Volume 1 – Arco 5
Capítulo 46
A torre, com seus muros de pedra desgastados e janelas sombrias, erguia-se como um símbolo da decadência. As paredes exalavam o odor agridoce do mofo misturado com a fragrância estranha dos rituais obscuros ali conduzidos
Pequenas rachaduras percorriam o solo e as paredes, ameaçando ceder sob o peso dos tempos, mas ao mesmo tempo, era como se a torre fosse mantida em pé por um propósito macabro, algo que desafiava até mesmo a própria lógica do tempo.
No alto dessa construção miserável, Budai estava preso, crucificado em uma estrutura de madeira. Seus braços e pernas eram mantidos firmes por pregos enferrujados que penetravam a carne com brutalidade, dificultando qualquer movimento. Seu corpo tremia de dor e exaustão, mas, surpreendentemente, seu rosto continuava calmo, sereno, refletindo o estado de paz que carregava em seu âmago. Para Budai, aquilo era uma simples passagem, um teste imposto pela vida. Ele sabia que não era invencível, mas sua convicção o fazia transcender o próprio sofrimento. Para ele, dor era uma ilusão; temporária, passageira. Havia uma força interior que mantinha sua consciência centrada, fazendo-o resistir enquanto seu corpo envelhecido estava à beira do colapso.
Os passos de Zudao, reverberando na pedra fria, interromperam o silêncio da sala.
Ao entrar, a figura delgada e ereta de Zudao mantinha uma expressão de desconforto mal disfarçado ao ver Budai, ainda consciente, observando-o com aquele olhar de tranquilidade desconcertante. Era como se a serenidade do Herói zombasse dele, desdenhando de cada palavra e gesto que Zudao planejava.
— Você ainda acredita que pode vencer, não é, Budai? — Zudao falou, sua voz carregada de um sarcasmo ácido. — Ainda acredita que é possível derrotar alguém que tem o favor de Deus ao seu lado? Francamente… eu esperava mais resignação de alguém em sua condição.
Budai apenas observou, seus olhos pacíficos fitando Zudao, quase como se tentasse ver através dele. O vilão, no entanto, não captava a essência daquele olhar; apenas sentia-se subitamente desconfortável, pois sabia que não importava o que dissesse, Budai o encarava como se estivesse vendo algo muito além da carne e dos ossos que o compunham.
Zudao tentou ignorar a calma de Budai e voltou-se para um poço rústico e escuro no meio da sala, com um leve vapor subindo de suas profundezas. De lá, chamou uma enorme centopeia, que rastejou de dentro do poço e subiu pelo corpo dele com uma familiaridade mórbida, enroscando-se em seus ombros. Suas patas finas, quase translúcidas, moviam-se com uma precisão horrível, enquanto ela aguardava instruções, como uma arma pronta para ser usada.
Zudao então se virou para Budai, um sorriso maligno nos lábios.
— Eu admito, Herói… — começou ele, caminhando até a estrutura onde Budai estava pregado. — Por muitos anos, eu temi o seu poder. Mas Deus apareceu para mim e me deu um presente. Ele me deu um poder capaz de fazer com que todos se curvem diante de mim, um poder absoluto que agora eu uso para governar. E tudo o que Ele pediu em troca foi que eu realizasse meu próprio sonho: que eu me tornasse um líder para todos.
Os lábios de Budai tremeram num leve sorriso. Ele conhecia bem aquele tipo de discurso; há muitos como Zudao, homens que interpretam a devoção como um ato de submissão cega. Na sua visão, um líder verdadeiro guiava sem oprimir, mas Zudao era um tirano em todos os aspectos.
— E esses… seres desprezíveis? — perguntou Budai, seu tom frio e carregado de desprezo, indicando a centopeia com o queixo.
Zudao, surpreso com a audácia de Budai, manteve o rosto rígido enquanto tentava não demonstrar sua frustração.
— Eles são filhos de uma pessoa abençoada por nosso Deus. — A centopeia moveu-se com um ímpeto quase possessivo, rastejando sobre Budai, como se as palavras de Zudao a tivessem incitado a agir. — Uma mulher que nunca pôde ter filhos, até se encontrar com Ele. E agora, através de mim, sua prole tem um propósito.
