Volume 1 – Arco 5

Capítulo 49: Feridas Profundas

Shenxi era, de fato, uma cidade pobre. Até mesmo pequenos vilarejos possuíam recursos e estruturas mais sofisticadas. 

Com exceção da ponte de pedra — uma obra surpreendentemente robusta —, toda a cidade era feita de madeira. Bastava uma única faísca descontrolada para reduzi-la a cinzas. 

Apesar disso, Shenxi ostentava uma muralha simples, erguida com troncos mal alinhados, permitindo a circulação sobre ela. Duas torres de vigia, toscamente projetadas, tentavam cumprir sua função, mas eram frágeis e desalinhadas. O portão da cidade era bambo, mal posicionado. O vento frequentemente o empurrava, deixando-o entreaberto, obrigando um guarda a permanecer ali o tempo todo, apenas para fechá-lo. 

O grupo atravessava a ponte. E, curiosamente, ela destoava completamente do restante da cidade. Firme, bem projetada, capaz de sustentar o peso da carruagem, de Kaji e de todo o equipamento. Era quase como se toda a competência dos construtores tivesse sido aplicada somente ali.

Mais atrás, Xin caminhava ao lado de Zhen. Não trocaram uma única palavra. E não precisavam. A simples companhia bastava, trazendo um conforto silencioso que palavras não poderiam oferecer. 

Enquanto isso, na carruagem, a discussão seguia. 

— Sei o que pensam — disse Kaji, com sua voz rouca, como brasas estalando —, mas devo me opor a essa ideia. Mesmo que minha opinião não conte. 

— Ela é uma traidora — rosnou Kenshiro, sem rodeios. 

— Ela estava sendo controlada — rebateu Sebastian, cruzando os braços. — Vocês sabiam dos riscos. Aceitaram mesmo assim. Não podem culpá-la por não conseguir controlar o incontrolável. 

— Não pode haver exceções — insistiu Kenshiro, firme. 

Erina permaneceu em silêncio. Era ela quem tomaria a decisão final — e todos sabiam disso. 

Mas antes que pudesse decidir, o grupo chegou ao portão de Shenxi. 

Desceram da carruagem, preparando-se para explorar. 

— Você vai ter que ficar do lado de fora desta vez — disse Erina, olhando para Kaji, passando a mão pela crina flamejante do corcel. 

O Servo abaixou a cabeça, em sinal de respeito.  

Madame Erina — sussurrou, com sua voz quente —, faça o que for preciso, pelo bem da jornada. 

O plano exigia que se dividissem. Kenshiro, Gurok, Sebastian e Zhen formaram um grupo. Erina, Takashi e Xin ficaram no outro. 

— Eu sou contra essa divisão — disse Zhen, ajeitando a faixa na cintura —, acho que seria melhor se eu fosse com Erina. 

— E quem iria me guiar pela cidade? — retrucou Kenshiro, lançando um olhar severo. — Vamos logo. 

E assim se separaram. 

O grupo de Kenshiro seguiria para os fundos da cidade, onde os poucos prédios governamentais e administrativos haviam sido escavados diretamente nas encostas da montanha.

Já a divisão de Erina focaria nas áreas próximas da muralha. Ruas simples, casas humildes, onde o povo comum vivia e onde, muitas vezes, informações preciosas circulavam com mais facilidade do que dentro dos salões oficiais. 

***

Sem perder tempo, Kenshiro seguiu em linha reta, abrindo caminho entre as pessoas. Seu foco era claro: chegar aos prédios governamentais o quanto antes. 

Seus subordinados perceberam uma pequena confusão se formando lá atrás, próximo ao portão, onde estava o grupo de Erina. Ainda que a vontade fosse olhar para trás, sabiam que não podiam se dar ao luxo de se dispersar ou se perder de Kenshiro.  

Com desconforto evidente, Zhen apertou o passo, largando a cena às costas. Tinha certeza de que tinha a ver com Xin. 

Sem demora, o monge emparelhou com o espadachim. 

— O que pode me dizer sobre as pessoas daqui? — perguntou Kenshiro, andando rápido, sem sequer olhar para ele. 

— Depende — respondeu Zhen, tentando acompanhar. — O que exatamente quer saber? 

— Não entenda errado — disse Gurok, vindo mais atrás —, o povo da minha cidade era meio... acomodado. Ele quer saber se aqui é o mesmo caso. 

— E o que te faz pensar isso? — Zhen virou o rosto, ofendido. 

— Bem... — respondeu Sebastian, observando atentamente as ruas, as casas e seus moradores. — É da natureza humana querer evoluir e conquistar, mas as pessoas daqui parecem ter simplesmente parado no tempo. 

— Não foram elas — explicou Zhen, cruzando os braços enquanto andava —, foi o governo delas. 

— Se as pessoas permitiram — rebateu Kenshiro, sem qualquer emoção —, então são cúmplices. 

