão fortes quanto os de amizade. 

N-NÃO SOMOS UM CASAL! — retrucou Zhen, ficando vermelho. 

Mas gosta dela — disse Kenshiro, impassível. 

Eu... — Travou. 

Não adianta esconder — disse Gurok, divertido-se. 

Qualquer um consegue perceber — Completou Sebastian, rindo. 

Kenshiro, voltou ao tom sério: Isso basta. Pelo bem da Xin, você será leal. Tão leal quanto qualquer um de nós. Quanto à sua força... 

O que tem ela? — perguntou Zhen, cerrando os olhos. 

Achei que seria um dos fortes. Me provou ser tão fraco quanto Takashi, e tão temperamental quanto Gurok. Como isso é possível? 

Zhen respirou fundo, tentando não se exaltar. 

Nós, monges, não possuímos uma força constante. Ela varia conforme nosso ambiente, humor e estado de espírito. Por isso nos mantemos reclusos nos templos; é onde estamos em equilíbrio. Onde nossa força se manifesta no auge. 

Kenshiro cruzou os braços, pensativo. 

E o que faremos com você? Somos viajantes, não um templo ambulante. 

Zhen não respondeu. Apenas socou, com força, a parede onde antes Kenshiro o prendera. A pedra rachou, simplesmente desabando, abrindo um buraco. 

Agora que sei que Xin está segura, nada mais afeta meu humor e meu espírito — Disse, olhando para os próprios punhos. — Posso não estar no auge, como ao lado do meu pai, mas não estou tão inútil quanto imagina. 

Kenshiro sorriu, satisfeito. 

Espera — interrompeu Sebastian, franzindo a testa. — Seu pai... aumenta sua força também? 

Qualquer pessoa que utilize a Essência fortalece os aliados ao seu redor — explicou Zhen. — No nosso caso, os monges, a Essência é tudo. É nossa principal arma. Nossa alma. 

Seja como for — Kenshiro balançou a cabeça, respirando fundo —, dentro de dez minutos, estaremos entrando, mais uma vez, em guerra contra outra Cidade-Livre. A menos que partamos agora. Tem mesmo certeza de que seu pai dará conta de Zudao? 

Ele é um Herói. E passou toda sua vida se preparando pra esse conflito. 

Kenshiro estreitou os olhos. 

Ninguém, nem mesmo um Herói, pode prever todas as variáveis. Existe, sim, uma possibilidade em que ele perde. E se isso acontecer, você sabe o que Zudao fará com essa cidade. 

Zhen cruzou os braços. 

E isso, honestamente, tenho certeza de que não te importa. Independentemente do destino de Shenxi... o importante é essa jornada e...

Ah, para com isso! — rebateu Kenshiro, impaciente. — Sei que sua força voltou, mas não precisa vestir essa máscara de monge sereno agora. Volte a agir como um ser humano qualquer! 

E o que você quer, então? — Zhen apertou os dentes. — Que eu me ajoelhe? Que eu implore? Que me humilhe? 

SIM! — respondeu Kenshiro, sua voz ecoou forte, surpreendendo até seus próprios aliados. — Quero que você implore. Que chore. Que esperneie. Que demonstre que você se importa! 

Ele respirou fundo, apertando os próprios punhos. 

— Eu quero... — Sua voz baixou um pouco. — Preciso de uma orientação. Preciso saber o que fazer agora.

Fez uma pausa, olhando para os próprios pés, depois ergueu novamente os olhos, encarando Zhen com firmeza. 

Se Budai vencer... tudo bem. Que seja. Não precisaremos interferir. Mas... se ele perder... significa que Zudao é muito mais forte do que qualquer um imaginava. Forte demais até pra um Herói. E nesse caso, nós seríamos essenciais. 

Seus olhos ficaram sombrios. 

E se Zudao for ainda mais forte do que isso... então Erina e eu teremos que lutar a sério. E se isso acontecer... — Apertou os olhos, a mandíbula tremendo —, atrairemos o pior mal que habita essa terra. E, nesse ponto... não importa mais. Todos nós perderemos. 

A sinceridade crua nas palavras de Kenshiro atravessou Zhen como uma flecha. Pela primeira vez, o monge o compreendeu. Entendeu o motivo daquele homem agir tão friamente. A frieza era sua armadura. Uma carcaça que escondia medo. Insegurança. E, sobretudo, um desejo desesperado de proteger os poucos que amava. 

Era claro agora. Erina fazia exatamente o mesmo. 

Naquele instante, nenhum deles sabia mais como prosseguir. Precisavam da ajuda de quem conhecia os verdadeiros inimigos. De quem sabia da existência, tanto dos Ratos quanto das Sombras. 

Zhen respirou fundo. Seu semblante sereno cedeu. Seu rosto tremeu. Os olhos marejaram. As mãos, antes firmes, agora tremiam. 

Se ajoelhou. Curvou a cabeça até quase encostar no chão. 

Por favor, Kenshiro Torison — Sua voz falhou, trêmula, carregada de desespero. — Eu... eu imploro... — Ergueu o rosto, as lágrimas já escorriam. — Salve Shenxi. Salve meu pai. 

Kenshiro encarou aquele homem e sorriu. Um sorriso sincero. Porque, naquele momento, sentia que finalmente estava fazendo algo digno; algo além da própria jornada.

Estendeu a mão. 

Levante-se — disse, com firmeza. 

Zhen segurou a mão dele, apertando forte. 

No instante em que suas mãos se tocaram, a porta da prefeitura se abriu com um estrondo. 

Jonas surgiu na entrada, ofegante. 

Finalmente vai começar — disse Kenshiro, olhando sério para o oficial.

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