— A mulher estéril foi transformada... nisso? — perguntou Budai com uma calma calculada, sentindo as centenas de patas da criatura arranhando sua pele conforme ela subia. — Você quer controlar esses parasitas no corpo das pessoas, e chama isso de liderança?
O insulto desferido com a tranquilidade de um monge fez o rosto de Zudao se contorcer de raiva. Aquela era sua fraqueza: ele exigia submissão, a convicção de que todos reconhecessem sua superioridade. Para ele, ser desafiado, ainda mais por um prisioneiro à beira da morte, era intolerável.
Zudao então parou, fechou os olhos por um momento, controlando-se. Aproximou-se ainda mais de Budai e a centopeia rastejou até a altura do pescoço do monge, suas patas geladas e finas cravando-se na carne dele.
Budai continuava imperturbável, mesmo sentindo o veneno gélido começar a circular por suas veias. Ele respirava fundo, tentando conter a náusea causada pelo parasita que avançava. Mas, quando Zudao inclinou-se para olhá-lo diretamente nos olhos, o próprio Budai notou algo diferente, como se houvesse um brilho estranho e predatório.
— Sabe, Budai… Por vezes eu mesmo questiono quem sou — Zudao disse com um sorriso ambíguo. — Não há realmente um Zudao. Ele foi apenas um nome, uma máscara que serviu bem por um tempo. A verdade é que por trás dessa aparência está algo muito maior… algo que você talvez se lembre. — Zudao inclinou-se mais perto e sussurrou. — Algo que esteve aqui desde o princípio.
A consciência de Budai oscilou. O veneno entrava em seus sentidos, mas, com o pouco de foco que lhe restava, ele percebeu a verdade: aquela era a presença de um traidor, manipulador que sempre subjugava os mais fracos em troca de um lugar entre os fortes. Um ser pérfido cuja essência era a própria traição. Seu nome era Iscário.
No momento seguinte, Budai já não conseguia ver, uma escuridão absoluta se instalou em seus olhos, e ele soube que Iscário havia vencido.
Mas então… algo incomum aconteceu. Seu corpo começou a reagir. Aquela invasão parasítica, em vez de destruí-lo, libertou-o da escuridão em sua própria mente. Como um fogo que despertava, a consciência do Herói irrompeu em sua mente, restaurando-o.
A pele pálida do monge começou a resplandecer. A figura frágil e velha rejuvenescia diante de Zudao — ou melhor, Iscário —agora recuava, perplexo.
O brilho dourado irradiava por toda a sala, lançando sombras assustadas contra as paredes frias e rachadas da torre. Seus músculos rejuvenescidos voltaram a pulsar com a força de seu ápice, sua postura endireitada e seu olhar iluminado com uma sabedoria que transcendia até mesmo o tempo.
Iscário, horrorizado, tentava compreender o que via.
“Não é possível! Como Budai poderia resistir? Ele deveria estar sob meu controle! E agora…”
— Seu parasita é mesmo impressionante! Ele curou completamente a minha demência! — disse Budai, libertando-se facilmente dos pregos que o crucificavam.
— D-demência?!
— E agora, eu lhe apresento: Budai! Com a mente ativa. Em um corpo ativo!
A escuridão dos olhos de Budai desapareceram, dando lugar a um brilho dourado intenso. Rapidamente, todo o seu corpo começou a brilhar com a mesma energia, iluminando toda a sala da torre.
Com um soco firme e explosivo, Budai atingiu Iscário no estômago, fazendo-o voar para o outro lado da sala. Iscário contorcia-se, cuspindo um sangue negro e denso.
“Setenta vidas! Ele tirou setenta das minhas vidas com um único golpe!”
— Setenta? — Budai murmurou, como se refletisse consigo mesmo. — Interessante… se esse foi o resultado de apenas trinta por cento de todo meu poder, fico curioso para saber o quanto mais posso fazer usando toda a minha força.
Os olhos de Iscário se arregalaram, o medo dominando suas feições enquanto ele tentava recuar. Budai agarrou Iscário pelo pescoço e o jogou no fundo do poço, pulando logo em seguida.