O monge apertou os olhos, pensou em várias respostas possíveis. Mas não precisou dizer nenhuma. Bastou dobrarem a esquina. 

Diante deles, uma cena crua. Dezenas de casas destruídas, esmagadas por raízes gigantescas que se erguiam, retorcidas, como cicatrizes abertas na paisagem. 

O cheiro de sangue velho ainda persistia. As manchas escuras no solo e na madeira eram evidências de uma tragédia recente. Nenhum corpo havia sido retirado. Nenhuma raiz havia sido cortada. As ruínas permaneciam ali como um lembrete cruel. Um aviso claro. 

Kenshiro parou por alguns segundos, contemplando aquilo em silêncio.

— O povo aceita as decisões do seu governo por três razões, espadachim — disse Zhen, parando ao lado. —  Porque são positivas; porque são acomodadas; ou porque não têm escolha. 

Nenhuma pergunta foi necessária. Nenhuma resposta foi dita. A realidade de Shenxi estava exposta diante deles, mais clara do que qualquer palavra. 

— Onde fica a prefeitura? — perguntou Kenshiro, sua voz soando mais pesada, quase um sussurro de arrependimento. 

***

Ainda enquanto atravessavam o portão, foram recebidos por um tomate podre. O fruto voou e explodiu no rosto de Xin, espalhando o cheiro ácido e pútrido que a fez quase vomitar. 

Ela ficou paralisada por um instante, sentindo a polpa escorrer pelos cabelos, pelos lábios, entrando pela boca. Cuspiu o que pôde, limpando o rosto com as mangas. Seu estômago embrulhou. 

Erina segurava seu escudo nas costas. Poderia tê-lo usado. Poderia tê-la protegido. Mas não o fez. E Xin sabia disso. 

Engoliu o orgulho. Engoliu o gosto podre. Engoliu até as lágrimas que ameaçavam brotar. 

Conforme avançavam, as pessoas abriam espaço. Não por respeito, mas por repulsa. Sussurros serpentearam ao redor como lâminas invisíveis. 

— Vendida... 

— Escrava... 

— Traidora... 

Palavras cuspidas com ódio, carregadas de rancor acumulado por anos. 

Takashi apertou os olhos, não suportando mais ver aquilo. Sem pensar duas vezes, arrancou sua capa e sua máscara, entregando-as a Xin. 

— Aqui — disse, cobrindo-a. — Vista isso. 

Não se importou que, ao retirar seus disfarces, sua natureza élfica fosse exposta. Suas orelhas finas, seu rosto pálido e seus traços delicados ficaram visíveis para toda a cidade. 

As roupas ficaram largas nela, mas serviam. Serviam para escondê-la, ao menos, dos olhares. 

Ela agradeceu em sinais, com as mãos trêmulas. 

— O que está acontecendo? — perguntou Takashi, andando ao lado dela. — Por que estão te tratando assim? 

Erina não parou. Não olhou para trás. Não ofereceu nem sequer uma palavra. Apenas seguiu em frente, ignorando tudo. 

Ainda caminhando, Xin respirou fundo e começou a contar. 

Por meio de sinais, explicou que, quando criança, logo após ser marcada pelo voto de servidão, Zudao quis testar os limites de seu poder sobre ela. 

Ele a obrigou a ir até o centro da cidade... nua. E lá, no palco de anúncios, empunhando um chicote, passou uma semana inteira torturando o que restara de sua família — sua tia. 

Seus olhos marejaram. Levou a mão à cabeça, apertando-a, como se quisesse esmagar as memórias. 

Takashi parou por um instante, engolindo em seco.  

— Como... como é isso? Ser uma escrava? 

Ela respirou fundo. Suas mãos tremeram mais do que nunca. Não poderia usá-las.

É... estar viva... dentro de um corpo morto. — explicou, sussurando. — É ter olhos... e não poder chorar. Ter boca... e não conseguir gritar. É ver... ver todos te julgando... te odiando... e só conseguir gritar, dentro da própria mente: “Não sou eu...” 

— E sua tia? — perguntou ele, quase sussurrando. 

Xin abaixou a cabeça, respondeu que os chicotes foram o menor dos males. Sua tia já tinha perdido o filho — um adotivo — e, naquela mesma semana, perdera a irmã e o cunhado; os pais de Xin. 

E, por mais cruel que fosse, sua tia ficou aliviada. Aliviada em saber que Xin estava viva. Escrava, mas viva. 

— E como você conseguiu se libertar? — perguntou, quase sem coragem de ouvir a resposta. 

Ela respirou fundo. Seus olhos perderam o foco por alguns segundos, olhando o nada. 

No último dia daquela tortura, enquanto aguardavam ser levadas de volta ao palco, Jonas aproveitava os intervalos para abusar de sua tia. 

Zudao fora claro: não toque em Xin. Mas nada dissera sobre sua parente. 

Naquele dia Xin não suportou mais. Algo quebrou dentro dela. A corrente invisível cedeu, nem sabia como, e ela atacou Jonas, defendendo sua tia. 

Jonas fugiu. Correu direto até Zudao para denunciá-la. 

Xin, acreditando que estava livre do controle, o seguiu. Queria matar ambos com as próprias mãos. Mas, ao se aproximar, percebeu que ainda não podia ferir o idoso.

O controle não era total. Nem dele, nem dela. 

Zudao entendeu isso. Fizeram um acordo: ela o ajudaria a atingir seus objetivos. Em troca, sua tia jamais seria tocada novamente. E quando ele não visse mais utilidade nela, a libertaria. 

Takashi ficou mudo. Não sabia o que dizer. Nem sabia se podia sentir algo depois de ouvir aquilo. 

Antes que pudesse reagir, um silêncio pesado caiu. Erina havia parado. E se virou. 

Seus olhos não carregavam piedade. Nem compaixão. Só desprezo. 

— No fim — disse, cruzando os braços —, você era leal a Zudao. 

— N-não... eu...

— Não minta pra mim. — Erina avançou, agarrando o braço da jovem com força. — Você sabia dos planos dele. Sabia, não sabia?! 

Xin gelou. O suor desceu frio. Nunca tinha visto Erina assim. Nem no campo de batalha. 

Takashi quase interveio. Quase. Mas sabia que se o fizesse, se colocaria como cúmplice.

Sem saída, Xin assentiu. Uma vez. Duas. A cabeça pesada, quase não conseguindo se manter ereta. 

Confessou saber dos planos. E, mesmo tendo oportunidades, não contou ao grupo. 

Erina apertou o punho. Olhou para o alto. Para a muralha. Seus olhos frios calcularam rapidamente. 

— Venha — Puxou Xin. — Vamos lá para cima. 

A sentença não foi dita. Mas entenderam o que aquilo significava. 

***

O único prédio governamental era a própria prefeitura. Fora construída dentro da montanha. Ao invés de cavarem fundo, decidiram subir pela encosta, abrindo janelas, sacadas e corredores externos que serpenteavam a rocha. 

No topo, uma ampla varanda se projetava, dando visão direta para a sala do governador. 

Ainda que fosse possível escalá-la, Kenshiro ordenou que todos aguardassem do lado de fora. 

Zhen andava de um lado para o outro, impaciente. 

— Qual é o sentido disso? — questionou, cruzando os braços. — Não quer explorar a prefeitura? 

— Tenho meus desejos — respondeu Kenshiro, limpando as unhas —, mas não é o meu objetivo aqui. 

— E qual seria? — Zhen, bateu os braços e encarou o céu. 

— Tudo ao seu tempo, meu caro. 

Gurok e Sebastian cochichavam, olhando discretamente na direção do portão por onde haviam vindo. 

— O que acha que vai acontecer? — perguntou Gurok, cruzando os braços. 

— Não sei — respondeu Sebastian, olhando para baixo, pensativo. — ela sabe o suficiente para colocar o grupo inteiro em risco. 

— Como assim? 

— Ela sabe que estávamos atrás de um Herói, sabe a rota que seguimos, e conhece parte da força dos nossos líderes. Se essas informações caírem nas mãos erradas... eles podem prever nossos próximos passos.

Gurok ficou em silêncio por alguns segundos. A ficha começava a cair. 

Zhen ouviu parte da conversa. Sua expressão endureceu. 

Percebendo isso, Gurok se virou, desconfiado. Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, viu o monge se afastando. 

Ei. Aonde pensa que vai? — questionou Kenshiro, seu olhar afiado acompanhando cada passo dele. 

— Ao banheiro. Por quê? Quer segurar para mim? — respondeu Zhen, sem nem olhar para trás. 

Sebastian sorriu de canto.

— Isso não é exatamente um comportamento exemplar... para um monge. 

— E não foi só isso que mudou — completou Kenshiro, com a voz baixa, puxando uma de suas lâminas com lentidão. 

Num movimento quase invisível, o espadachim encurtou a distância. Pressionou a espada contra o pescoço de Zhen, empurrando-o contra a parede de pedra. 

— Sabe — Sua voz soou como gelo —, não somente seu jeito mudou. Sua força também. 

Seus olhos percorreram o corpo do monge, atento, calculista. 

— O que aconteceu com aquele monge que me derrubou com um único soco? — Sua mão apertou mais a lâmina contra a pele dele. — Aquele que resistiu a um golpe direto das minhas espadas? 

Zhen cerrou os dentes. Suas mãos tremiam, não de medo, mas de frustração. Tentava se soltar. Em vão. 

— Patético — Kenshiro aproximou o rosto, a voz num sussurro. — Vai precisar daquela força de antes... se quiser salvar Xin... 

Não era só uma ameaça. Nem um blefe. Era a verdade crua, nua, cuspida na cara.

Xin estava condenada. E não havia nada que ele pudesse fazer para impedir. 

 

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